Muito humanos, muito divinos (3): Buscar os sentimentos de Cristo

Neste terceiro artigo mergulhamos no coração das virtudes: o que são, como orientam a nossa afetividade e porque nos tornam mais livres.

Havia já várias perguntas, lançadas com a intenção de fazer Jesus tropeçar no seu discurso. O Senhor ia respondendo a elas, uma a uma, sem Se impacientar. No final, um escriba abre caminho, surpreendido por tudo o que tinha ouvido. Admirado com os ensinamentos do Mestre, faz em público uma dúvida que havia tempo o preocupava: «Qual é a coisa mais importante na vida?». Ele, que estava habituado a cumprir meticulosamente até as mais pequenas prescrições, por vezes ficava confuso: não conseguia saber o que era essencial em tudo o que fazia. E lança-se com a sua pergunta: «Qual é o primeiro de todos os mandamentos?» (Mc 12, 28). Jesus quer desenredar o interior deste homem, que procura sinceramente ser feliz, e serve-Se de algumas palavras das Escrituras que têm a fisionomia da linguagem dos enamorados: «Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração e com toda a tua alma e com toda a tua mente e com todas as tuas forças» (Mc 12, 30).

Jesus quer-nos fazer compreender que a vida daqueles que acreditam em Deus "não pode ser reduzida a uma obediência ansiosa e forçada, mas deve ter o amor como seu princípio

Jesus quer-nos fazer compreender que a vida daqueles que acreditam em Deus «não pode ser reduzida a uma obediência ansiosa e forçada, mas deve ter o amor como seu princípio»[1]. Amar com coração, mente, alma e força. Mas, como consegui-lo? S. Paulo indicava o caminho aos Filipenses: «Tende entre vós os mesmos sentimentos de Cristo» (Flp 2, 5); sentir e reagir ante tudo – pessoas, acontecimentos, situações – como Jesus. Com os sentimentos de Cristo, superam-se as divisões interiores que põem em risco a estabilidade do amor. Se, além de seguirmos os passos e as palavras do Senhor, procurarmos sentir como Ele, encontraremos aquela simplicidade e felicidade que o escriba ansiava.

A importância do mundo interior

O Catecismo da Igreja diz-nos que as paixões, os sentimentos, «são componentes naturais do psiquismo humano; constituem o lugar de passagem e asseguram a ligação entre a vida sensível e a vida do espírito»[2]; estão presentes na vida de cada pessoa e, portanto, estavam também presentes na vida de Cristo. Efetivamente, sabemos que Jesus chorou junto ao túmulo do seu amigo Lázaro (cf. Jo 11, 35) e que reagiu com firmeza aos comerciantes que tinham convertido o Templo de Jerusalém num mercado (cf. Jo 2, 3-17). Também O vemos cheio de alegria ao observar como os simples acolhem o Evangelho (Mt 11, 25).

Para compreender bem este âmbito da nossa afetividade, devemos distinguir entre as nossas ações, por um lado, e os nossos sentimentos ou paixões, por outro; ou, por outras palavras, entre o que fazemos e o que nos acontece. Dizemos que atuamos, quando planeamos e realizamos algo por própria iniciativa; por exemplo, quando decidimos começar a estudar ou ir visitar um amigo doente. Outras vezes, pelo contrário, podemos ser surpreendidos por uma reação inesperada face a uma situação: ira, perante uma palavra que consideramos ofensiva; tristeza, perante a morte inesperada de uma pessoa querida; ou inveja, perante algo valioso que gostaríamos de ter. Estes fenómenos anímicos, que ocorrem sem que nós o decidamos, são chamados sentimentos ou paixões.

Estes fenómenos anímicos, que ocorrem sem que nós o decidamos, são chamados sentimentos
ou paixões

Precisamente porque os sentimentos não são escolhidos por nós, não constituem um mérito nem um pecado. Isto não significa, contudo, que sejam sempre neutros, uma vez que «recebem uma qualificação moral na medida em que dependem da razão e da vontade»[3]; ou seja, na medida em que são ativamente procurados ou se consente neles, aceitando-os. A espontaneidade com que ocorrem em nós também não implica que careçam de importância para a vida cristã, porque, na realidade, acontece o contrário: os sentimentos pressupõem um juízo preliminar do acontecimento perante o qual se manifestam e sugerem uma linha de conduta posterior. E podemos moldá-los paulatinamente para que se ajustem cada vez mais ao que realmente queremos.

Por exemplo, ante um acontecimento que se nos apresenta como bom, surge uma paixão como a alegria ou o entusiasmo que, por sua vez, sugere ações como aplaudir a situação ou aproximar-se de uma pessoa. Por outro lado, ante um acontecimento que se nos apresenta como mau, surge uma paixão como a ira ou a tristeza que, por sua vez, sugere ações como a reprovação ou o distanciamento. Logicamente, há momentos em que uma situação não deve ser aplaudida, ainda que o juízo preliminar dos nossos sentimentos seja positivo; ou haverá também momentos em que veremos uma ofensa onde não há nenhuma, e seria um erro reagir com um comportamento de censura. Pode dizer-se, portanto, que quando as paixões envolvem um julgamento verdadeiro são uma ajuda para a vida cristã, porque tornam possível fazer o bem espontaneamente, mas quando estão enraizadas num julgamento falso, dificultam-na.

Obviamente, quem experimenta paixões baseadas em perceções erradas da realidade ainda pode agir bem, resistindo com esforço a esses sentimentos. Mas não se pode manter um esforço continuado durante a vida inteira, lutando continuamente contra a investida das más paixões, fazendo o que não apetece fazer, ou rejeitando sempre o que a afetividade está inclinada a fazer. Uma luta sustentada contra os próprios sentimentos pode facilmente levar ao desânimo ou à exaustão. Se não se conseguir educar este mundo interior, no final torna-se difícil discernir o que é bom do que é mau, porque a mente fica obscurecida e muitas vezes ceder-se-á facilmente aos sentimentos tal como eles vêm, sem os avaliar.

A educação da afetividade

«Educar é introduzir na vida, e a grandeza da vida é iniciar processos: ensinar os jovens a iniciar processos e não a ocupar espaço!»[4]. Foi assim que uma vez o Papa Francisco respondeu a uma professora numa reunião com a comunidade educativa de uma escola. Esta recomendação aplica-se também à formação da afetividade, que não visa simplesmente controlar as más inclinações ou bloquear certos comportamentos, mas sim dar forma, pouco a pouco, ao mundo dos sentimentos, para que os movimentos que surgem espontaneamente em nós nos ajudem a fazer o bem de um modo rápido e natural. Educar os nossos sentimentos é iniciar um processo que nos levará a aceitar melhor a graça de Deus e, assim, a identificar-nos com Jesus. A afetividade ordenada permite-nos gostar de fazer o que é bom; permite que o que nos apetece fazer coincida, quase sempre, com o que agrada a Deus.

A afetividade ordenada permite-nos gostar de fazer o que é bom; permite que o que nos apetece fazer coincida, quase sempre, com o que agrada a Deus.

Para educar os nossos sentimentos é necessário compreendê-los, para saber por que surgem. Fomos criados com uma inclinação natural para o que é bom para nós: o instinto de sobrevivência, a tendência sexual, o desejo de conhecimento, a necessidade de trabalhar e de ter amigos, a exigência razoável de reconhecimento e respeito por parte dos que nos rodeiam, a procura de significado e transcendência, e assim por diante. Todas estas inclinações naturais são como uma força que sai de nós em busca do que precisamos. Quando a tendência encontra satisfação, produz-se uma ressonância interior positiva, que é um sentimento: alegria, gratidão, serenidade... Mas quando a tendência se vê frustrada, surge um sentimento negativo: ira, confusão, pessimismo...

Contudo, há dois fatores que deformam o mundo dos sentimentos e dificultam o funcionamento harmonioso da nossa alma. O primeiro é a desordem que o pecado produziu no sistema de tendências: a graça da justificação em Cristo elimina a culpa, mas não nos devolveu imediatamente a integridade dos nossos desejos: é um caminho a ser seguido progressivamente. O segundo fator varia de pessoa para pessoa: dependendo da educação recebida, do ambiente social e dos pecados pessoais, o organismo das nossas tendências pode ser deformado mais tarde. Para corrigir esta desordem e evitar que surjam sentimentos negativos, temos de descer à camada mais profunda da personalidade e ordená-la para o bem. E isto é conseguido por meio das virtudes.

Que são as virtudes?

No início do século XIV, Giotto encheu de frescos o interior de uma capela em Pádua, hoje considerada uma das obras de arte mais importantes do mundo. Aos lados, cada quadro apresenta uma cena da vida de Jesus e Maria, desde a Anunciação até à Ascensão. Todos convergem na parede do fundo, que representa o fim dos tempos: a cena do Juízo Final, com os bem-aventurados à direita de Cristo e os condenados à sua esquerda. Mas há mais: as paredes laterais, na parte inferior, a área mais próxima do espectador, contêm duas séries de sete imagens que não pertencem propriamente à história da salvação: são personificações de sete virtudes e sete vícios. Nesta sucessão de imagens, que também se dirigem para um e outro lado do Senhor, cheio de majestade, o artista parece ter querido representar a colaboração humana nesta história divina: a nossa possibilidade de facilitar ou dificultar a obra da graça.

Neste sentido, em certa ocasião S. Josemaria referia que há muitas pessoas que «talvez não tenham tido a oportunidade de ouvir a palavra divina, ou que a tenham esquecido. Mas as suas disposições são humanamente sinceras, leais, compassivas, honestas. E atrevo-me a afirmar que quem reúne estas condições está prestes a ser generoso com Deus, porque as virtudes humanas formam o fundamento das virtudes sobrenaturais»[5].

que são as virtudes? Podem ser possuídas, tal como pegamos em alguma coisa com as mãos, vestimos um fato, ou calçamos uns sapatos? Num certo sentido, sim

Mas, que são as virtudes? Podem ser possuídas, tal como pegamos em alguma coisa com as mãos, vestimos um fato, ou calçamos uns sapatos? Num certo sentido, sim: a inteligência e a vontade, que são as nossas faculdades espirituais, e também os apetites sensíveis, têm a capacidade de possuir. Embora não sejam objetos materiais, são qualidades que, quando estabilizadas, chamamos bons hábitos ou virtudes. Estas qualidades não são visíveis como as formas e as cores, mas a sua presença numa pessoa é facilmente notada. Por exemplo, um matemático realiza facilmente operações e cálculos que uma pessoa que não tenha estudado matemática nem sequer consegue compreender. O matemático possui uma ciência, que é uma virtude intelectual. A pessoa temperada, para dar outro exemplo, come e bebe o que é razoável sem grande esforço, porque possui uma virtude moral, que é a temperança. Quem não é dono deste hábito, só com dificuldade e esforço conseguirá limitar-se ao que é razoável; e, pelo contrário, quem tem o vício que se opõe à temperança, a gula, facilmente comerá mais do que devia.

As virtudes morais têm três dimensões fundamentais. A primeira é de natureza intelectual: uma vez que as virtudes têm de regular uma reação, elas pressupõem o conhecimento de um estilo de vida, o de quem segue Cristo. A virtude da pobreza, por exemplo, pressupõe o conhecimento do papel que os bens económicos desempenham na vida de um cristão. A segunda dimensão das virtudes é a sua natureza afetiva: introduzem-se nas tendências que se dirigem para cada bem concreto, modificando-as pouco a pouco e tornando o seu movimento espontâneo de acordo com o estilo de vida cristão. Isto consegue-se através da repetição de atos que são ao mesmo tempo livres, conformes ao que é virtuoso, e realizados precisamente porque são bons. Os atos que parecem ser bons mas que são realizados por medo, conveniência, ou outros motivos alheios ao bem, não conseguirão tornar virtuosas as tendências humanas, porque não moldarão a afetividade. Por fim, a terceira dimensão das virtudes é que elas geram uma predisposição para o bem: a pessoa virtuosa tem uma especial facilidade e perspicácia para distinguir o bem do mal, mesmo em situações complexas ou imprevistas.

As virtudes libertam-nos

Ao apresentar-se como o bom pastor, imagem que evocava nos seus ouvintes a vinda do Salvador do povo, Jesus diz: «Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância» (Jo 10, 10). Essa vida abundante e plena é-nos dada pela graça de Deus, apoiada no nosso desejo de descobrir e tirar o melhor do que nos rodeia. Portanto, possuir estes hábitos torna-nos mais livres; gradualmente, torna-nos pessoas mais flexíveis, que sabem descobrir a forma de fazer o bem em situações muito diferentes. As virtudes libertam-nos porque nos permitem escolher entre os diferentes bens que se nos apresentam. Os vícios, pelo contrário, são rígidos, porque geram automatismos, reações que são difíceis de abandonar.

As virtudes libertam-nos porque nos permitem escolher entre os diferentes bens que se nos apresentam

A identificação com Cristo, para a qual o Espírito Santo nos move, passa por adquirir e consolidar as virtudes que Jesus ensinou: tanto as virtudes teologais como as morais. Detivemo-nos nas segundas, que reordenam o mundo interior dos sentimentos, tão importantes para a vida cristã. No entanto, a força motriz e a raiz de todas estas virtudes é a caridade. Sem ela, tudo o resto seria visto como um peso que oprime a liberdade. Quando se deseja viver sinceramente para a glória do Pai, como Cristo viveu, esse amor guia suavemente as escolhas, de modo que sejam cada vez mais semelhantes às de Jesus. O mandamento com que o Senhor respondeu ao escriba – amar a Deus com todo o coração e com todas as forças – não sabe de obediências forçadas: necessita de filhos que empreendem uma tarefa gratificante, porque sentem como Jesus sente.


[1] Francisco, Angelus, 25/10/2020.

[2] Catecismo da Igreja Católica, n. 1764.

[3] Catecismo da Igreja Católica, n. 1767.

[4] Francisco, Discurso, 06/04/2019.

[5] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 74.

Ángel Rodríguez Luño