Muito humanos, muito divinos (20): É justo e necessário: a justiça (I)

A justiça começa pela nossa relação com Deus, que encontra a sua abordagem exata numa atitude fundamental: agradecimento. Editorial da série sobre virtudes: “Muito humanos, muito divinos”.

Jesus fala para todos. Os pescadores escutam com gosto falar do arrastão (Mt 13, 47-52), os agricultores entretêm-se discernindo quais são os critérios para que uma semente dê um fruto permanente (Mt 13, 2-9) e qualquer dona de casa sintoniza com a história da mulher que perde uma moeda, porque conhece essa aflição (Lc 15, 8-10). Com as imagens mais quotidianas, Cristo sabe iluminar as verdades mais transcendentes. No entanto, há também parábolas que nos podem deixar perplexos; apesar de estarem formuladas numa linguagem simples, situam-nos diante de paradoxos que nos obrigam a refletir. «Os meus planos não são os vossos planos» (Is 55, 8), parece querer dizer-nos às vezes Jesus.

Talvez uma das histórias do Mestre que mais perplexidade desperta é a do proprietário que sai cedo para contratar trabalhadores para a sua vinha (Mt 20, 1-16). A narração começa como se poderia de esperar: o proprietário ajusta com os trabalhadores o salário para a jornada, um denário, e envia-os a trabalhar. No início parece que estamos simplesmente perante uma consideração sobre o aproveitamento do tempo e a prestação de contas. A parábola avança, todavia, e o proprietário decide contratar novos trabalhadores em horários mais tardios, pelo que trabalharão uma quantidade inferior de horas. A eles, em vez de lhes assegurar um salário determinado, promete-lhes que lhes pagará «o que for justo» (Mt 20, 4).

«O que for justo». Com esta expressão geram-se necessariamente expectativas nos ouvintes e nos leitores. Pensamos que aqueles que começaram a trabalhar mais tarde receberão menos dinheiro do que aqueles que se esforçaram desde o amanhecer. Por isso, quando os da última hora recebem o pagamento de um denário, pensamos que os mais madrugadores obterão uma recompensa maior pelo seu trabalho. No entanto, o proprietário desconcerta-os a todos: em primeiro lugar, aos que trabalharam poucas horas, porque recebem o mesmo pagamento do que os outros; mas também aos da primeira hora, porque esperariam um suplemento análogo sobre o salário acordado. Os mais surpreendidos, contudo, talvez sejamos nós próprios, perante uma conceção tão pouco convencional da justiça. «Não me será permitido dispor dos meus bens como eu entender?», pergunta o proprietário da vinha (Mt 20, 15). Talvez também nós não saibamos como interpretar estas palavras.

É justo e necessário

Jesus não tem interesse em ocupar-se de questões económicas ou políticas: com esta parábola não pretende, por exemplo, discernir as características de um conceito tão complexo como o de salário justo. O Senhor quer, antes de mais, elevar o nosso olhar para a atitude misericordiosa de Deus, que acolhe todos, ainda que apareçam ou se encontrem com Ele à última hora, como o bom ladrão (cf. Lc 23, 43). Todavia, juntamente com este sentido fundamental, a parábola do Mestre proporciona-nos um enquadramento narrativo para nos fazer refletir sobre os diferentes âmbitos da virtude da justiça na nossa vida.

Se, como se afirma de modo clássico, a justiça consiste em dar a cada um o que é seu, o que lhe corresponde, estamos diante de uma disposição interior que salienta a nossa dimensão relacional. Convém então perguntar-se, em primeiro lugar, que devemos a Deus ou como será uma relação justa com quem é a fonte de todos os bens, começando pelo da nossa própria existência.

A oração eucarística da santa Missa proporciona-nos um bom ponto de partida. Assim reza o breve diálogo entre sacerdote e fiéis com o qual começa sempre o prefácio: «– Dêmos graças ao Senhor, nosso Deus. – É nosso dever, é nossa salvação»[1]. Inicialmente, a gratidão e a justiça parecem contrapor-se: um dom caracteriza-se precisamente por ser um dom imerecido. O agradecimento é o reconhecimento de que uma pessoa foi mais além do estritamente devido. No entanto, diante de Deus mudam radicalmente as coordenadas, porque Ele é a origem de tudo o que somos e possuímos. Como diz São Paulo, «que tens tu que não tenhas recebido?» (1Cor 4, 7). A nossa vida enquanto tal é puro dom imerecido; daí que, no que diz respeito a Deus, o agradecimento seja um dever profundo. Nunca poderemos devolver-lhe o que faz por nós, e não há nisto nada de injusto. Mas, há aqui algo profundamente devido, profundamente justo: agradecer-Lhe tudo.

Descobrir que a nossa relação com Deus está condicionada pela sua doação gratuita e terna leva-nos a desfrutar da vida como seus filhos e liberta-nos de uma conceção da fé exageradamente centrada na letra dos mandamentos. Em vez de nos afligirmos diante do que se possa apresentar como uma lista infinita de propósitos ou preceitos através dos quais, de certo modo, pagaríamos o preço da nossa redenção, podemos visualizar a nossa correspondência ao amor de Deus como uma disposição de oferecer-Lhe todos os instantes da nossa vida, convencidos de que nunca conseguiremos agradecer-Lhe suficientemente tudo o que nos dá. Assim, por exemplo, a fidelidade a um plano de vida espiritual pode ser entendida, mais do que como um peso de consciência diante de uns compromissos adquiridos, como a manifestação mais direta da nossa gratidão ao amor que Deus derrama sobre cada um. «Vós, se vos esforçardes deveras por ser justos, considerareis frequentemente a vossa dependência de Deus – pois, que tens tu que não tenhas recebido? –, para vos encherdes de agradecimento e de desejos de corresponder a um Pai que nos ama loucamente»[2].

A sua justiça é maior do que a nossa

Por outro lado, uma atitude de profundo agradecimento a Deus liberta-nos de um desejo excessivo de julgar a sua maneira de atuar. Às vezes, perante acontecimentos pessoais ou sociais, quando somos subitamente confrontados com uma situação que não esperávamos, pode suceder que façamos perguntas deste estilo: «Como pode Deus permitir algo assim?». Talvez pensemos que outras pessoas são mais abençoadas do que nós ou que Deus parece não ouvir o que lhe pedimos nas nossas orações e pensamos: «Que injusto!». Comportamo-nos então como aqueles jornaleiros que trabalharam todo o dia e que não encaixaram a generosidade desmesurada do proprietário para com aqueles que tinha contratado ao cair da tarde. Em vez de se alegrarem porque esses trabalhadores iam ter algum dinheiro para comer, entristeceram-pela deceção das suas expectativas de receber uma graça maior.

Além disso, não faz sentido atribuir a culpa dos males ao Senhor. Muitos deles resultam da liberdade humana, das ações e omissões próprias e alheias. Além disso, é necessário convencermo-nos na nossa oração de que Deus é o Senhor da nossa vida e da história; também de que, apesar de na realidade não nos dever nada, uma vez que ele é Amor, está sempre a procurar o melhor para cada um, às vezes transformando o mal em bem de modos surpreendentes. S. João Paulo II dizia que «de certo modo, a justiça é maior que o homem, que as dimensões da sua vida terrena, que as possibilidades de estabelecer nesta vida relações plenamente justas entre os homens»[3].

A oração dos que sabem ser filhos de Deus está marcada pela confiança em quem nos ama infinitamente e quer sempre o melhor para nós. Assim reza Jesus no horto das oliveiras: «afasta de mim este cálice…, contudo não se faça a minha vontade, mas a tua» (Lc 22, 42). Perante as situações que não conseguimos entender e que talvez nos causem sofrimento, enquanto procuramos encontrar soluções, podemos dizer ao Senhor: «que se faça a tua justiça e não a minha. Sei que estou em boas mãos e que no final tudo será para bem».

A justiça é um desejo e um mistério. Um desejo profundamente enraizado em nós, mas também um mistério que nos supera, no sentido em que só a Deus corresponde a última palavra acerca do que é justo e dos modos concretos de restabelecer a justiça. Por isso também não seria uma atitude cristã desejar o castigo dos nossos inimigos, como se nos correspondesse determiná-lo, ou referir-se demasiado facilmente à justiça divina para repreender as pessoas que atuam de forma imoral ou baseiam as suas vidas em valores muito diferentes dos nossos.

Sim, obviamente que a fé na justiça divina deveria consolar-nos quando sofremos uma injustiça ou quando nos entristecemos por uma evolução negativa do mundo. «Existe uma justiça. Existe a “revogação” do sofrimento passado, a reparação que restabelece o direito»[4]. Como o proprietário da parábola, Deus cumpre a sua promessa e recompensa quem trabalhou bem. Mas a revelação que Deus fez de si próprio leva-nos a confiar, ao mesmo tempo, que a sua misericórdia o leva a dar sempre novas oportunidades de conversão a quem faz o mal. «Não é simplesmente uma justiça estrita, baseada em cálculos teóricos, a que levou o Filho de Deus a pedir perdão ao seu Pai em nosso nome, mas um amor gratuito, que só tem em conta aquilo que pode fazer pelos outros»[5]. Daí que o dono da vinha não fique de braços cruzados depois de contratar os trabalhadores madrugadores, mas que inclusive na undécima hora queira dar trabalho a quem está prestes a perder uma jornada completa. Em suma, como escreve S. Josemaria, «Deus não se deixa vencer em generosidade»[6].

Os outros são livres

Quando refletimos sobre a justiça como virtude que deveria moldar as nossas relações com os outros, muitas vezes afirma-se que se trata apenas de um requisito mínimo para a convivência: respeitar o outro na sua alteridade[7]. A justiça poderia interpretar-se assim como uma atitude fria, que destaca mais as diferenças entre as pessoas do que o que têm em comum. Enquanto a caridade busca a unidade, a justiça sublinharia a separação. Todavia, se observamos com atenção, a relação entre caridade e justiça é mais subtil.

O facto de que a cada um seja dado aquilo que lhe corresponde, como exige a justiça, encerra uma relação intrínseca com a devida repartição dos bens, com o cumprimento dos contratos e da palavra e com o respeito que devemos a cada pessoa. Poderíamos dizer, deste modo, que a justiça nos ajuda verdadeiramente a levar uma vida social pacífica, com as regras do jogo claras e sem nos incomodarmos uns aos outros.

Basta esta consideração para se dar conta de que não é pouco e nem sequer tão trivial reconhecer a alteridade dos outros e o direito que têm a ser como querem. Assim nos mostra S. Josemaria: «Estamos obrigados a defender a liberdade pessoal de todos, sabendo que Jesus Cristo foi quem nos conquistou essa liberdade. Se não o fizermos, com que direito reivindicaremos a nossa?»[8]. É precisamente isto que o proprietário da vinha censura aos trabalhadores madrugadores, que se sentem enganados: «Em nada de prejudico, meu amigo. Não foi um denário que nós ajustámos? Leva, então, o que te é devido e segue o teu caminho, pois eu quero dar a este último tanto como a ti. Ou não me será permitido dispor dos meus bens como eu entender? Será que tens inveja por eu ser bom?» (Mt 20, 13-15).

Às vezes podemos sentir a tentação de desqualificar de antemão as opiniões de alguém que tem uma forma diferente de compreender o mundo ou se guia por outros valores. Acentuamos então excessivamente a dimensão unitiva da caridade, acreditando que qualquer diferença deveria ser superada para dar lugar ao verdadeiro amor, e confundimos a justiça com a mera igualdade. No entanto, «a justiça é o primeiro caminho da caridade, (…) parte integrante daquele amor»[9]. Esta virtude recorda-nos, em primeiro lugar, que todos temos direito a ser como queremos, a manifestar essa forma de ser para o exterior e a gozar os nossos próprios bens. Como escreve o Papa Francisco, «nenhum indivíduo ou grupo humano se pode considerar omnipotente, autorizado a pisar a dignidade e os direitos dos outros indivíduos ou dos grupos sociais»[10].

S. Josemaria falava com frequência do numerador diversíssimo de que gozavam as pessoas que o seguiam: os diferentes caracteres, as livres opiniões e opções pessoais de cada uma, de cada um, em matérias políticas, culturais, científicas, artísticas, profissionais, etc. Distinguia-o de um denominador comum, muito pequeno em comparação, que eram as questões fundamentais da fé e do carisma que partilhavam. Faz-nos muito bem valorizar, respeitar e amar as diferenças legítimas com as pessoas que convivem connosco; «quem ama a liberdade consegue ver o que há de positivo e amável naquilo que outros pensam e fazem dentro desses amplos âmbitos»[11].

Pensar de outro modo implicaria cair na subtil tentação de querer ajudar os outros a partir dos nossos parâmetros, sem discernir aquilo de que na realidade necessitam e, sobretudo, o que lhes devemos. Seria injusto, por exemplo, pagar a um empregado um salário menor ao que corresponde o trabalho que realizou, simplesmente porque se pensa que é melhor oferecer-lhe um prémio que compense a diferença. Nesse sentido, o proprietário da vinha não peca contra a justiça ao pagar o mesmo a todos; talvez se possa pensar que tem um critério peculiar da retribuição, mas em nenhum momento falta à sua palavra: os que ajustaram um denário, receberam exatamente o estipulado; e os outros receberam o que ao proprietário pareceu justo. Assim é Deus: justo cumpridor das suas promessas, mas também Pai generoso, a quem «basta um sorriso, uma palavra, um gesto, um pouco de amor, para derramar copiosamente a sua graça sobre a alma do amigo»[12].


[1] cf. Missal Romano, Oração Eucarística.

[2] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 167.

[3] S. João Paulo II, Audiência, 08/11/1978.

[4] Bento XVI, Spe Salvi, n. 43.

[5] Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 16/02/2023, n. 8.

[6] S. Josemaria, Forja, n. 623.

[7] Acerca da alteridade como dimensão fundamental da justiça, cf. J. Pieper, Las Virtudes fundamentales, Rialp, Madrid 1990, p. 100 ss.

[8] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 171.

[9] Bento XVI, Caritas in veritate, n. 6.

[10] Francisco, Fratelli tutti, n. 171.

[11] Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 09/01/2018, n. 13.

[12] S. Josemaria, Via Sacra, V estação.

Gaspar Brahm