Para mim viver é Cristo (3): Formação integral e afetividade

Algumas pessoas, quando pensam na formação, tendem a considerá-la como um saber. Mas um conceito deste estilo não basta: apreender a integridade da pessoa requer pensar na formação como um ser. Estamos a falar de um objetivo muito mais alto: mergulhar no mistério de Cristo e deixar que a graça nos transforme progressivamente para nos configurar com Ele.

Chegar à pessoa na sua integridade: o papel dos afetos (I): Áudio


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Chegar à pessoa na sua integridade: o papel dos afetos (I)

Sem dúvida, Jesus Cristo é o amor da nossa vida: não o maior entre outros, mas aquele que dá sentido a todos os outros amores e aos interesses, vontades, ambições, trabalhos, iniciativas que preenchem os nossos dias e o nosso coração. Por isso é fundamental manter «a centralidade da pessoa de Cristo»[1] na nossa vida espiritual: Ele é o caminho para entrar em comunhão com o Pai no Espírito Santo. Nele se revela o mistério de quem é o homem[2], e para que está chamado. Caminhar com Cristo implica crescer em conhecimento próprio e aprofundar no próprio mistério pessoal. Deixar que Cristo seja o centro de nossas vidas faz-nos «redescobrir com luzes novas o valor antropológico e cristão dos diferentes meios ascéticos. É chegar à pessoa na sua integridade: inteligência, vontade, coração, relações com os outros»[3].

CAMINHAR COM CRISTO IMPLICA CRESCER EM CONHECIMENTO PRÓPRIO E APROFUNDAR NO PRÓPRIO MISTÉRIO PESSOAL

Essa pessoa a quem temos que “chegar” somos nós mesmos e também todos aqueles que fazem parte da nossa vida de alguma maneira, pela nossa amizade, pelo nosso apostolado. A formação que recebemos e damos deve abranger a inteligência, a vontade e os afetos, sem deixar de lado nenhum desses elementos, nem simplesmente submeter algum deles aos outros. Aqui o foco será a formação da afetividade, sabendo que é essencial que se apoie numa boa formação intelectual. Considerar a importância da formação integral vai permitir-nos redescobrir a grande verdade da identificação que S. Josemaria estabelecia entre fidelidade e felicidade[4].

Formar-se para entrar em sintonia com Jesus

Algumas pessoas, quando pensam na formação, tendem a considerá-la como um saber. Se assim fosse, quem tivesse recebido bons conteúdos doutrinais, ascéticos e profissionais ao longo da vida, teria uma boa formação. Mas um conceito deste estilo não é suficiente: para abranger a integridade da pessoa é preciso pensar na formação como um ser. Um bom profissional sabe a ciência e a técnica que a sua profissão requer, mas tem algo mais: adquiriu hábitos – modo de ser – que o ajudam a aplicar bem essa ciência e essa técnica que possui (hábitos de atenção aos outros, de concentração no trabalho, de pontualidade, de lidar com êxitos e fracassos, de perseverança, etc.).

ENTREGAR-NOS AO SENHOR, DAR A NOSSA VIDA, NÃO É SÓ ENTREGAR AS NOSSAS DECISÕES, OS NOSSOS ATOS; É TAMBÉM DAR O NOSSO CORAÇÃO, OS NOSSOS AFETOS...

Da mesma maneira, ser um bom cristão não é simplesmente saber – no nível adequado à sua própria situação na Igreja e na sociedade – a doutrina sobre os sacramentos, ou sobre a oração, ou sobre as leis morais gerais e profissionais. Estamos a falar de um objetivo muito mais alto: mergulhar no mistério de Cristo para conhecer a sua dimensão, a sua profundidade (cf. Ef 3, 18), deixar que a sua Vida entre na nossa, e poder repetir com S. Paulo que «não sou que vivo: é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 20). Isto é: ser «alter Christus, ipse Christus»[5], deixar que a graça nos transforme progressivamente para nos configurar com Ele. Esse permitir que a graça atue não consiste só em evitar obstáculos passivamente: o Espírito Santo não nos transforma em Cristo sem a nossa cooperação livre. E isso não é suficiente: entregar-nos ao Senhor, dar a nossa vida, não é só entregar as nossas decisões, os nossos atos; é também dar o nosso coração, os nossos afetos, inclusive a nossa espontaneidade. Para isso, é imprescindível uma boa formação intelectual e doutrinal que configure a cabeça, que incida nas nossas decisões, mas também é necessário que a doutrina penetre no coração da pessoa. Isso exige luta... e requer tempo. Por outras palavras, é necessário adquirir virtudes e a formação consiste exatamente nisso.

Muita gente pensa que insistir nas virtudes pode levar ao voluntarismo. Não há nada mais irreal do que esse pensamento. Talvez na raiz dessa confusão esteja uma visão errada da virtude, que a considera um simples suplemento de força na vontade, que faz a pessoa ser capaz de cumprir a norma moral mesmo quando não tem a menor vontade. Essa é uma ideia muito difundida e, efetivamente, de origem voluntarista. A virtude consistiria praticamente na capacidade de ir contra as próprias inclinações quando a norma moral exige isso. Claro que há algo de verdade nisso, mas essa visão é incompleta e transforma as virtudes em qualidades frias, que levariam à negação prática das próprias inclinações, interesses e afetos e, sem querer, acabariam por converter a indiferença num ideal: como se a vida interior e a entrega consistissem em conseguir não se sentir atraído por nada que pudesse ser um obstáculo para as decisões futuras.

Considerar a formação deste modo impediria “atingir” a pessoa na sua integridade: inteligência, vontade e afetos não estariam a crescer juntos, de mãos dadas, ajudando-se mutuamente: pelo contrário, uma dessas faculdades estaria a aniquilar alguma das outras duas. O desenvolvimento da vida interior exige essa integração e jamais nos levaria a perder interesses e afetos; não tem como objetivo que as coisas não nos afetem, que não nos importemos com o que é importante, ou que o que é doloroso não doa. É o oposto: enche o nosso coração de um amor tão forte, que nos capacita para considerar os sentimentos num contexto mais amplo, dando-nos recursos para enfrentar os mais difíceis e captar o sentido positivo e transcendente dos mais agradáveis.

O Evangelho mostra-nos o interesse sincero do Senhor pelo descanso dos seus: «Vinde, a sós, para um lugar deserto, e descansai um pouco» (Mc 6, 31), ou também a reação de seu coração perante o sofrimento dos seus amigos, como Marta e Maria (cf. Jo 11, 1-44). Não se pode imaginar que Jesus estivesse a fingir nesse momento, como se no fundo, pela sua união com o Pai, o que acontecia à sua volta fosse indiferente. S. Josemaria falava sobre amar o mundo e amá-lo apaixonadamente[6], incentivava a colocar o coração em Deus e, por Ele, nos outros, no nosso trabalho profissional e apostólico, porque «o Senhor não nos quer secos, rígidos, como uma matéria inerte»[7]. A disponibilidade, por exemplo, não é a disposição daquele que vê com indiferença tanto uma coisa como outra, porque já conseguiu perder qualquer interesse, talvez para não sofrer quando lhe pedirem algo de que não goste; a disponibilidade é a disposição nobre de quem sabe prescindir de algo bom para se concentrar noutra coisa que Deus lhe pede no momento, porque o que a pessoa deseja profundamente é viver para Deus. É alguém que tem o coração grande, com interesses, com ambições boas, mas que sabe superá-los quando convém, não porque os negue ou tente não ser afetado por eles, mas porque o seu interesse em amar e servir a Deus é muito maior. E não só é maior, como é – foi-se tornando – o que dá sentido e contém em si todos os outros interesses.

Comprazer-se na prática das virtudes

A VIRTUDE CONSISTE PRECISAMENTE NESSE “SABOREAR” O BEM

A formação das virtudes exige luta, vencer a própria inclinação quando esta se opõe aos atos bons. Esta é a parte de verdade contida no conceito reducionista – voluntarista – de virtude, de que falámos anteriormente. Mas a virtude não consiste nesta capacidade de se opor à inclinação. É muito mais do que isso: consiste na formação da inclinação. O objetivo não é sermos capazes de deixar a afetividade de lado para nos guiarmos por uma regra externa, mas sim formar a afetividade de tal maneira que sejamos capazes de nos regozijar com o bem realizado. A virtude consiste precisamente nesse “saborear” o bem, na formação – por assim dizer – do bom gosto: «feliz quem na lei do Senhor encontra sua alegria e nela medita dia e noite» (Sl 1, 2). Resumindo: a virtude é a formação da afetividade e não o hábito de se opor sistematicamente a ela.

Enquanto a virtude não está formada, a afetividade pode insinuar uma resistência ao ato bom e nesse momento é preciso vencê-la. Mas o objetivo não é simplesmente conseguir vencer: é desenvolver o gosto por esse comportamento. Quando se possui a virtude, o ato bom pode continuar a custar esforço, mas faz-se com alegria. Por exemplo: levantar-nos da cama pontualmente de manhã – o minuto heroico[8] – provavelmente vai custar-nos sempre: pode ser que nunca chegue o dia em que, ao tocar o despertador, não tenhamos a menor vontade de continuar um pouco mais na cama. Mas se sempre nos esforçarmos para vencer essa preguiça por amor a Deus, chega o momento em que fazer isso nos alegra e ceder à comodidade nos incomoda, deixa um sabor amargo. Paralelamente, para uma pessoa justa, levar um produto do supermercado sem pagar não seria apenas proibido pela lei, seria discordante com as disposições do seu coração. Essa configuração da afetividade que produz essa alegria perante o bem e o sabor amargo perante o mal não é um efeito colateral da virtude, é uma componente essencial dela. Por isso, a virtude faz-nos capazes de desfrutar do bem.

Esta não é uma ideia meramente teórica. Pelo contrário: tem uma grande incidência prática saber que, quando lutamos, não estamos a habituar-nos a sofrer com resignação, mas sim a aprender a deleitar-nos com o bem, ainda que nesse momento aquilo nos contrarie.

A formação das virtudes faz com que as faculdades e os afetos se centrem no que pode satisfazer verdadeiramente as aspirações mais profundas e deixem em segundo plano aquelas que não são tão importantes. Formar-se nas virtudes é aprender a ser feliz, a desfrutar do e com o que é grandioso, é, em resumo, preparar-se para o Céu.

UMA AFETIVIDADE ORDENADA AJUDA A ATUAR BEM. DA MESMA FORMA, ATUAR BEM AJUDA-NOS A ORDENAR A AFETIVIDADE

Formar-se é crescer nas virtudes e as virtudes consistem na ordem dos afetos; pode concluir-se que toda a formação é formação da afetividade. Pode ser que ao ler isto, alguém conteste, uma vez que no esforço para adquirir virtudes, a sua luta era mais operativa do que afetiva e, inclusivamente, acrescentar que chamamos virtudes a hábitos operativos. É verdade. Mas se as virtudes nos ajudam a fazer o bem é porque nos ajudam a sentir corretamente. O ser humano sempre se move em direção ao bem. O problema moral é que o que não é bom se apresenta aos nossos olhos como se fosse bom numa situação concreta. E isso acontece por causa da desordem das nossas tendências: às vezes exageramos o valor de algum bem, achando que é mais desejável do que outro bem que possui um valor objetivo maior, porque responde ao bem global da pessoa. Por exemplo: alguma vez podemos estar numa situação em que poderíamos dizer a verdade ou não. A tendência natural que temos para a verdade vai-nos apresentá-la como um bem. Mas também temos uma tendência natural à aprovação das pessoas que, nesse caso concreto, nos vai apresentar a mentira como bem, já que ficaríamos mal diante daquela pessoa se disséssemos a verdade. Essas duas tendências entram em conflito. Qual delas prevalecerá? Vai depender de qual dos dois bens é mais importante para nós e nesta avaliação a afetividade tem um papel decisivo. Se está bem ordenada, ajudará a razão a perceber que a verdade é muito valiosa e que não é desejável a aprovação dos outros se exige renunciar à verdade. Esse amor à verdade acima de outros bens que também nos atraem é precisamente o que chamamos sinceridade. Mas, se a vontade de ficar bem é mais forte do que a atração pela verdade, é mais fácil que a razão se engane, e mesmo sabendo que isso não é bom, julgue conveniente mentir. Ainda que saibamos perfeitamente que não se deve mentir, consideramos que neste caso é bom fazê-lo.

A afetividade ordenada ajuda a fazer o bem porque ajuda antes a percebê-lo. Por isso, interessa muito saber formá-la. Mas como conseguir isso? Vamos expor algumas ideias no próximo artigo. Agora limitar-nos-emos a realçar algo que é bom saber antes de entrar neste tema.

A vontade e os sentimentos

Acabamos de afirmar que uma afetividade ordenada ajuda a atuar bem. Pode dizer-se o mesmo no sentido contrário: atuar bem ajuda-nos a ordenar a afetividade.

Sabemos por experiência – e é bom não esquecer, se não quisermos sofrer frustrações e desânimos – que não podemos controlar diretamente os nossos sentimentos: se de repente ficarmos desanimados, não adianta apenas decidirmos ficar alegres. E acontece o mesmo se queremos ser mais audazes nalgum momento determinado, ou menos tímidos, ou não ter medo, vergonha, ou não sentir atração por algo que julgamos desordenado. Outras vezes, quem sabe, desejaríamos estar mais à vontade com uma pessoa por quem temos uma certa rejeição involuntária por razões ínfimas, mas que não conseguimos superar e percebemos que simplesmente querer lidar com ela com simplicidade não resolve a dificuldade. Em suma, não basta uma decisão voluntária para que os sentimentos se ajustem aos nossos desejos. Mas, por outro lado, não é porque a vontade não controle diretamente os sentimentos quenão exerce nenhuma influência sobre eles.

Na ética, o controlo que a vontade pode exercer sobre os sentimentos qualifica-se como político, porque é semelhante ao que um governante tem sobre as decisões dos seus subordinados: não pode controlá-las diretamente, uma vez que eles são livres; mas pode tomar certas medidas – por exemplo, diminuir os impostos – esperando que produzam certos resultados (o aumento do consumo ou dos investimentos) por meio da vontade livre dos cidadãos. Nós também podemos realizar certos atos esperando que suscitem sentimentos concretos: considerar o bem que um trabalho apostólico pode fazer e assim sentirmo-nos mais audazes para pedir donativos para o seu início. Podemos considerar a nossa filiação divina esperando que um contratempo profissional nos afete menos no campo sensível. Sabemos que tomar uma dose alta de álcool pode provocar um estado transitório de euforia; e que, se voluntariamente ficarmos a dar voltas aos pensamentos, quando alguém nos tratou de uma forma de que não gostamos, pode provocar-nos reações de ira. Estes são apenas alguns exemplos da influência, sempre indireta, que a vontade pode exercer a curto prazo sobre os sentimentos.

Mas é muito mais importante a influência que a vontade exerce sobre a afetividade a longo prazo, porque é precisamente esse tipo de influência que permite dar-lhe forma, formá-la. Isto acontece porque os atos voluntários não causam algo só exteriormente, eles produzem um efeito interior: contribuem para que criemos uma “conaturalidade” afetiva com o bem para o qual a vontade se move. A proposta destes artigos não é explicar como isso acontece, mas interessa ressaltar dois pontos.



Chegar à pessoa na sua integridade: o papel dos afetos (II)

Querer o bem

O primeiro desses pontos é que o bem em direção ao qual a vontade se move – e com o qual se cria a “conaturalidade” – pode ser muito diferente do que se percebe olhando de fora. Duas pessoas que realizam uma mesma tarefa podem estar a fazer duas coisas bem diferentes: uma pode estar simplesmente tentando não “ficar mal” diante de quem a encarregou da tarefa, enquanto a outra tem a intenção de servir. A segunda está a crescer numa virtude e a primeira não, porque o bem que persegue e com o qual se configura é o de evitar ficar mal diante da autoridade. É verdade que essa situação é melhor do que, por exemplo, negar-se a fazer aquilo, mas enquanto não se chega à atitude ideal, essa pessoa não estará a crescer na virtude, sejam quantas forem as repetições daquele ato. Por isso é tão importante retificar, purificar constantemente a intenção para ir acertando progressivamente os motivos pelos quais realmente vale a pena fazer algo e, assim, configurar-nos afetivamente com eles.

NÃO É O FAZER QUE NOS FORMA, É O QUERER: NÃO IMPORTA APENAS O QUE FAÇO, MAS O QUE QUERO QUANDO FAÇO

Todos temos experiências, próprias ou alheias, de como limitar-se a respeitar as regras facilmente se converte num peso. O exemplo do filho mais velho da parábola alerta para esse perigo (cf. Lc 15, 29-30). Por outro lado, buscar sinceramente o bem que essas regras promovem alegra-nos eliberta-nos. Poderíamos dizer, enfim, que não é o fazer que nos forma: é o querer. Não importa apenas o que faço, mas o que quero quando faço[9]. Portanto, a liberdade é decisiva: não basta fazer algo, é preciso querer fazê-lo, “porque nos dá na gana, que é a razão mais sobrenatural”[10], porque só assim criamos a virtude, isto é, aprendemos a desfrutar do bem. Um mero cumprimento que se traduza em “cumpro e minto”[11], não promove a liberdade, nem o amor, nem a alegria. O que os promove é entender por que essa atuação é nobre e vale a pena, e deixar-se guiar por essas razões ao atuar.

Uma formação demorada

O segundo ponto que nos convém considerar é que o processo de “conaturalização” afetiva com o bem normalmente é lento. Se a virtude fosse só a capacidade de superar a resistência afetiva para fazer o bem, poderíamos alcançá-la muito mais rapidamente. Mas já sabemos que a virtude não está totalmente formada enquanto o bem não tiver um reflexo positivo na afetividade[12]. Logo, é preciso ter paciência na luta, porque alcançar alguns dos objetivos que vale a pena propor-se pode exigir um tempo longo, talvez até anos. E a resistência ao ato bom que continuaremos a experimentar durante esse tempo não deve ser interpretada como um fracasso ou como sinal de que a nossa luta não é sincera, ou então de que é uma luta pouco decidida. Trata-se de um caminho progressivo, em que cada passo costuma ser pequeno e por isso é difícil medir o avanço que supõe. Só passado algum tempo, olhando para trás, veremos que progredimos mais do que pensávamos.

Se, por exemplo, temos reações de ira que gostaríamos de superar, começaremos por nos esforçar em reprimir as suas manifestações externas; talvez no começo nos pareça que não estamos a conseguir nada, mas se formos constantes, as ocasiões em que vencemos – inicialmente escassas – vão sendo mais e mais frequentes e, depois de um tempo – talvez longo – chegaremos a consegui-lo habitualmente; mas não basta, porque a nossa meta não era reprimir manifestações externas, mas sim moldar uma reação interna, ser mais mansos e pacíficos, de maneira que essa reação mais serena seja a própria do nosso modo de ser. A luta, portanto, é muito mais longa, mas... não é muito mais bonita, libertadora e fascinante? É uma luta que procura alcançar paz interior e pôr em prática a vontade de Deus, e não a mera submissão violenta dos sentimentos.

UM MERO CUMPRIMENTO QUE SE TRADUZA EM “CUMPRO E MINTO”, NÃO PROMOVE A LIBERDADE, NEM O AMOR, NEM A ALEGRIA

O Papa Francisco, ao explicar o seu princípio de que o tempo é superior ao espaço[13], diz que «dar prioridade ao tempo é ocupar-se em iniciar processos mais do que possuir espaços»[14]. Na vida interior, vale a pena pôr em prática processos realistas e generosos. E para que produzam os seus frutos, é preciso saber esperar. «Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão por resultados imediatos. Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe. É um convite a assumir a tensão entre plenitude e limite»[15]. Efetivamente, é muito importante que a consciência da nossa limitação não paralise a nossa aspiração à plenitude que Deus nos oferece. Assim como também é importante que essa nobre ambição não ignore ingenuamente que somos limitados.

Apostar alto na formação, propor-se não só realizar atos bons, mas ser bons, ter bom coração, vai permitir-nos distinguir o ato virtuoso daquele que poderíamos denominar como “ato de acordo com uma virtude”. Este último seria o ato que corresponde a uma virtude e contribui passo a passo para formá-la, mas que, por ainda não proceder de um hábito maduro, precisa de sobrepor-se frequentemente a uma afetividade que leva à direção contrária. O ato virtuoso, pelo contrário, seria o de quem desfruta durante a realização desse bem, inclusive quando supõe esforço. Este é o objetivo.

Uma formação integral, que consegue moldar a afetividade, é lenta. Quem quer formar-se assim não cai na ingenuidade de pretender submeter os sentimentos à própria vontade, pisando os que desagradam ou provocando aqueles que desejaria ter. Entende que a sua luta deve estar mais centrada nas decisões livres com as quais, ao tentar fazer a vontade de Deus, dá respostas a esses sentimentos, acolhendo ou rejeitando as sugestões de comportamento que cada um deles suscita. São essas decisões que – indiretamente e a longo prazo – acabam por moldar a interioridade de que esses afetos procedem.

Um mundo dentro de nós

À medida que a virtude se vai adquirindo, não só se realiza o ato bom com mais naturalidade e alegria, como também se possui mais facilidade para identificar qual é esse ato. «‘Para poder conhecer a vontade de Deus, o que é bom, o que Lhe é agradável e o que é perfeito’ (Rm 12, 2), é necessário o conhecimento da lei de Deus em geral, mas não é suficiente: é indispensável uma espécie de “conaturalidade” entre o homem e o verdadeiro bem. Esta “conaturalidade” fundamenta-se e desenvolve-se nos comportamentos virtuosos do próprio homem»[16].

Isto deve-se, em grande parte, ao facto de que a afetividade é a primeira voz que ouvimos na hora de avaliar se um comportamento é oportuno ou não: antes de que a razão examine se é ou não conveniente realizar algo prazenteiro, já sentimos uma atração. A virtude, ao tornar o bem atrativo afetivamente, consegue que a voz da afetividade já inclua uma avaliação moral – em relação ao bem global da pessoa – do ato em questão. Faz com que, por exemplo, mesmo que a possibilidade de fazer “boa figura” nos atraia, a mentira nos pareça desagradável.

"O TEMPO É SUPERIOR AO ESPAÇO: ESTE PRINCÍPIO PERMITE TRABALHAR A LONGO PRAZO, SEM A OBSESSÃO PELOS RESULTADOS IMEDIATOS" (PAPA FRANCISCO)

Num ponto de Caminho, encontramos isso de maneira implícita, mas clara: «Para que hás de olhar, se ‘o teu mundo’, o levas dentro de ti?»[17]. S. Josemaria está a falar de um olhar para algo exterior, colocando-o em relação com o mundo interior. Um olhar inadequado nem precisa de repreensão, porque já se apresenta como desnecessário, já que o mundo interior – o meu mundo – o rejeita. S. Josemaria está a dizer-nos que, se há uma interioridade rica, não só se evitam as coisas que nos causam dano, estas nem apresentam grandes perigos, já que a própria interioridade sente repugnância por elas: não apenas são detetadas como más, mas como desagradáveis, destoantes, fora de lugar...; claro que podem atrair-nos de alguma forma, mas é fácil rejeitar essa atração, porque quebra a harmonia e a beleza do clima interior. Por outro lado, se não temos dentro um mundo interior, evitar esse olhar vai supor um esforço visível.

Realismo

O que estamos a dizer até agora mostra como o crescimento nas virtudes nos vaitornando mais realistas. Algumas pessoas têm a ideia – normalmente não formulada – de que viver de acordo com as virtudes pressupõe fechar os olhos à realidade, por um motivo muito alto, porque ao fechar-nos, em parte, para este mundo, esperamos um prémio no outro. Pelo contrário: viver como Cristo, imitar as suas virtudes, abre-nos à realidade e não permite que a nossa afetividade nos engane à hora de avaliar e decidir como responder-lhe.

A pobreza, por exemplo, não supõe renunciar a considerar o valor dos bens materiais em vista da vida eterna; pelo contrário, só a pessoa que vive desprendida valoriza os bens na sua justa medida: nem pensa que são maus, nem lhes dá uma importância que não têm. Quem, por sua vez, não se esforça para viver assim, acabará por dar-lhes um valor mais alto do que o que realmente têm, e isso incidirá nas suas decisões: será pouco realista, mesmo que pareça um autêntico homem do mundo, que sabe mover-se em qualquer ambiente. A pessoa sóbria sabe desfrutar de uma boa comida; não dá de facto uma grande importância a esse prazer que ele não tem. Poderíamos dizer algo parecido de qualquer outra virtude. Como Jesus disse a Nicodemos: «quem pratica a verdade aproxima-se da luz» (Jo 3, 21).

Um círculo virtuoso

Por fim, orientar a nossa afetividade desenvolvendo as virtudes significa clarificar o nosso olhar, é como limpar os óculos das manchas que o pecado original e os pecados pessoais deixaram neles e que nos dificultam ver o mundo como realmente é. «Poderíamos mesmo dizer que a não redenção do mundo consiste, precisamente, na não decifração da criação, no não reconhecimento da verdade, uma situação que depois conduz, inevitavelmente, ao domínio do pragmatismo, e desse modo faz com que o poder dos fortes se torne o deus deste mundo»[18].

Uma afetividade ordenada ajuda a razão a ler a criação, a reconhecer a verdade, a identificar o que verdadeiramente nos convém. Esse correto juízo da razão facilita a decisão voluntária. O ato bom que vem depois dessa decisão contribui para a nossa “conaturalização” com o bem perseguido e, portanto, com a ordenação da afetividade. É um autêntico círculo virtuoso que nos conduz a sentirmo-nos progressivamente livres, senhores dos nossos próprios atos e, consequentemente, capacita-nos para nos entregarmos realmente ao Senhor, porque só quem se possui pode entregar-se.

O CRESCIMENTO NAS VIRTUDES VAI-NOS TORNANDO MAIS REALISTAS

A formação só é integral quando alcança todos esses níveis. Por outras palavras, só existe verdadeira formação quando as diversas faculdades que intervêm no atuar humano – razão, vontade e afetividade – estão integradas: não lutam entre si, colaboram umas com as outras. Se não se conseguisse moldar os afetos, ou seja, se as virtudes fossem entendidas como uma força adicional na vontade que a faz capaz de ignorar o nível afetivo, as normas morais e a luta por vivê-las seriam repressivas e não se conseguiria uma autêntica unidade de vida, porque sempre sentiríamos dentro de nós mesmos forças que atraem poderosamente em sentidos contrários e que geram instabilidade. Uma instabilidade que conhecemos bem, porque é o nosso ponto de partida, mas que vamos superando passo a passo, à medida que conduzimos essas forças progressivamente à harmonia, de modo que chegue o momento em que essa razão mais sobrenatural que é porque eu quero mesmo, signifique porque eu gosto, porque me atrai, porque se encaixa no meu modo de ser, com o mundo interior que eu formei; enfim, porque fui aprendendo a tornar meus os sentimentos de Jesus Cristo.

Caminhamos assim rumo à meta altíssima e atrativa ao mesmo tempo, que S. Paulo nos propõe: «Haja entre vós o mesmo sentir e pensar que no Cristo Jesus» (Fl 2, 5), e percebemos que assim nos revestimos do Senhor Jesus Cristo (cf. Rm 13, 14). «A vida de Cristo é vida nossa (…). O cristão, portanto, deve viver segundo a vida de Cristo, tornando seus os sentimentos de Cristo de tal modo que possa exclamar com S. Paulo: Non vivo ego, vivit vero in me Christus; não sou eu quem vive; é Cristo que vive em mim»[19]. E uma vez que a fidelidade consiste precisamente nisto, em viver, em querer, em sentir como Cristo, não por nos disfarçarmos de Cristo, mas porque é esse o nosso modo de ser, então, ao fazer a vontade de Deus, ao sermos fiéis, somos profundamente livres, porque fazemos o que nos fica bem, aquilo de que gostamos, o que nos dá na gana. Profundamente livres e profundamente fiéis. Profundamente fiéis e profundamente felizes.


[1] Fernando Ocáriz, Carta Pastoral, 14/02/2017, n. 8.

[2] cf. Concílio Vaticano II, Constituição pastoral Gaudium et spes, n.22

[3] Fernando Ocáriz, Carta Pastoral, 14/02/2017, n. 8.

[4] S. Josemaria, Sulco, n. 84: «A tua felicidade na terra identifica-se com a tua fidelidade à fé, à pureza e ao caminho que o Senhor te traçou»; cf. também, por exemplo, S. Josemaria, Instrução, maio-1935/14-IX-1950, n. 60; Instrução, 08/12/1941, 61; S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 189.

[5] S. Josemaria, Cristo que Passa, n. 96.

[6] Basta mencionar, como exemplo, o título da homilia “Amar o mundo apaixonadamente”, em Entrevistas com o Fundador do Opus Dei, n. 113-123.

[7] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 183.

[8] S. Josemaria, Caminho, n. 206.

[9] Na realidade, do ponto de vista moral, o que faço é precisamente o que quero quando o faço. No entanto, para o nosso objetivo, não é necessário explicar porque isso é assim.

[10] S. Josemaria, Cristo que Passa, n. 17.

[11] cf. Álvaro del Portillo, Carta setembro de 1975, em Cartas de família I, n. 8.

[12] No seguimento daquilo que se disse até agora, isto não significa que o bem não custe qualquer esforço ou, o que é a mesma coisa, que o mal não atraia de nenhuma forma.

[13] cf. Francisco, Evangelii Gaudium, n. 222-225.

[14] Ibid, n. 223. O que está em itálico é original.

[15] Ibid.

[16] S. João Paulo II, Veritatis Splendor, n.64.

[17] S. Josemaria, Caminho, n. 184.

[18] Joseph Ratzinger – Bento XVI, Jesus de Nazaré, Parte II, cap. 7, n.3.

[19] S. Josemaria, Cristo que Passa, n. 103.

Julio Diéguez