Trabalhar bem, trabalhar por amor (11): Unidade de vida na profissão

Para oferecer o trabalho a Deus, é preciso realizá-lo bem: com boa intenção, critério reto e uma conduta que manifeste estes desejos interiores.

Todo o trabalho honrado pode ser oração; e todo o trabalho que for oração, é apostolado. Desse modo, a alma fortalece-se numa unidade de vida simples e forte [1].

Trabalho, oração, apostolado: três termos que, para quem se sabe filho de Deus, não são de âmbitos diferentes, mas vão-se fundindo na vida como notas de um acorde, até compor uma única harmonia.

No início da atividade profissional, é possível escutar unicamente o som isolado do próprio trabalho, monótono e sem graça. Ao descobrir como transformá-lo em oração que se eleva ao Céu e em apostolado que fecunda a terra, as notas combinam-se e o som começa a adquirir ritmo e harmonia. Se abandonarmos o esforço de criar e compor, voltamos facilmente às notas soltas, aos sons sem melodia; porém basta permitirmos que o Espírito Santo dirija de novo a nossa vida profissional e dirija a orquestra, surge outra vez a música, composição excelente de amor a Deus e aos homens — de oração e apostolado — no trabalho diário. Cada uma das faculdades do nosso ser: vontade, inteligência, afetos..., interpreta a sua parte com mestria, e essa unidade de vida simples e forte, que agrada a Deus e atrai os homens para Ele, é alcançada.

Na atividade profissional há três aspetos que convém examinar com atenção para alcançar a harmonia da unidade de vida: a intenção, o critério, e a conduta coerente com ambos.

Retidão de intenção

A unidade de vida no trabalho profissional depende, em primeiro lugar, da retidão de intenção: da clara e firme decisão de trabalhar por amor a Deus, não por ambição ou outra forma de egoísmo; diante de Deus e procurando a sua glória, não diante dos homens e procurando a própria glória, ou seja, a satisfação pessoal ou a admiração das pessoas.

Ninguém pode servir a dois senhores [2]. Não podemos admitir negociações, não podemos ter no coração uma vela acesa a S. Miguel e outra ao diabo [3]. A intenção deve ser transparente. No entanto, podemos perceber que, mesmo querendo viver para a glória de Deus, a retidão da vontade se distorce facilmente nas ações concretas, em que juntamente com motivos santos podemos encontrar muitas vezes aspirações menos claras [4]. Por isso, S. Josemaria aconselha a purificar a vontade, retificando constantemente a intenção. Retificar. – Todos os dias um pouco. - Eis o teu trabalho constante, se deveras queres tornar-te santo [5].

Quem trabalha com retidão de intenção procura sempre realizar bem a sua tarefa. Não trabalha de um modo quando os outros o veem e de outro quando ninguém o vê. Sabe que Deus o contempla e por isso procura cumprir o seu dever com perfeição, como Ele gosta. Presta atenção aos detalhes de ordem, de laboriosidade, de espírito de pobreza..., também quando ninguém se dá conta ou está sem vontade. Nos dias cinzentos do trabalho corrente, quando a monotonia ameaça, um filho de Deus esforça-se por colocar as últimas pedras por amor, e assim o seu trabalho converte-se em oração.

Os momentos de sucesso ou de fracasso, com a tentação da presunção ou do desânimo, são um teste para a qualidade de nossa intenção. S. Josemaria ensina a preparar-se para essas circunstâncias, que poderiam levar a pessoa a fechar-se em si mesma, distorcendo a vontade. Tens de permanecer vigilante, para que os teus êxitos profissionais ou os teus fracassos - que virão! - não te façam esquecer, nem por um instante, qual é o verdadeiro fim do teu trabalho: a glória de Deus! [6]

Para fortalecer a retidão de intenção, verdadeiro pilar da unidade de vida, é necessário procurar a presença de Deus no trabalho — oferecendo-o no início, renovando esse oferecimento quando for possível, agradecendo ao terminar... E procurar que as práticas de piedade - principalmente, a Santa Missa se for possível nela participar – se dilatem ao longo do dia num diálogo contínuo com o Senhor. Esquecer-se de Deus na profissão indica pouca unidade de vida, e não simplesmente um caráter distraído: quem ama de verdade não se esquece do amado.

Critério reto

A retidão de intenção é essencial para a unidade de vida, porém não devemos esquecer que a vontade necessita da razão, como guia, iluminada pela fé. Há pessoas que não conseguem ter uma conduta coerente, não por má vontade, mas por falta de critério. Quando não colocamos os meios para formar bem a consciência, para adquirir um conhecimento profundo das consequências morais de cada profissão, corremos o risco de aceitar como norma o que é normal. É possível então que se cometam com boa vontade graves erros e injustiças, e, por não saber julgar com prudência, deixar de fazer o bem que se deve fazer. A falta de critério impede-nos de alcançar a unidade de vida.

Um homem de critério encontra o que é o bom, sem cair em extremismos nem pactuar com a mediocridade. Às vezes, a falta de critério leva a pensar que a alternativa a um defeito é o defeito oposto: que para não sermos rígidos temos de ser fracos, ou para não sermos agressivos, bondosos... Na prática, a natureza das virtudes não foi bem entendida. O ponto médio em que consiste a virtude —in medio virtus — não é ficar no meio, sem aspirar ao cimo, mas alcançar o cume entre dois defeitos [7]. Pode ser-se enérgico e manso ao mesmo tempo, compreensivo e exigente com os deveres, veraz e discreto, alegre sem ser ingénuo. Sede, pois, prudentes como as serpentes, mas simples como as pombas [8], disse o Senhor.

O critério necessário para a unidade de vida é um critério cristão, não simplesmente humano, pois a sua regra não é unicamente a reta razão, mas a razão iluminada pela fé viva, a fé configurada pela caridade. Só então as virtudes humanas são virtudes cristãs. Um filho de Deus não tem de cultivar dois tipos de virtudes, umas humanas e outras cristãs, umas sem a caridade e outras com ela, porque isto seria uma vida dupla. No seu trabalho não deve conformar-se com praticar numas coisas a justiça só humana — limitando-se, por exemplo, ao estrito cumprimento da lei — e noutras a justiça cristã, com a alma da caridade, mas sempre e em tudo esta última, a justiça de Cristo. Considerai especialmente os conselhos e as advertências com que Ele preparava aquele punhado de homens para serem seus Apóstolos, seus mensageiros, de um ao outro extremo da terra. Qual é a pauta principal que lhes marca? Não é o preceito novo da caridade? Foi pelo amor que eles abriram caminho naquele mundo pagão e corrompido. (...) Quando se faz justiça apenas segundo o rigor da norma, não vos admireis de que a gente se sinta magoada: a dignidade do homem, que é filho de Deus, pede muito mais. A caridade tem de ir dentro e ao lado, porque tudo dulcifica, tudo deífica: Deus é amor (1Jo 4, 16) (...).

A caridade - que é como um generoso exceder-se da justiça - exige primeiro o cumprimento do dever. Começa-se pelo que é justo, continua-se pelo que é mais equitativo... Mas, para amar, requer-se muita finura, muita delicadeza, muito respeito, muita afabilidade; numa palavra, é preciso seguir o conselho do Apóstolo: Levai uns as cargas dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo (Gal 6,2). (...) Isto requer a inteireza de submeter a vontade própria ao modelo divino, de trabalhar por todos, de lutar pela felicidade eterna e pelo bem-estar dos outros. Não conheço melhor caminho para sermos justos que o de uma vida de entrega e de serviço [9]. Isto é ter critério cristão, luz imprescindível para a unidade de vida. Adquirir esse critério exige dedicar tempo à formação, e em particular ao estudo da doutrina. Seria temerário fiar-se na intuição e não pôr os meios para cultivar a mente. Porém, um estudo teórico não seria suficiente. A unidade de vida cristã requer uma doutrina assimilada na oração.

Valentia

Além de querer e de saber, a unidade de vida exige atuar, pois obras é que são amores, não as boas palavras [10]. Que as vossas boas obras glorifiquem vosso Pai que está nos céus [11], disse o Senhor. Convém examinar-se com franqueza, como aconselha S. Josemaria: Propaga-se à tua volta a vida cristã? Pensa nisto diariamente [12].

Quando há unidade de vida é lógico que se note, com naturalidade, ao nosso redor. Quem oculta a sua condição de cristão por medo a que o rotulem, ou por timidez ou por vergonha, quebraria a unidade de vida, não poderia ser sal e luz, as suas obras seriam estéreis em relação à vida sobrenatural. O Senhor disse a cada um de nós: dabo te in lucem gentium, ut sit salus mea usque ad extremum terrae [13], colocar-te-ei como luz das gentes, para que a minha salvação chegue aos confins da terra.

Temos de ter a coragem de viver pública e constantemente de acordo com a nossa santa fé [14], escreve S. Josemaria, fazendo eco à advertência do Senhor: se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na sua glória [15]. Jesus impele-nos também com uma maravilhosa promessa: quem der testemunho de mim diante dos homens, também eu darei testemunho dele diante de meu Pai que está nos céus [16]. Não há lugar para ambiguidades. Não devemos ter medo de falar de Deus: com a palavra, porque o próprio Cristo mandou Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura [17], e com o exemplo de uma fé que opera pela caridade [18].

É natural que as pessoas, no ambiente em que um cristão atua, conheçam a sua fé viva e operante. Com maior razão deverá ser facilmente reconhecível, por contraste, numa sociedade em que predominam o materialismo e o hedonismo. Se passar inadvertida por muito tempo, não seria por naturalidade, mas pelo facto de ter uma vida dupla. Isto é o que infelizmente acontece com aqueles que relegam a fé para a vida "privada". Esta atitude, se não é simples cobardia, quando corresponde à ideia de que a fé não deve influir na conduta profissional, reflete uma mentalidade não laical, mas laicista, que pretende afastar Deus da vida social, e muitas vezes prescindir também da lei moral. É justamente o oposto ao ideal de colocar Cristo no cume de todas as atividades humanas. A isto são chamados os cristãos, e é bom que muitos ao nosso lado o saibam. Mais ainda, certamente o apostolado do cristão que vive no meio do mundo deve ser de amizade e confidência [19] com os colegas de profissão, um a um. Porém isto não exclui que às vezes seja conveniente ou necessário — exigência da unidade de vida — falar em público e explicar as razões de uma conduta moral, humana e cristã. As dificuldades podem ser muitas, porém a fé assiste ao cristão e dá-lhe a fortaleza de que necessita para defender a verdade e ajudar a todos a descobri-la.

Na prática, a experiência diz-nos que, mesmo evitando os extremos, é fácil deixar-se influir por essa mentalidade laicista e convencer-se, por exemplo, de que num determinado ambiente profissional não é oportuno em nenhum caso falar de Deus, porque seria chocante ou estaria fora de lugar, ou porque outros alegariam que as posturas de um cristão em questões profissionais estão condicionadas pela religião. Apresenta-se então a tentação de colocar entre parênteses a própria fé, precisamente quando deveria manifestar-se.

Aconfessionalismo. - Neutralidade. - Velhos mitos que tentam sempre remoçar. Tens-te dado ao trabalho de meditar no absurdo que é deixar de ser católico ao entrar na Universidade, ou na Associação profissional, ou na sábia Academia, ou no Parlamento, como quem deixa o chapéu à porta? [20]. S. Josemaria não incita a alardear a fé, nem a utilizar etiquetas de católico que não combinam com a mentalidade laical. O que pede é preocupar-se em meditar, cada um nas suas circunstâncias, quais são as exigências externas e visíveis da unidade de vida na própria profissão e atuação social. Tens de ter a valentia, que em algumas ocasiões não terá de ser pouca, dadas as circunstâncias dos tempos, de fazer presente — melhor dito, tangível — a tua fé: que vejam as vossas obras boas e o motivo das vossas obras, ainda mesmo quando vier às vezes a crítica e a contradição de uns e de outros [21].

A unidade de vida é um dom de Deus e, por sua vez, uma conquista que exige luta pessoal. O trabalho profissional é terreno em que se forja essa unidade através de decisões concretas de atuar sempre diante de Deus e com vibração apostólica. Com a graça de Deus havemos de aspirar e chegar a amá-lo com totalidade: ex todo corde, ex tota anima, ex tota mente, ex tota virtute [22], com todo o coração, com toda a alma, com toda a mente, com todas as forças.


[1] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 10.

[2] Mt 6, 24.

[3] S. Josemaria, Caminho, n. 724.

[4] Cf. Ibid. n. 788

[5] Ibid. n. 290.

[6] S. Josemaria, Forja, n. 704.

[7] Cf. S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 83.

[8] Mt 10, 16.

[9] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 173.

[10] Cf. S. Josemaria, Caminho, n. 933.

[11] Mt 5, 16.

[12] S. Josemaria, Forja, n. 856.

[13] Is 49, 6.

[14] S. Josemaria, Sulco, n. 46.

[15] Lc 9, 26.

[16] Mt 10, 32.

[17] Mc 16, 15.

[18] Gal 5, 6.

[19] S. Josemaria, Caminho, n. 192.

[20] S. Josemaria, Caminho, n. 353.

[21] S. Josemaria, Instrução, 8-XII-1941, n. 13, em E. Burkhart, J. López Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de San Josemaría, III, Rialp, Madrid, 2013, p. 647.

[22] Mc 12, 30.

J. López Díaz (2003 – revisto julho 2014)

Foto: BillyWilson