Uma festa portuguesa: as Cinco Chagas de Cristo

Celebra-se a 7 de fevereiro e tem uma longa tradição que remonta aos primórdios da nacionalidade, estando presente nas bandeiras nacionais, sendo um dos poucos, senão o mais explícito símbolo que permaneceu nos mais diversos tempos.

1. Nota histórica sobre a "A festa das cinco chagas de Cristo"

2. Texto para meditar: meter-se nas chagas de Cristo

3. Comentário ao Evangelho de 7 de fevereiro

4. Meditação da Festa das Cinco Chagas de Cristo


Nota histórica sobre a "A festa das cinco chagas de Cristo"

Durante a época medieval, particularmente nos séculos XII e XIII, cresceu por toda a Europa a devoção às Chagas de Cristo – não só às chagas da flagelação e da coroação de espinhos mas, particularmente, às Chagas que abriram os cravos nas mãos e pés do Senhor e à Chaga que Lhe abriu, no lado, o soldado romano.

A pregação de S. Bernardo de Claraval e de S. Francisco de Assis contribuíram, em muito, para que essa devoção se difundisse entre o povo cristão.

Também a abertura dos Lugares Santos, devida à ação dos Cruzados, permitiu a realização de peregrinações a esses locais onde Cristo tinha pregado, feito milagres e sofrido a sua Paixão.

A devoção à Humanidade de Cristo – e, sobretudo de Cristo sofredor – ia-se, pouco a pouco, enraizando na Cristandade e cristalizando em orações, algumas atribuídas a Santa Clara de Assis, a Santa Matilde de Hackeborn ou a Santa Gertrudes de Helfta.

Em Portugal, a devoção às Cinco Chagas de Cristo manifestou-se desde cedo, reportando-se aos inícios da nacionalidade, sobretudo por mão dos beneditinos. Mas será somente a partir dos séculos XV e XVI que essa devoção será claramente associada à própria fundação do Reino de Portugal e ao seu brasão de armas.

Com efeito, nalguns textos da época[1], relata-se a aparição de Cristo crucificado a D. Afonso Henriques, na véspera da Batalha de Ourique, na qual as suas tropas defrontariam os exércitos infiéis, liderados por cinco reis mouros: «Afonso, antes de dar sinal aos soldados, estando ajoelhado a orar, viu o Salvador pendente da Cruz. Era tal a confiança do ânimo real, tal a fé gravada no seu coração que, longe de perturbar-se com tão estupendo milagre, ousou dizer estas palavras: que não era ao homem que crê firmemente que Jesus devia mostrar-se, mas aos hereges e apartados dessa fé ou a ela contrários é que era preciso mostrar-se dessa forma»[2]. Mas Cristo afiançou àquele que seria o primeiro Rei de Portugal: «Não te apareci deste modo para acrecentar tua fé, mas para fortalecer teu coração neste conflito e fundar os princípios do teu Reyno sobre pedra firme»[3]. E assim, tendo vencido a batalha de Ourique, quis D. Afonso Henriques que constassem no seu escudo as armas que ostentaram todos os reis portugueses e que ostenta, atualmente, a bandeira de Portugal: Cinco Quinas, em honra das Cinco Chagas de Cristo e como representação dos cinco reis mouros vencidos.

Deste modo, poder-se-á dizer que é a partir do século XVI que o momento da fundação do reino, simultaneamente acontecimento militar e sobrenatural, se incorpora na memória oficial de Portugal.

Nos círculos cultos, esta memória é amplamente difundida, manifestando-se através da arte e da literatura. Grandes nomes como Nicolau Chanterene, na escultura ou, já no âmbito da literatura, Sá de Miranda, Gil Vicente, João de Barros, André de Resende ou Luís de Camões, entre outros, fazem eco desta tradição entre a sociedade portuguesa.

Também no âmbito público, o milagre de Ourique e as Cinco Chagas são referidos, como aconteceu na oração fúnebre das exéquias de D. João III ou na pregação da bênção da bandeira feita aquando da partida de D. António, Prior do Crato, para Tânger, em 1574.

Já no século XVII, a necessidade de legitimação da autonomia de Portugal, levará ao aparecimento de textos que justifiquem e demonstrem o destino único e independente de Portugal. O chamado “juramento de Afonso Henriques”, pretensamente descoberto no Mosteiro de Alcobaça, afirmará que Portugal nasceu por vontade expressa de Deus, num juramento feito por Cristo aparecido ao próprio Afonso Henriques: Volo in te et in semine tuo, imperium mihi stabilire! – seria uma promessa feita ao primeiro Rei de Portugal, de um Império cristão – um chamamento à vocação missionária de Portugal.

Se, por um lado, o episódio de Ourique e o aparecimento de Cristo a Afonso Henriques serviram para o fortalecimento do sentimento de nacionalidade, é também verdade que contribuíram para que arreigasse profundamente, no povo português, a devoção às Chagas de Cristo.

Este terá sido um dos motivos que levou a que, já no século XVIII, o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. António de Almeida, pedisse ao Papa Bento XIV, a concessão da celebração do Ofício e Missa das Cinco Chagas. Além disso, solicitou ainda a concessão de um aditamento ao Ofício, na versão especialmente destinada a Portugal, de um texto que faria referência ao aparecimento de Cristo a Afonso Henriques, explicitando a relação entre o milagre de Ourique e a inscrição das Cinco Chagas no brasão de Portugal. Em 1753, tanto o Ofício como o aditamento foram aprovados e concedidos pelo Santo Padre.

Apesar de no século XIX, fruto do espírito positivista, terem surgido várias opiniões contrariando a tradição da intervenção sobrenatural em Ourique, o facto é que a devoção às Cinco Chagas e a sua ligação à história de Portugal permaneceram intactas.

Tal era a força dessa devoção que, mesmo no princípio do século XX, com a implantação da República, profundamente anticristã na época, não se retiraram da bandeira nacional, então alterada, as Quinas, sinal das Cinco Chagas de Cristo.

Ainda hoje, no dia 7 de fevereiro, se celebra em Portugal, com profunda e especial devoção, a Festa das Cinco Chagas, honrando a Humanidade de Cristo e lembrando a promessa que Cristo teria feito a Afonso Henriques: a fundação de Portugal.

Cristina Brás Agostinho

Notas

  1. A referência ao milagre de Ourique aparece, entre outros documentos, no século XV, na “segunda Chronica breve de Santa Cruz de Coimbra” (1451), na “Oração de Obediência” de Vasco Fernandes de Lucena (1485), embaixador de D. João II ao Papa Inocêncio VIII e, já fora de Portugal, nas “Mémoires touchant les souveraines maisons pour la plupart D’Autriche, Bourgogne et France”, iniciadas em 1491, por Olivier de la Marche.
  2. Martim de Albuquerque, Orações de obediência. Séculos XV a XVII, vol. 3, Lisboa, Ed. Inapa, 1988 (edição fac-similada com tradução de Miguel Pinto de Menezes)
  3. Frei António Brandão, Monarchia Lusitana. III Parte, Livro X, Cap. V, fol.128v

Texto para meditar: meter-se nas chagas de Cristo

S. João conta que no dia da ressurreição, ao entardecer, os discípulos tinham-se reunido em casa com as «portas fechadas com medo dos judeus» (Jo 20, 19). Estavam fechados, cheios de temor. Então, «veio Jesus, apresentou-se no meio deles e disse-lhes: – A paz esteja convosco. E dito isto mostrou-lhes a mãos e o lado» (Jo 20, 19-20). De repente, o desânimo daqueles homens transformou-se numa profunda alegria. Receberam a paz que o Senhor lhes trazia e acolheram depois o dom do Espírito Santo (cf. Jo 20, 22).

Muitos detalhes chamam a atenção nesta cena do Evangelho. O que é que os apóstolos esperavam? Jesus apresenta-se inesperadamente diante deles e a sua presença enche-os de alegria e de paz. Conhecemos algumas das suas palavras e dos seus gestos, mas como seria o olhar que lhes dirigiu? Tinham-no abandonado. Deixaram-no sozinho. Fugiram cobardemente. No entanto, o Senhor não os censura. Ele próprio o tinha anunciado. Sabia que daquela debilidade podia surgir uma profunda conversão: «Eu roguei por ti –dizia a Pedro antes da paixão– para que a tua fé não desfaleça; e tu, quando te converteres, confirma os teus irmãos» (Lc 22, 31-32). O coração contrito dos apóstolos podia acolher agora mais plenamente o Amor que Deus lhes oferecia. De outro modo, talvez eles – e Pedro à cabeça – teriam continuado a contar demasiado com as suas próprias forças.

«NO CORPO DE CRISTO RESSUSCITADO AS CHAGAS NÃO DESAPARECEM, PERMANECEM, PORQUE AQUELAS CHAGAS SÃO O SINAL PERMANENTE DO AMOR DE DEUS POR NÓS» (PAPA FRANCISCO)

Por outro lado, porque é que Jesus lhes mostra as mãos e o lado? Ficou neles um rasto evidente do tormento da crucifixão. E, no entanto, a vista das chagas não os enche de dor, mas de paz; não lhes provoca rejeição, mas alegria. Pensando bem, essas marcas dos cravos e da lança são um selo do Amor de Deus. Trata-se de um detalhe cheio de sentido: Jesus quis que no seu corpo permanecessem as feridas da Paixão depois de ressuscitar para que não ficasse nenhum resquício de desconfiança e ninguém pudesse pensar que, à vista da nossa resposta tantas vezes medíocre e mesmo fria, se ia arrepender do que tinha feito. O Amor de Cristo é firme e plenamente consciente.

Além disso, para o incrédulo Tomé as chagas serão o sinal inequívoco da Ressurreição. Jesus é o Filho de Deus, que verdadeiramente morreu e ressuscitou pelos nossos pecados. «As chagas de Jesus – ensina o Papa – são um escândalo para a fé, mas são também a comprovação da Fé. Por isso, no corpo de Cristo ressuscitado as chagas não desaparecem, permanecem, porque aquelas chagas são o sinal permanente do amor de Deus por nós e são indispensáveis para crer em Deus. Não para crer que Deus existe, mas para crer que Deus é amor, misericórdia, fidelidade. S. Pedro, citando Isaías, escreve aos cristãos: «As Suas feridas curaram-nos» (1P 2, 24; cf. Is 53, 5)»[1].

A tradição espiritual encontrou nas chagas do Senhor um manancial de doçura. S. Bernardo, por exemplo, escrevia: «Através destas fissuras, posso provar mel silvestre e azeite de rochas de pedernal (cf. Dt 32, 13), quer dizer, posso saborear e ver como o Senhor é bom»[2]. Nessas feridas reconhecemos o Amor de Deus sem medida. Do seu coração trespassado brota o dom do Espírito Santo (cf. Jo 7, 36-39). Ao mesmo tempo, as feridas do Senhor são um refúgio seguro. Descobrir a profundidade dessas fendas pode abrir um novo Mediterrâneo na nossa vida interior.

«A Chaga Santíssima da mão direita do meu Senhor»

«Metei-vos nas chagas de Cristo», sugeria S. João de Ávila: «aí, diz Ele que mora a sua pomba, que é a alma que em simplicidade o procura»[3]. «Nas Vossas chagas, escondei-me», reza uma conhecida oração. Também S. Josemaria fará seu este modo de se aproximar do Mestre, tão arraigado entre os cristãos. Assim, em 1933, anota: «Meter-me, cada dia, numa chaga do meu Jesus»[4].

Esta é uma das devoções que manterá ao longo da sua vida inteira, e que recomendará também aos jovens que se aproximam dele[5]. Contudo, ganha um relevo especial a partir de uma experiência que lhe abriu um panorama novo, imenso, e que teve lugar em plena guerra civil espanhola, enquanto vivia em Burgos. Era uma época de sofrimento para ele: os seus filhos no Opus Dei encontravam-se espalhados pela península; uns nas frentes de batalha, outros escondidos em diferentes pontos, alguns deles ainda na zona em que havia perseguição religiosa. O mesmo sucedia com a sua mãe e os seus irmãos. Das suas filhas espirituais, enfim, mal tinha notícias. Além disso, alguns dos que antes o seguiam tinham perdido a vida durante a guerra.

Nestas circunstâncias, S. Josemaria sentia-se chamado a redobrar os seus esforços, a sua oração e, em particular, as suas penitências. No entanto, nos primeiros dias de junho de 1938, enquanto se dirigia para o Mosteiro das Huelgas, onde estava a realizar uma tarefa de investigação, recebe uma especial luz de Deus, que descreve numa carta a Juan Jiménez Vargas, nesse mesmo dia:

«ESTA MANHÃ (...) DESCOBRI UM MEDITERRÂNEO: A CHAGA SANTÍSSIMA DA MÃO DIREITA DO MEU SENHOR. E ALI ME TENS: TODO O DIA ENTRE BEIJOS E ADORAÇÕES. É VERDADEIRAMENTE AMÁVEL A SANTA HUMANIDADE DO NOSSO DEUS!» (S. JOSEMARIA)

«Querido Juanito: Esta manhã, a caminho das Huelgas, onde fui para fazer a minha oração, descobri um Mediterrâneo: a Chaga Santíssima da mão direita do meu Senhor. E ali me tens: todo o dia entre beijos e adorações. É verdadeiramente amável a Santa Humanidade do nosso Deus! Pede-lhe tu que Ele me dê o seu verdadeiro Amor: assim ficarão bem purificados todos os meus outros afectos. Não vale dizer: coração na Cruz!: porque, se uma Ferida de Cristo limpa, cura, aquieta, fortalece, inflama e enamora, o que não farão as Cinco abertas no madeiro? Coração, na Cruz!: Meu Jesus, que mais quereria eu! Entendo que, se continuo por este modo de contemplar (meteu-me S. José, meu Pai e Senhor, a quem pedi que me soprasse), vou tornar-me mais louco do que nunca estive. Experimenta tu!»[6].

Já há algum tempo que percorria o caminho da Humanidade do Senhor. Também a devoção às chagas de Cristo. Contudo, inopinadamente, abriu-se diante dele como que «um Mediterrâneo». Aprofundou de repente no significado de Amor redentor que tinham aquelas feridas, e compreendeu que o melhor modo de corresponder a tão grande Amor não consistia no que ele pudesse fazer, mas justamente em se submergir n’Ele: contemplando-O e deixando-se abraçar inteiramente por esse Amor. A carta continua precisamente a propósito do esforço que lhe provoca a sua situação: «Sinto uma inveja enorme dos que estão nas frentes, apesar de tudo». E alude à figura célebre de um sacerdote castrense, conhecido pela sua vida penitente: «Ocorre-me pensar que, se não tivesse bem assinalado o meu caminho, seria magnífico deixar para trás o P. Doyle. Mas… isso ir-me-ia muito bem: a penitência nunca me custou grande coisa. Sem dúvida, é esta a razão de que me levem por outro caminho: o Amor». O seu caminho é o Amor: amar e deixar-se amar. Ao despedir-se, confirma-se nesta convicção: «Um abraço. A partir da Chaga da mão direita, abençoa-te o teu Padre»[7].

Aquele acontecimento, aquela luz inesperada, foi um sinal de esperança e constituiu sem dúvida um estímulo para o seu trabalho sacerdotal. Graças a esta iluminação divina, uma realidade conhecida e repetidas vezes meditada –um caminho transitado e recomendado por ele próprio –converteu-se de repente numa novidade, uma mina de riqueza inesgotável, da qual já não queria separar-se.

Defendidos pelo Amor

As chagas de Jesus são um recordatório perene do seu Amor, que chegou ao extremo no seu sacrifício na Cruz. Deus não se arrepende de nos amar. Por isso, a contemplação desse seu Amor é uma fonte de esperança. À vista do Ressuscitado, que conserva as marcas da sua Paixão, apercebemo-nos de que «precisamente ali, no ponto extremo da sua humilhação –que é também el ponto mais alto do amor– germinou a esperança. Se algum de vós pergunta: “Como nasce a esperança?”. “Da cruz. Olha para a cruz, olha para Cristo Crucificado e dali te chegará a esperança que já não desaparece, essa que dura até à vida eterna”»[8]. Na Cruz nasceu e renasce sempre a nossa esperança. Assim, «com Jesus cada obscuridade nossa pode ser transformada em luz, toda a derrota em vitória, toda a desilusão em esperança. Toda: sim, toda»[9]. É essa segurança que fazia exclamar a S. Paulo: «Quem nos afastará do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, ou a espada? (…) Mas em todas essas coisas vencemos amplamente graças àquele que nos amou» (Rm 8, 35.37).

COMO AOS APÓSTOLOS, JESUS NÃO NOS OLHA COM RESSENTIMENTO: NÃO NOS LANÇA À CARA OS NOSSOS PECADOS, AS NOSSAS DEBILIDADES, AS NOSSAS TRAIÇÕES

Ao constatar a nossa debilidade e o nosso pecado, frequentemente pode colar-se na nossa alma, de diversos modos, a tentação da desesperança. O que no momento tínhamos aceitado talvez com frivolidade ou com certa condescendência, apresenta-se de repente como um absurdo «não», uma bofetada a Deus que nos ama. Também a nossa resposta tíbia e sem vontade pode ser um motivo de desespero. Mas tudo isso não é mais do que uma série de tentações da mesma coisa que nos fez cair. Contemplar as chagas do Senhor pode ser o melhor modo de reagir: as suas chagas recordam-nos que o seu amor é «forte como a morte» (Cant 8, 16). Mais ainda, porque o seu Amor venceu a morte. Um poeta contemporâneo expressa-o de um modo tão sintético quão formoso: «Lavado pela água do lado / e dentro da ferida defendido / de tanto não que só traz nada, / de tanto tíbio sim, de tanta trégua»[10].

Voltar a contemplar a Humanidade do Senhor, ferida pelos nossos pecados, ressuscitada, pode ser para nós uma fonte de esperança. Como aos apóstolos, Jesus não nos olha com ressentimento. Não nos lança à cara os nossos pecados, as nossas debilidades, as nossas traições. Pelo contrário, reafirma-nos, porque o seu amor é verdadeiramente incondicional. Não nos diz: «Amo-te, se te portas bem», mas «Amo-te, para mim és um tesouro, e continuarás a sê-lo aconteça o que acontecer». Essa consciência, que pode nascer contemplando as feridas abertas no corpo do Senhor, encher-nos-á de alegria e de paz. Aconteça o que acontecer, podemos refugiar-nos nelas, acolhendo-nos de novo ao perdão de Deus: «Na minha vida pessoal –contava o Papa numa homilia– vi muitas vezes o rosto misericordioso de Deus, a sua paciência; vi também em muitas pessoas a determinação de entrar nas chagas de Jesus, dizendo-Lhe: “Senhor estou aqui, aceita a minha pobreza, esconde nas tuas chagas o meu pecado, lava-o com o teu sangue”. E vi sempre que Deus o fez, acolheu, consolou, lavou, amou»[11].

Reconhecer a nossa pequenez não é uma derrota, nem uma humilhação. Poderia sê-lo, se Deus fosse alguém que quisesse dominar-nos. Mas não é. É o Amor que O move: o Amor incondicional que nos dá, e que espera que saibamos acolher.

O caminho da compaixão

Existem muitos modos de se aproximar das chagas do Senhor. «Ide como mais vos comova», aconselhava S. Josemaria[12]. Sabemos como lhe agradava meter-se com a imaginação no Evangelho. Em Santo Rosário, por exemplo, ao contemplar o primeiro mistério glorioso, comenta: «E, antes de terminar a dezena, tu beijaste as chagas dos seus pés..., e eu mais atrevido –por ser mais criança– pus os meus lábios sobre o seu lado aberto»[13].

Recordando o modo como S. Josemaria fazia a ação de graças da Missa, lugar privilegiado para renovar diariamente o seu encontro pessoal com o Amor da sua Vida, D. Javier descrevia como «se ajoelhava nos primeiros minutos, no chão ou no genuflexório: olhando para o crucifixo de bolso seguro nas suas mãos, recitava a oração En ego [Olhai para mim, oh meu amado e bom Jesus]. Enquanto repetia as palavras que se referiam às chagas do Senhor, beijava devotamente cada uma»[14].

TOCAR CRISTO NOS QUE SOFREM É UMA MANEIRA DE NOS DEIXARMOS INTERPELAR POR ELE, DE NOS APROXIMARMOS DAS SUAS CHAGAS E DE RESPONDER COM AMOR AO SEU AMOR

As feridas do Senhor, que com tanta profundidade S. Josemaria descobriu naquela manhã de junho, não só revelam o Amor que o Senhor nos tem: são ao mesmo tempo um convite a corredimir com Ele, como o faz Santa Maria; a ser seu Cireneu, a consolá-lo por tantas ofensas que ferem o seu Coração, sobretudo porque ferem o nosso... Um apelo, enfim, a cuidá-lo precisamente naqueles «irmãos mais pequenos» com quem se identifica, em quem de algum modo quis ficar (cf. Mt 25, 40).

Por isso, dentro do itinerário que levou S. Josemaria a descobrir aquele Mediterrâneo –sem dúvida uma luz de Deus– não é possível esquecer a enorme quantidade de horas que dedicou a cuidar de doentes e de pessoas sem recursos pelos bairros mais pobres de Madrid. Esse é, naturalmente, um modo excelente de descobrir o Amor de Deus: sair de nós mesmos para tocar Jesus nas pessoas que sofrem. Para S. Josemaria, tratava-se de um caminho seguro.

Esse caminho leva-nos a deixarmo-nos interpelar por Ele, a aproximarmo-nos das suas chagas e a responder com amor ao seu Amor. Aprendemos assim a viver com os outros a mesma ternura que Deus derrama sobre a nossa debilidade pessoal. Por este caminho, a nossa própria vida adquire um renovado sentido de missão que nos lança para além de nós mesmos, contando não com as nossas forças, mas com uma chamada que vem de Deus, que nos transforma e conta connosco para semear no mundo a sua paz e a sua alegria. O Papa insiste incansavelmente neste ponto: «Às vezes sentimos a tentação de ser cristãos mantendo uma prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros. (…) Quando o fazemos, a vida sempre se nos complica maravilhosamente e vivemos a intensa experiência de ser povo, a experiência de pertencer a um povo»[15].

Meter-nos nas chagas de Cristo, pelo caminho da compaixão e da contemplação, pode abrir-nos um autêntico Mediterrâneo: aprendemos assim a refugiar-nos nessas feridas de Amor, e a amar com todo o coração aqueles que nos rodeiam, começando pelos que mais o necessitam, que muitas vezes estão à beira do caminho, na nossa própria casa.

Fonte: Artigo de Jacob Vasconcelos em site ecclesia.pt e em "Novos mediterrâneos (III): A partir da chaga da mão direita"


[1] Francisco, Homilia, 27/04/2014.

[2] S. Bernardo, Sermão 61 (Sobre o livro do Cântico dos cânticos), 4. Abundantes testemunhos sobre esta devoção, e um modo de a viver, podem encontrar-se em P. Beteta, Mirarán al que traspasaron, Rialp, Madrid 2009.

[3] S. João de Ávila, Epistolário, carta 47. Cf. Cant 2,16.

[4] S. Josemaria, Apontamentos íntimos, n. 1799b, de 1933, em Santo Rosário. Edición crítico-histórica, Rialp, Madrid 2010, comentário ao primeiro mistério glorioso, p. 226, nota 5.

[5] «Ficarei metido, cada dia, cumprindo um propósito antigo, na Chaga do Lado do meu Senhor»: S. Josemaria, Apontamentos íntimos, n. 1763, de 1934; em Caminho. Edición crítico-histórica, Rialp, Madrid 2004, 3ª ed., comentário al n. 288.

[6] S. Josemaria, Carta a Juan Jiménez Vargas, 06/06/1938, em A. Vázquez de Prada, O Fundador do Opus Dei, vol. 2, Rialp, Madrid 2002, 288-289.

[7] Ibíd.

[8] Francisco, Audiência geral, 12/04/2017.

[9] Ibíd.

[10] Julio Martínez Mesanza, “Defendido”, em Gloria, Rialp, Madrid 2016.

[11] Francisco, Homilia, 07/04/2013.

[12] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 303.

[13] S. Josemaria, Santo Rosário, primeiro mistério glorioso.

[14] Javier Echevarría, Lembrando o Beato Josemaria, Diel, Lisboa 2000, p. 196.

[15] Francisco, Evangelii Gaudium, n. 270.