Um santo sempre jovem

Conferência de encerramento proferida pelo Cardeal Herranz no simpósio 'São Josemaria e os jovens' em Jaén, 19 e 20 de Novembro de 2010.

Hoje celebra-se na Basílica de São Pedro em Roma o Consistório para a criação de vinte e dois novos Cardeais. Deveria estar lá, mas justifiquei a minha ausência não só pela impossibilidade de mudar a data desta conferência, mas também porque me tinha comprometido a vir a este magnífico e prometedor Simpósio, que se enquadra na preparação da próxima 'Jornada Mundial da Juventude' e, por isso, também naquilo que o Santo Padre considera uma necessidade real e urgente para a Igreja, e mais ainda para a sociedade civil.

À esquerda São Josemaria Escrivá, Fundador do Opus Dei. À direita, o Cardeal D. Julián Herranz, autor deste artigo.

Refiro-me à urgência de enfrentar o desafio da prioridade educativa da juventude e, mais concretamente, de não deixar que a cultura do superficial e do efémero própria da sociedade consumista destrua os anseios que, nos corações jovens, clamam por ideais nobres e grandes, capazes de dar verdadeiramente sentido e beleza à sua existência.

Convidastes-me para vos falar do tema que dá o mote ao vosso Simpósio: ‘São Josemaria e os jovens’. Centenas de milhar – talvez milhões – de jovens em todo o mundo meditaram as seguintes palavras de São Josemaria, um santo que os conhecia bem e com quem tive a sorte de conviver dia-a-dia durante vinte e dois anos maravilhosos: “Que a tua vida não seja uma vida estéril. – Sê útil. – Deixa rasto. – Ilumina, com o resplendor da tua fé e do teu amor…”. Por essa já bem firme familiaridade ideal entre a juventude e São Josemaria, e porque aos jovens interessam sobretudo testemunhos de vida, permiti-me que eu – jovem cardeal de oitenta anos – intercale nesta conferência proposições doutrinais e também recordações pessoais, centradas em três datas concretas.

Primeira data: 21 de Novembro de 1950

Ao princípio da tarde desse dia, num centro madrileno do Opus Dei situado no primeiro andar de uma casa perto da Rua de Padilla, morria repentinamente de um ataque cardíaco Suso Garrido, um jovem universitário de vinte anos, que se tinha preparado com grande entusiasmo a fim de ir para Itália no dia seguinte com destino ao Colégio Romano, centro internacional de formação do Opus Dei em Roma. São Josemaria, presente em Madrid nesses dias, veio imediatamente rezar junto do corpo de Suso e para estar connosco que, como é compreensível, estávamos muito impressionados pelo que acontecera.

“VI COM ALEGRIA COMO PENETRA NOS JOVENS – NOS DE HOJE COMO NOS DE HÁ QUARENTA ANOS – A PIEDADE CRISTÃ, QUANDO A CONTEMPLAM FEITA VIDA SINCERA, QUANDO ENTENDEM QUE FAZER ORAÇÃO É FALAR COM O SENHOR COMO SE FALA COM UM PAI, COM UM AMIGO, SEM ANONIMATO, COM UM TRATA PESSOAL, NUMA CONVERSA ÍNTIMA (…)” (Temas actuais do cristianismo, n. 102)

Eu não conhecia pessoalmente o fundador do Opus Dei. Este primeiro encontro com ele, com o Padre, ia deixar na minha alma um tesouro de paz espiritual e de esperança sobrenatural, que os sessenta anos decorridos desde então não puderam anular ou esfumar no passado.

Um encontro assim, em circunstâncias tão singulares, além de me ajudar a compreender a riqueza espiritual e o espírito jovem de São Josemaria, confirmou-me na decisão da entrega total a Deus que eu tinha tomado uns dias antes apenas, com vinte anos – como os de Suso – de juventude aberta cheia de sonhos para o futuro. Vou explicar melhor.

Eu tinha conhecido a mensagem do Opus Dei nesse Verão, durante o serviço militar num acampamento de universitários. Aprendi pouco a pouco a procurar manter uma amizade sincera com Cristo, cultivada na leitura e meditação do Evangelho e na Eucaristia.

Compreendi cedo que na realidade era Ele quem me tinha procurado, e a nossa a amizade foi crescendo com toda a naturalidade, bem imerso nas tarefas vulgares, e não apesar dessas mesmas tarefas, da vida no acampamento: instrução em ordem aberta e em ordem fechada, atletismo, aulas teóricas e manobras de estratégia militar, desfiles… Com os meus amigos do Opus Dei aprendi a levar a sério o ser cristão, a lutar por ser fiel aos compromissos baptismais de santidade pessoal e empenho apostólico.

Já antes, e como muitos dos meus companheiros de estudo ou de desporto, sentia na minha alma uma ânsia de coisas grandes, de dedicar a minha vida a ideais elevados, ainda que fossem árduos. Era uma inquietação serena, que reflectia bem estas palavras de um poeta que gostava de ler, José María Valverde: “Tu, amigo, tu que tens vinte anos, diz-me: o que vais fazer com eles?”. A resposta encontrei-a numa outra pergunta com igual ímpeto juvenil, que um sacerdote, Josemaria Escrivá, num livro de espiritualidade –Caminho– – fazia aos jovens: “Não vos dá vontade de gritar à juventude buliçosa que vos rodeia: Loucos!, deixai essas coisas mundanas que amesquinham o coração… e muitas vezes o aviltam … deixai isso e vinde connosco atrás do Amor?” (n. 790).

“Andava sempre, apesar dos anos, com a juventude madura do Amor”. (Forja, n. 493).

Essas “coisas mundanas” eram então, como o são hoje, os falsos deuses das três principais concupiscências que tentam o homem ferido pelo pecado original: o ídolo da avareza e do poder a todo o custo (“concupiscência dos olhos”), o ídolo da luxúria e da droga (“concupiscência da carne”) e o ídolo do poder (“soberba da vida”). Três concupiscências que acompanham inseparavelmente a natureza humana caída. O autor de Caminho sabia-o, mas o que São Josemaria Escrivá pedia aos jovens era que não deixássemos que o nosso coração se aviltasse rendendo-se vergonhosamente – por falta de luta ascética – ao culto de qualquer desses ídolos. Isso seria sacrificar no altar dos falsos e efémeros ‘paraísos’ as nossas mais nobres e profundas aspirações, a nossa sede de verdadeira liberdade e felicidade.

Amigos que me escutais!: podeis compreender com que alegria li agora, passados sessenta anos, as seguintes palavras de Bento XVI na sua Mensagem para a “Jornada Mundial da Juventude” do próximo ano em Madrid: “Sentir o desejo do que é realmente grande faz parte do ser jovem. Trata-se apenas de um sonho vazio que se desvanece quando uma pessoa se torna adulta? Não, o homem em verdade foi criado para o que é grande, para o infinito. Qualquer outra coisa é insuficiente. Santo Agostinho tinha razão: «o nosso coração está inquieto, até que não descansa em Ti» (…) O encontro com o Filho de Deus proporciona um dinamismo novo a toda a existência, Quando começamos a ter uma relação pessoal com Ele, Cristo revela-nos a nossa identidade e, com a sua amizade, a vida cresce e realiza-se em plenitude”.

“Vinde connosco atrás do Amor”. Aquela frase do jovem sacerdote Josemaria soava no meu coração aos vinte anos como o “Segue-me!” de Jesus aos seus primeiros discípulos junto ao mar da Galileia. Infundia-me temor e por sua vez agradava-me o pensamento de que esse chamamento divino pudesse ser também para mim. Outra frase daquele jovem sacerdote – “O Amor … bem vale um amor!” (Caminho, n. 171) – feriu-me como uma baioneta.

A graça de Deus fez-me audaz e decidi entregar-me completamente a Cristo, deixar tudo para entrar mais leve no futuro, jogar a minha existência toda numa só cartada: a cartada do Amor de Deus. Passaram sessenta anos, e asseguro-vos que nunca me arrependi: foram, são, sessenta anos de felicidade. Graças a Deus!

Mas voltemos àquele dia 21 de Novembro de 1950, em Madrid. Eu tinha diante de mim o autor do Caminho, o fundador do Opus Dei, a rezar diante do corpo de um jovem filho espiritual, que a morte acabara de levar com apenas 20 anos de idade. Impressionou-me a expressão enérgica e ao mesmo tempo doce do rosto de São Josemaria e o seu olhar ferido pela dor, mas sereno, como que trespassado por um íntimo abandono em Deus, por uma alegria espiritual. Ao terminar o responso falou-nos do sentido cristão da vida e da morte; disse-nos com estas palavra ou outras parecidas: “Meus filhos: para nós a morte significa entrar na Casa do Pai e encontrarmo-nos definitivamente com a Vida. Suso soube amar a Deus, foi fiel à sua Vontade e venceu a última batalha desta guerra de paz e de amor. Já está junto do Amor… o Amor com maiúscula!”

Precisamente esta expressão de São Josemaria – a vida como “guerra de paz e de amor” – leva-me a recordação para outra das três datas a que aludi.

Segunda data: 31 de Dezembro de 1971

Era o dia 31 de Dezembro de 1971 pela tarde, na Sede Central do Opus Dei em Roma. Num momento de reunião familiar com os membros do Centro do Conselho Geral, São Joseamria leu-nos uma nota pessoal recolhida nesse dia: “Este é o nosso destino na terra: lutar, por amor, até ao último instante. Deo gratias! (Graças a Deus!)”

“NÃO GRITARÍEIS DE BOA VONTADE À JUVENTUDE QUE SE MEXE À VOSSA VOLTA: LOUCOS! DEIXAI ESSAS COISAS MUNDANAS QUE AMESQUINHAM O CORAÇÃO…E MUITAS VEZES O AVILTAM…DEIXAI ISSO E VINDE CONNOSCO ATRÁS DO AMOR?” (CAMINHO, N. 790).

Se o cristão deve conceber sempre o seu “destino na terra”, a sua vida na dupla dimensão ascética e apostólica, como uma “guerra de paz e de amor”, esta exigência vocacional era particularmente intensa naqueles anos da vida da Igreja e do mundo. São Josemaria sofria imensamente perante a confusão doutrinal e disciplinar que reinava em amplos sectores da Igreja e ainda mais da sociedade civil, especialmente entre os jovens. A “crise pós-conciliar”, produzida por interpretações erradas do Concílio Vaticano II, tinha levado a uma redução temporalista da mensagem evangélica, colocando Deus à margem e pondo o homem como o centro, com os consequentes abusos litúrgicos e disciplinares, inúmeros abandonos sacerdotais e progressiva diminuição de vocações.

No âmbito da sociedade civil, a chamada “revolução de Maio de 68”, mistura explosiva de ideias de Marx, Freud e Marcuse, produziu sobretudo em nações europeias e americanas mudanças sociais por demais evidentes: contestação da noção e exercício da autoridade (tanto religiosa e civil, como paterna), desprezo do conceito natural e cristão de matrimónio e de família, falso ‘feminismo’ e absoluta “liberdade sexual”, etc. Contra alguns ideais nobres, a princípio, rapidamente afogados por tendências anárquicas prevalentes, impôs-se uma filosofia libertária e niilista, onde não havia lugar para Deus, nem para a consciência moral, nem para os valores autênticos que enobrecem a dignidade da pessoa.

Josemaria Escrivá, que nos tinha lido essa exortação a “lutar por amor até ao último instante”, completava, poucos dias depois, setenta anos. Não era o sacerdote jovem que eu tinha conhecido em Madrid no remoto ano de 1950. Mas o vigor juvenil da sua alma era o mesmo, tanto assim que tinha escrito referindo-se a um terceiro e indirectamente a si mesmo: “Andava sempre, apesar dos anos, com a juventude madura do Amor” (Forja, n. 493). Por isso, diante da hecatombe espiritual a que acabo de me referir e pensando sobretudo nos jovens que a estavam a sofrer e naqueles que ele previa – como sucedeu – que a deviam afrontar no futuro, nos disse: “Inactivos não vamos ficar”. Consequente com o propósito de “lutar por Amor”, repetia-nos com frequência este lema recolhido depois em Sulco: “Tarefa do cristão: afogar o mal em abundância de bem. Nada de fazer campanhas negativas, nem de ser anti-nada. Pelo contrário: viver de afirmação, cheios de optimismo, com juventude, alegria e paz; olhar para todos com compreensão: os que seguem Cristo e os que O abandonam ou não O conhecem.

Compreensão, porém, não significa abstencionismo, nem indiferença, mas actividade” (n. 864).

E São Josemaria, apoiado numa intensa oração de petição, desenvolveu um esforço enorme para pôr em marcha numerosíssimas iniciativas apostólicas em todo o mundo, especialmente para a formação integral dos jovens: colégios e universidades, iniciativas editoriais, clubes juvenis, escolas de ensino profissional, etc. E dava em todo o momento prioridade à formação espiritual, ao encontro pessoal de amizade com Cristo. Explicou numa entrevista: “Vi com alegria como penetra nos jovens – nos de hoje como nos de há quarenta anos – a piedade cristã, quando a contemplam feita vida sincera, quando entendem que fazer oração é falar com o Senhor como se fala com pai, com um amigo, sem anonimato, com um trato pessoal, uma conversa íntima; quando se procura que ressoem nas suas almas aquelas palavras de Jesus Cristo, que são um convite ao encontro confiante: vos autem dixi amicos (Jo. 15, 15), chamei-vos amigos; quando se lança um apelo forte à sua fé para que vejam que o Senhor é o mesmo ontem, hoje e sempre (Hebr. 13, 8).” (Temas actuais do Cristianismo, n. 102).

Sempre com esse empenho de formação humana e espiritual dos jovens, promoveu a preparação de uma Bíblia popular com comentários doutrinais e ascéticos que facilitassem a meditação da Sagrada Escritura e especialmente a intimidade com a Santíssima Humanidade de Cristo.

Estimulou a difusão e estudo do catecismo e de livros espirituais de doutrina segura e, face ao esfriamento da vida de piedade – especialmente da prática dos Sacramentos –, fomentou entre centenas de milhares de jovens a vida eucarística e o amor à confissão sacramental. “Cor meum vigilat”, “o meu coração vigia”, ouvíamo-lo repetir frequentemente. E acrescentava: “Meus filhos: não se deve tolerar que em tempo de paz, ou na vida militar, que uma sentinela adormeça. Mas em tempo de guerra… Não podemos adormecer”.

Queridos amigos: comove-me pensar na grande actualidade que têm estes ensinamentos e iniciativas apostólicas de São Josemaria, quando leio as seguintes palavras do Papa na sua Mensagem para a “Jornada Mundial da Juventude”: “Há uma forte corrente de pensamento laicista que deseja afastar Deus da vida das pessoas e da sociedade, propondo e tentando criar um ‘paraíso’ sem Ele. Mas a experiência ensina que o mundo sem Deus se converte num ‘inferno’, onde prevalecem o egoísmo, as divisões nas famílias, o ódio entre as pessoas e os povos, a falta de amor, de alegria e de esperança”. E, com expressões que eram também familiares a São Josemaria, o Papa aconselha aos jovens: “Escutai-O [a Cristo] como o verdadeiro Amigo com quem partilhar o caminho da nossa vida. Com Ele a vosso lado sereis capazes de afrontar com valentia e esperança as dificuldades, os problemas, também as desilusões e os fracassos. […] Nos Sacramentos Ele aproxima-se de modo particular e se nos entrega. Aprendei a ‘ver’ a ‘encontrar’ Jesus na Eucaristia, onde está presente e próximo até entregar-se como alimento para o nosso caminho; no Sacramento da Penitência, onde o Senhor manifesta a sua misericórdia oferendo-nos sempre o perdão. […] Conhecei-O mediante a leitura dos Evangelhos e do Catecismo da Igreja Católica; falai com Ele na oração, confiai n’Ele”.

São Josemaria -conta o Cardeal Herranz- leu-nos uma nota pessoal tomada nesse dia. A nota dizia assim: "ESTE É O NOSSO DESTINO NA TERRA: LUTAR, POR AMOR, ATÉ AO ÚLTIMO INSTANTE. DEO GRATIAS!"

São ensinamentos que São Josemaria repetiu até à morte e continua agora repetindo. Mas esta realidade leva-me à terceira e última data que quero recordar, brevemente para não vos cansar.

Terceira data: 26 de Junho de 1975

A 22 de Maio, um mês antes da sua morte, São Josemaria tinha escrito numa das suas notas espirituais: “Da outra vida só nos separa um véu tão ténue, que vale a pena estar sempre disposto a empreender essa viagem com alegria” (J. Herranz, En las afueras de Jericó, p. 204). Estava efectivamente bem-disposto, com a alma sempre jovem gozosamente abandonada no seu Pai Deus, quando esse ‘ténue véu’ se levantou para ele, pouco depois do meio-dia do dia 26 de Junho de 1975.

Depois de o beijar no rosto e de rezar intensamente de joelhos orando pela sua alma ao Senhor, os seus filhos presentes preparam carinhosamente o corpo do Padre a fim de o trasladar para o lugar sagrado, a igreja de Santa Maria da Paz.

Nos bolsos da batina encontrámos junto do Terço duas coisas, que me parece oportuno mencionar na conclusão deste Simpósio porque simbolizam bem o que indirectamente – referindo-se a outra pessoa imaginária – ele tinha escrito de si mesmo: “Andava sempre, apesar dos anos, com a juventude madura do Amor” (Forja, n. 493). Essas duas coisas que encontrámos nos bolsos eram: um agenda ou caderninho de notas e – compreendendo que isto podia surpreender a alguns dos presentes – um apito mais semelhante àqueles com que os chefes das estações de caminhos-de-ferro dão partida aos comboios, do que os que usam os árbitros de futebol. Vou-me referir primeiro à agenda.

Na sua Mensagem para a próxima “Jornada Mundial da Juventude” o Papa escreveu : “Cristo não é um bem somente para nós mesmos, mas é o bem mais precioso que temos para partilhar com os outros”. É isso precisamente o que sempre fez São Josemaria. Na agenda encontrada no bolso da batina, onde costumava anotar os seus sentimentos de ardente enamorado e apóstolo de Cristo, tinha escrito alguns dias atrás: “Amo a Cristo com toda a força do meu coração jovem… Jovem com 73 anos? Sim, sim, sempre jovem: com a juventude de Cristo que é eterna”.

É sabido que, muitos anos antes do Concílio Vaticano II, quando começou a ensinar a doutrina sobre o chamamento universal à santidade e ao apostolado implícita no sacramento do Baptismo, alguém lançou o boato em Madrid de que aquele sacerdote muito jovem estava louco. E ele comentou: “Sim, têm razão, louco de amor a Cristo!”. E esse amor fazia-o feliz. Costumava repetir-nos e deixou escrito: ”O que é preciso para conseguir a felicidade não é uma vida cómoda, mas um coração enamorado” (Sulco, n.795).

Por isso, o seu empenho apostólico constante – que a mim me tocou aos vinte anos – era o de levar os jovens, e em geral todas as almas, ao encontro pessoal com Cristo, seguindo – como acontece também no amor humano – os sucessivos passos necessários do enamoramento, que resumia assim: “Procurar Cristo, relacionar-se com Cristo, conhecer Cristo, amar Cristo”. Relacionar-se, conhecer e amar a Santíssima Humanidade de Cristo, do Verbo encarnado, do Deus-Homem que se humilha, que nos ama e nos procura, que abraça as fadigas e as alegrias do trabalho humano, que se cansa, que sente a fome e a sede, que chora pelo amigo morto, que mostra uma infinita capacidade de amor e de misericórdia, que nos chama amigos e entrega a sua vida por cada um de nós… São Josemaria vivia e ensinava apaixonadamente a procurar este encontro pessoal com Cristo, que iluminava cada hora do seu dia laborioso vivido com dinamismo apostólico e espírito contemplativo. Uma perfeita unidade de vida, de que muitos fomos testemunhas.

E o apito? Perguntará alguém. Para que servia o apito a São Josemaria? Servia-lhe, como eloquente e simpático símbolo, para pôr em marcha o comboio, para despertar as almas, talvez adormecidas ou distraídas, pô-las decisivamente em marcha, com audácia juvenil e confiança em Deus, arrastando apostolicamente outros com a força de uma boa locomotiva, sem medo à neve e às agruras do caminho. Com frequência, brincando, São Josemaria tocava o apito junto do ouvido de um ou de outro de nós, para estimular, se fosse necessário, o nosso dinamismo apostólico.

A última vez que o vi fazer isto, ao ouvido de um seu filho alemão, foi dois ou três dias antes da sua morte. Recordo-o agora novamente, lendo as seguintes palavras de outro alemão universal, Bento XVI, na sua ‘Mensagem’ aos jovens: “A cultura actual, em algumas partes do mundo, sobretudo no Ocidente, tende a excluir Deus, ou a considerar a fé como um acto privado, sem nenhuma relevância na vida social. Embora o conjunto dos valores, que são o fundamento da sociedade, provenha do Evangelho […] constata-se uma espécie de eclipse de Deus”.

Como antes recordámos, São Josemaria apercebia-se já vivamente desta realidade: a tendência comum do materialismo marxista e do materialismo hedonista para afastar Deus das almas e da vida normal das pessoas. E sofria ao ver que – face à pressão social dos ‘media’ e do que se começava a chamar ‘politicamente correcto’ – muitos cristãos adaptavam a sua própria vida a uma das seguintes tendências: “deixar-se levar pela corrente” pagã do mundano e do efémero, perdendo a própria identidade cristã; ou então “auto-marginalizar-se” da sociedade, fechando-se comodamente, na defensiva, numa torre de marfim de um ecosistema próprio. São Josemaria considerava profundamente falso este dilema, porque nenhuma dessas tendências corresponde às exigências da vocação divina à santidade e ao apostolado recebidas com a fé cristã e o Baptismo. Por isso disse com palavras profundamente actuais, como são todos os seus ensinamentos: Não duvideis, meus filhos: qualquer forma de evasão das honestas realidades diárias e, para vós, homens e mulheres do mundo, coisa oposta à vontade de Deus. Pelo contrário: deveis compreender agora – com uma nova clareza – que Deus vos chama a servi-Lo em e a partir das ocupações civis, materiais, seculares, da vida humana: no laboratório, na sala de operações, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no lar, e em todo o imenso panorama do trabalho, Deus espera-nos cada dia. Ficai a sabê-lo: escondido nas situações mais comuns, há algo de santo, de divino, que vos cabe a cada um de vós descobrir”

“TAREFA DO CRISTÃO: AFOGAR O MAL EM ABUNDÂNCIA DE BEM. NADA DE FAZER CAMPANHAS NEGATIVAS, NEM DE SER ANTI-NADA. PELO CONTRÁRIO: VIVER DE AFIRMAÇÃO, CHEIOS DE OPTMISMO, COM JUVENTUDE, ALEGRIA E PAZ; OLHAR PARA TODOS COM COMPREENSÃO: OS QUE SEGUEM CRISTO E OS QUE O ABANDONAM OU NÃO O CONHECEM”

Conclusão

Queridos amigos! Uma vez mais, hoje, com atitudes e ensinamentos de São Josemaria quis recordar ao dar por concluído este Simpósio, que ele nos estimula a viver – e a ensinar a muitos a descobrir – a beleza e a grandeza de ter Deus como Amigo, de saber encontrar cada dia a Cristo – o Verbo encarnado, morto e ressuscitado – não à margem das realidades temporais da nossa vida corrente, mas sim no meio delas: ”Lembras-te de São João? Eu vo-lo escrevi, jovens: vós sois fortes, a palavra de Deus permanece em vós e vós vencestes o Maligno (1 Jo 2, 14). Deus pede-nos urgência, para a juventude eterna da Igreja e de toda a humanidade. Podemos transformar em divino tudo o que é humano, tal como o rei Midas que convertia em ouro tudo o que tocava!” (Amigos de Deus, n. 221).

Vou terminar. Mas já que viveis em Espanha, especialmente perto da próxima ‘Jornada Mundial da Juventude’, não queria fazê-lo sem vos contar um episódio pequeno, mas agradável que vivi junto do Papa que canonizou São Josemaria, João Paulo II, num memorável encontro com jovens espanhóis, a 3 de Maio de 2003, no aeroporto de ‘Cuatro Vientos’ de Madrid. Trata-se de um comentário relacionado com a música rock, que me pareceu bastante esclarecedor do ambiente em que se desenrolou aquela fantástica reunião dialogada do Papa com centenas de milhar de rapazes e raparigas.

Uma mulher polícia da escolta que nos acompanhou até Madrid, de regresso do encontro, comentou-me estupefacta face ao espectáculo a que tinha assistido:

-“Este Papa arrasta os jovens mais que os Rolling Stones!”

Sorri e disse-lhe: “A sério? Mas o Papa não canta nem toca guitarra…”

Ela respondeu, apontando para o coração: “Não. Mas quando fala faz ressoar uma musiquinha aqui dentro”.

SÃo JOSEMARIA (1933)

Quando já em Roma, e depois de hesitar um pouco…por causa do rock, me decidi a contar ao Papa o comentário, disse-me brevemente: “Os jovens gostam da verdade”. Estava mais que claro… e continua a estar.

A nós, queridos amigos, cabe-nos não os defraudar. E procurar que outros não os enganem. Podemos estar bem certos de que no serviço a este grande ideal apostólico contaremos sempre com a intercessão de São Josemaria e do Venerável João Paulo II.

Julián Card. Herranz Casado