Tema 34. O nono e o décimo mandamentos

O nono e décimo mandamentos referem-se a atos internos correspondentes a pecados contra o sexto e sétimo mandamentos. Os pecados internos podem deformar a consciência. A luta contra os pecados internos é uma parte do esforço cristão de amar com todo o coração, com toda a mente e com todas as forças. A pureza do coração significa ter um modo santo de sentir.

Sumário:


«Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem desejarás a casa do teu próximo, nem a sua terra, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem nada que seja do teu próximo» (Dt 5, 21).

«Quem olhar para uma mulher cobiçando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração» (Mt 5, 28).


1. Santificar o mundo interior

As palavras de Jesus ao responder à pergunta sobre o que é mais importante na Lei mostram que a vida moral não é apenas uma série de atos externos, mas algo mais profundo: «Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças» (Mc 12, 30). A santidade, que é sempre um dom de Deus, não consiste fundamentalmente numa vida sem pecados graves, mas numa vida cheia do amor de Deus; um amor que requer uma ordem interior e harmonia impossíveis ao homem sem a graça, mas que pode manifestar-se em pessoas santas. Ao mesmo tempo, a correspondência a este dom de Deus está ao nosso alcance; muitos dos nossos irmãos e irmãs na fé foram capazes de fazer frutificar esta graça através do seu esforço pessoal: «Senhor, disse ele, confiaste-me cinco talentos: aqui estão os outros cinco que eu ganhei» (Mt 25, 20).

Esta ordem e harmonia interior é o que se conhece como “pureza de coração”, que é louvada por Jesus no Sermão da Montanha, e que também nos permite estar particularmente abertos ao nosso próximo: «Por este caminho entramos numa relação com o nosso próximo que, baseada no amor que Deus mostra em Jesus Cristo, é um apelo à beleza da fidelidade, da generosidade e da autenticidade. Mas para viver desta forma – ou seja, na beleza da fidelidade, generosidade e autenticidade – precisamos de um coração novo, habitado pelo Espírito Santo [...] o dom dos desejos novos (cf. Rm 8, 6). Desejar segundo o Espírito, desejar ao ritmo do Espírito, desejar com a música do Espírito (...) Eis o que é o Decálogo para nós cristãos: contemplar Cristo para nos abrirmos a receber o seu coração, a receber os seus desejos, a receber o seu Espírito Santo»[1].

O afeto pelas pessoas e bens materiais é bom em si mesmo, mas requer uma ordem que tenha em conta o bem global da pessoa, que para o cristão se concretiza naquele amor de Deus que envolve toda a pessoa: a sua inteligência, o seu coração e todas as suas faculdades. Os bens materiais, embora indispensáveis como meios, não são capazes de satisfazer a aspiração de infinito no coração humano, que é feito para Deus e que não se sacia com o bem-estar material. Este bem-estar, quando não está integrado na vida segundo o Espírito Santo, muitas vezes entorpece a inteligência e o coração e torna difícil amar verdadeiramente os outros e reconhecer as suas necessidades.


2. Os pecados internos

O nono e décimo mandamentos referem-se aos atos internos correspondentes aos pecados contra o sexto e sétimo mandamentos, que a tradição moral classifica na categoria de pecados internos. De forma positiva mandam viver a castidade (o nono) e o desapego dos bens materiais (o décimo) nos pensamentos e nos desejos, segundo as palavras do Senhor: «Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus» e «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus» (Mt 5, 3.8).

A primeira pergunta que precisa de ser respondida é se faz sentido falar de pecados internos; ou dito de outro modo, porque se classifica negativamente um exercício da inteligência e da vontade que não se concretiza numa ação externa reprovável?

A resposta não é óbvia, uma vez que as listas de pecados que figuram no Novo Testamento contêm principalmente atos externos (adultério, fornicação, homicídios, idolatria, feitiçaria, brigas, raivas, etc.). Contudo, nestas mesmas listas encontramos também citados como pecados certos atos internos (inveja, concupiscência, cobiça)[2].

O próprio Jesus explica que é do coração do homem que provêm «os maus pensamentos, assassinatos, adultérios, fornicação, roubo, falso testemunho, blasfémia» (Mt 15, 19). E na área específica da castidade, ele ensina que «quem olhar para uma mulher com desejo por ela já cometeu adultério com ela no seu coração» (Mt 5, 28). Destes textos resulta uma menção importante para a moral, pois fazem-nos compreender como a fonte das ações humanas e, portanto da bondade ou maldade de uma pessoa, se encontra nos desejos do coração, naquilo que a pessoa “deseja” e escolhe. O mal do homicídio, adultério, roubo não reside principalmente na fisicalidade da ação, ou nas suas consequências (que também desempenham um papel importante), mas na vontade (no coração) do assassino, do adúltero, do ladrão, que, ao escolher essa ação particular, está disposto a isso: está a determinar-se numa direção contrária ao amor ao seu próximo, e, portanto, também ao amor de Deus.

A vontade dirige-se sempre para aquilo que percebe como um bem, mas por vezes é um bem aparente, algo que aqui e agora não pode ser ordenado para o bem da pessoa como um todo. O ladrão quer algo que considera um bem, mas o facto de este objeto pertencer a outra pessoa torna impossível que a escolha de o manter possa ser ordenado ao seu bem como pessoa, ou, por outras palavras, ao fim da sua vida. Neste sentido, o ato externo não é necessário para determinar a vontade num sentido negativo. Aquele que decide roubar um objeto, mesmo que não o possa fazer mais tarde devido a um acontecimento imprevisto, agiu de forma errada. Ele realizou um ato voluntário interno contra a virtude da justiça.

A bondade e a maldade da pessoa revelam-se na vontade, e por isso, estritamente falando, devemos utilizar estas categorias para nos referirmos aos desejos (queridos, aceites), e não aos pensamentos. Quando falamos de inteligência utilizamos outras categorias, tais como verdadeiro e falso. Quando o nono mandamento proíbe “pensamentos impuros” não se refere a imagens, ou ao próprio pensamento, mas ao movimento da vontade que aceita a alegria desordenada que uma determinada imagem (interna ou externa) lhe provoca[3].

Os pecados internos têm sido tradicionalmente divididos em:

– maus pensamentos: são a representação imaginária de um ato pecaminoso sem a intenção de o levar a cabo. Pode tornar-se um pecado mortal se envolver matéria grave e se se procura ou se consente deleitar-se nela;

– maus desejos: um desejo interior e genérico de uma ação pecaminosa com o qual a pessoa se compraz. Não coincide com a intenção clara de a executar (o que implica sempre um desejo efetivo), embora, em muitos casos, o faria se não houvesse alguns motivos que restringissem a pessoa (tais como as consequências da ação, a dificuldade de a executar, etc.);

– gozo pecaminoso: é a complacência deliberada numa ação maléfica já realizada por si próprio ou por outros. Renova de alguma forma o pecado na alma.

Os pecados internos são menos graves do que os pecados externos correspondentes, porque o ato externo geralmente manifesta uma vontade mais intensa. No entanto, são de facto muito prejudiciais, especialmente para as pessoas que procuram o trato e a amizade com Deus, já que:

cometem-se com mais facilidade, pois basta o consentimento da vontade; e as tentações tendem a ser mais frequentes;

presta-se menos atenção, uma vez que, por vezes por ignorância e por vezes por uma certa cumplicidade com as paixões, não se reconhecem como pecados, pelo menos pecados veniais, se o consentimento foi imperfeito.

Os pecados internos podem deformar a consciência, por exemplo, quando se admite o pecado venial interno habitualmente ou com uma certa frequência, ainda que se queira evitar o pecado mortal. Esta deformação pode levar a manifestações de irritabilidade, falta de caridade, espírito crítico, resignação a frequentes tentações sem as combater tenazmente, etc.[4]. Em alguns casos, pode mesmo levar a uma falta de vontade de reconhecer pecados interiores, encobrindo-os com faltas de razão fundamentadas, o que acaba por confundir cada vez mais a consciência. Como consequência, o amor-próprio cresce facilmente, surgem ansiedades, a humildade e a contrição sincera tornam-se mais custosas, e pode-se acabar num estado de tibieza.

A luta contra os pecados internos, que vai configurando uma delicadeza e equilíbrio moral no interior da pessoa, nada tem a ver com os escrúpulos, que consistem numa hipertrofia da sensibilidade interior e podem tornar-se um verdadeiro transtorno psíquico.

A luta contra os pecados internos é parte do compromisso cristão de amar com todo o coração, com toda a mente e com todas as forças. Neste campo, ajudam-nos:

– a frequência dos sacramentos, que nos dão ou aumentam a graça, e nos curam das nossas misérias quotidianas;

– a oração, a mortificação e o trabalho, procurando sinceramente a Deus;

– a humildade, que nos permite reconhecer as nossas misérias sem desespero pelos nossos erros, e a confiança em Deus, sabendo que Ele está sempre pronto a perdoar-nos;

– esmerar-se na sinceridade com Deus, connosco próprios e na direção espiritual, cuidando com diligência o exame de consciência.


3. A purificação do coração

Estes dois mandamentos, tomados em sentido lato, consideram os mecanismos íntimos que estão na raiz de qualquer pecado[5]. Em sentido positivo, estes mandamentos convidam-nos a agir com intenção reta, com um coração puro. É por isso que são de grande importância, pois não se limitam à consideração externa das ações, mas consideram a fonte de onde estas ações procedem.

Estes dinamismos interiores são fundamentais na vida moral cristã, onde os dons do Espírito Santo e as virtudes infusas são modulados pelas disposições da pessoa. Neste sentido, as virtudes morais, que são disposições da vontade e dos outros apetites a fazer o bem, são de particular importância. Tendo estes elementos em mente, é possível afastar uma certa caricatura da vida moral como luta para evitar o pecado, descobrindo o imenso panorama positivo do esforço para crescer em virtude (para purificar o coração) que tem a existência humana, e em particular a do cristão.

Estes mandamentos referem-se mais especificamente aos pecados internos contra as virtudes da castidade e da justiça, que estão bem refletidos no texto da Sagrada Escritura que fala de «três espécies de cupidez ou concupiscência: a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida (cf. 1Jo 2, 16)»[6].

Cada homem descobre dentro de si algumas tendências desordenadas, que a tradição moral tem chamado concupiscência. O Catecismo explica isto ao falar da «luta de tendências entre o “espírito” e a “carne”. Faz parte da herança do pecado»[7]. Depois do pecado original, ninguém está isento de concupiscência, com exceção de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Santíssima Virgem.

Embora a concupiscência em si não seja pecado, propicia o pecado, e gera-o quando não se submete à razão iluminada pela fé, com a ajuda da graça. Se se esquece que a concupiscência existe, é fácil pensar que todas as tendências sentidas são “naturais” e que não há mal nenhum em satisfazê-las. Muitos dão-se conta de que isto é falso quando consideram o que acontece, por exemplo, com o impulso à violência, que é reconhecido como algo negativo a ser evitado. Na área da castidade, contudo, não é tão fácil reconhecer que os estímulos “naturais” são muitas vezes inadequados. O nono mandamento ajuda-nos a compreender que isto não é assim, e que a concupiscência obscureceu a natureza; de modo que o que é vivido como natural é frequentemente uma consequência do pecado, e é preciso que seja dominado. O mesmo se poderia dizer do desejo imoderado de riqueza, ou cobiça, a que se refere o décimo mandamento.

É importante estar ciente desta desordem causada em nós pelo pecado original e pelos nossos pecados pessoais, pois este conhecimento:

estimula-nos a rezar: só Deus nos perdoa o pecado original, que deu origem à concupiscência; e, do mesmo modo, só com a Sua ajuda conseguiremos superar esta tendência desordenada; a graça de Deus cura a nossa natureza das feridas do pecado (assim como a eleva à ordem sobrenatural);

ensina-nos a amar tudo o que foi criado, pois saiu bom das mãos de Deus. São os nossos desejos desordenados que levam a uma má utilização dos bens criados.


4. A luta pela pureza e a liberdade do coração

A pureza do coração significa ter um modo santo de sentir. Com a ajuda de Deus e o esforço pessoal, somos cada vez mais “puros de coração”: limpidez nos “pensamentos” e nos desejos. Esta limpidez ou pureza do coração é uma metáfora para a maior liberdade do coração para amar.

No que se refere ao nono mandamento, o cristão alcança esta pureza com a graça de Deus e com a virtude e o dom da castidade, da pureza de intenção, da pureza do olhar e da oração[8].

A pureza do olhar não se limita a rejeitar a contemplação de imagens claramente inadequadas, mas exige uma purificação do uso dos nossos sentidos externos, o que nos leva a olhar para o mundo e para as outras pessoas com visão sobrenatural. É uma luta positiva que permite ao homem descobrir a verdadeira beleza de toda a criação, e de uma forma particular, a beleza daqueles que foram plasmados à imagem e semelhança de Deus[9].

«A pureza exige o pudor. O pudor é parte integrante da temperança. O pudor preserva a intimidade da pessoa. Designa a recusa de mostrar o que deve ficar oculto. Ordena-se à castidade e comprova-lhe a delicadeza. Orienta os olhares e as atitudes em conformidade com a dignidade das pessoas e com a união que existe entre elas»[10].

No que se refere aos bens materiais, a sociedade atual incentiva o consumismo e a autoafirmação com uma força tão poderosa que chega a pôr em risco a estabilidade da família. São muitas as pessoas que se dão conta demasiado tarde de que centraram as suas vidas na profissão, em ganhar dinheiro e posição, e negligenciaram outras facetas mais importantes da sua existência: a sua relação com Deus e com a sua família.

A importância exagerada dada hoje ao bem-estar material acima de muitos outros valores não é um sinal de progresso humano Constitui uma degradação e enfraquecimento do homem, cuja dignidade reside em ser uma criatura espiritual chamada à vida eterna como filho de Deus (cf. Lc 12, 19-20).

«O décimo mandamento exige que seja banida a inveja do coração humano»[11]. «A inveja é um vício capital. Designa a tristeza que se sente perante o bem alheio e o desejo imoderado de se apropriar dele, mesmo indevidamente»[12]. Muitos outros pecados podem derivar da inveja: ódio, murmuração, menosprezo, desobediência, etc. «A inveja representa uma das formas da tristeza e, portanto, uma recusa da caridade; o batizado lutará contra ela, opondo-lhe a benevolência. Muitas vezes, a inveja nasce do orgulho; o batizado exercitar-se-á a viver na humildade»[13].

Ser capaz de amar com todo o coração e com todas as forças requer uma ordem interior, que é dada pela graça e pelas virtudes, e que não fica na simples continência, que no máximo evita os pecados mais graves, mas que alcança aquela harmonia cheia de paz que as pessoas santas têm.


Bibliografia básica

Catecismo da Igreja Católica, n. 2514-2557.


Leituras recomendadas

– S. Josemaria, Homilia “Porque verão Deus”, em Amigos de Deus, n. 175-189; Homilia “Desprendimento”, em Amigos de Deus, n. 110-126.


[1] Francisco, Audiência, 28/11/2018.

[2] cf. Gl 5, 19-21; Rm 1, 29-31; Col 3, 5. S. Paulo, depois de apelar à abstenção da fornicação, escreve: «que cada um de vós saiba possuir o seu corpo em santidade e honra, sem se deixar levar pelo desejo da paixão como os pagãos que não conhecem Deus. [...] com efeito, Deus não nos chamou à impureza, mas à santidade» (1Ts 4, 3-7). Ele sublinha a importância dos afetos, que são a origem das ações, e mostra a necessidade da sua purificação para a vida cristã.

[3] Assim se compreende facilmente a diferença entre “sentir” e “consentir”, referente a uma determinada paixão ou movimento da sensibilidade. Só quando se consente com a vontade se pode falar de pecado (se a matéria era pecaminosa).

[4] «Chapinhas nas tentações, pões-te em perigo, brincas com a vista e com a imaginação, falas de... disparates. E depois assustas-te por te assaltarem dúvidas, escrúpulos, confusões, tristeza e desalento. Hás de conceder-me que és pouco coerente» (S. Josemaria, Sulco, n. 132).

[5] «O décimo mandamento incide sobre a intenção do coração e resume, com o nono, todos os preceitos da Lei» (Catecismo da Igreja Católica, n. 2534).

[6] Catecismo da Igreja Católica, n. 2514.

[7] Catecismo da Igreja Católica, n. 2515.

[8] «Com a graça de Deus ele alcança isto:
– através da virtude e do dom da castidade, pois a castidade permite amar com um coração reto e indiviso;
– mediante a pureza de intenção, que consiste em procurar o verdadeiro fim do homem. com um olhar simples, o batizado esforça-se por encontrar e cumprir em tudo a vontade de Deus (cf. Rm 12, 2; Cl 1, 10);
– pela pureza do olhar exterior e interior; pela disciplina dos sentidos e da imaginação; pela rejeição de toda a complacência em pensamentos impuros que o levariam a desviar-se do caminho dos mandamentos divinos: “a vista excita a paixão dos insensatos” (Sb 15, 5);
– pela oração» (Catecismo da Igreja Católica, n. 2520).

[9] «Os olhos! Por eles entram na alma muitas iniquidades. – Quantas experiências como a de David!... – Se guardardes a vista, tereis assegurado a guarda do vosso coração» (S. Josemaria, Caminho, n. 183). «Meu Deus!: encontro graça e beleza em tudo o que vejo: guardarei a vista a toda a hora, por Amor» (S. Josemaria, Forja, n. 415).

[10] Catecismo da Igreja Católica, n. 2521.

[11] Catecismo da Igreja Católica, n. 2538.

[12] Catecismo da Igreja Católica, n. 2539.

[13] cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2540.

Pablo Requena