Ser e tornar-se irmãos na convivência sociopolítica

Uma das novidades mais importantes da encíclica Fratelli Tutti é o vínculo que postula entre fraternidade e bem comum político. Apresentamos o estudo de Maria Aparecida Ferrari*, publicado no boletim Romana.

Estudo realizado por Maria Aparecida Ferrari, publicado no volume 73 do boletim Romana.

Sumário:

  1. Natureza relacional do bem comum político
  2. Fraternidade social, rosto da cidadania política
  3. Fecundidade para toda a sociedade
  4. Fraternidade social e caridade política

A santidade na vida quotidiana afeta todas as ações do cristão: «Pensai, por exemplo, na vossa atuação de cidadãos na vida civil. Um homem sabedor de que o mundo - e não só o templo - é o lugar do seu encontro com Cristo, ama esse mundo, procura adquirir uma boa preparação intelectual e profissional, vai formando – com plena liberdade – os seus próprios critérios sobre os problemas do meio em que vive; e toma, como consequência, as suas próprias decisões que, por serem decisões de um cristão, procedem também de uma reflexão pessoal que tenta humildemente captar a vontade de Deus nesses aspetos, pequenos e grandes, da vida».

Com estas palavras de S. Josemaria abrimos a nossa reflexão sobre o que significa ser irmãos na convivência sociopolítica, â luz dos ensinamentos da encíclica Fratelli Tutti. Na primeira parte deste estudo iremos examinar o bem comum político numa perspetiva relacional, com a ideia de mostrar que todos os cidadãos são chamados a alcançá-lo, cada um de acordo com o seu lugar na sociedade. As secções posteriores, seguindo o fio condutor do documento pontifício, evidenciarão o sentido em que é pertinente identificar a fraternidade, no âmbito social e cívico, como um dos princípios éticos básicos dos quais é derivado o bem comum político.

Não é habitual apresentar a fraternidade como um dos princípios estruturadores da convivência política. Tanto a doutrina social da Igreja como o pensamento filosófico-político enfatizam antes outros princípios como configuradores do bem comum: a inalienável dignidade da pessoa, a justiça, a solidariedade, a subsidiariedade, a liberdade de associação, etc. A fraternidade aparece sobretudo em outros âmbitos, como o familiar, o religioso, e o das relações de amizade. De facto, uma das novidades mais importantes da encíclica Fratelli Tutti é o vínculo que postula entre fraternidade e bem comum político.

Não são, de facto, dimensões independentes umas das outras, pois «para tornar possível o desenvolvimento de uma comunidade mundial capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a amizade social, é necessária a melhor política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum» (FT 154).

1. Natureza relacional do bem comum político

O conceito “relacional” aplicado ao bem comum político põe em evidência algo novo em relação aos pressupostos mais difundidos na filosofia e nas ciências sociais. Enquanto nestas o bem comum costuma ser concebido em termos de “propriedade” dos cidadãos ou do Estado, a compreensão relacional identifica-o essencialmente como aquela forma de convivência que permite aos sujeitos sociais perseguir os seus próprios fins com autonomia e responsabilidade. Deste ponto de vista, o bem comum político consiste no «conjunto das condições da vida social que permitem, tanto às associações como a cada um de seus membros, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição» − e compreende «direitos e deveres que dizem respeito a todo o género humano».

Com base nessa definição, o fim comum, a vida boa na convivência política, é constituído prioritariamente por relações humanas de qualidade, de tal modo que alcançar o bem comum é gerar, preservar e fortalecer as relações que permitem que indivíduos e grupos caminhem livremente para aquele bem de todos que enriquece também o próprio bem particular. Com efeito, das relações humanas derivam os bens necessários à plenitude dos sujeitos sociais, de modo que o bem pessoal e o bem comum são gerados e possuídos conjuntamente, são relacionais.

No pensamento moderno, desenvolveu-se uma compreensão diferente do bem comum político, entendido como um bem coletivo, material, útil, que o Estado deve colocar à disposição de todos os indivíduos. Deste ponto de vista, o “comum” corresponderia essencialmente à soma dos bens individuais ou ao conjunto dos elementos físicos, vantagens, técnicas ou leis que facilitam o progresso material.

Na perspetiva da doutrina social cristã, pelo contrário, o bem comum político não pode ser reduzido à esfera dos bens úteis, porque é antes de tudo um bem humano, isto é, uma resposta às exigências fundamentais da dignidade da pessoa, que são o fundamento decisivo, mas também o horizonte ou fim último da convivência. Portanto, o bem comum político vai além do estritamente político, isto é, da ação de governar a cidade, o que implica, por um lado, que nenhuma realidade associativa, nem mesmo a sociedade política como tal, pode alcançar por si só a totalidade dos bens humanos e, por outro, que nenhuma delas pode ser autónoma perante as outras em relação ao bem do ser humano como tal.

Da mesma forma, se o bem comum é sobretudo o vínculo social do qual dependem tanto os fins materiais como os fins racionais ou espirituais, será necessário concluir que o cidadão não encontra a sua realização em si mesmo, mas na interação “com” os outros e “ para” os outros.

A compreensão cristã do bem comum sustenta, com efeito, que as pessoas, individualmente e em associação, assim como a própria sociedade política, são chamadas a pôr em prática aquela «fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas, independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra em que cada uma nasceu ou habita» (FT 1).

Não poderia ser de outro modo, pois não é das fábricas, nem da imposição de leis, que procedem certos bens essenciais da convivência, como a paz, a justiça, o amor ao próximo, a gratuidade, o perdão, a proteção do ambiente, o amor pelo bem dos outros, o exercício da liberdade orientada para o bem coletivo, a gratidão, a laboriosidade etc. Estes são bens comuns e eminentemente políticos, uma vez que são pessoais e relacionais, e o papel da autoridade política consiste em apoiá-los e, na medida do possível, em promover o tecido de relações em que surgem e crescem. Como? Garantindo e promovendo a liberdade dos indivíduos e grupos. Aí está o precioso serviço específico que o Estado é chamado a prestar à dignidade de cada pessoa e à vida social politicamente organizada. A Fratelli Tutti põe isso em evidência, citando Ricoeur: «de facto, não há vida privada, se não for protegida por uma ordem pública; um lar acolhedor doméstico não tem intimidade se não estiver sob a tutela da legalidade, de um estado de tranquilidade fundado na lei e na força e com a condição de um mínimo de bem-estar garantido pela divisão do trabalho, pelas trocas comerciais, pela justiça social e pela cidadania política» (FT 164).

Assim, fica claro que, na perspetiva da encíclica, os agentes do bem comum político não são apenas os órgãos estatais ou a sociedade civil. O bem comum político é tarefa conjunta das instituições políticas e dos atores sociais, isto é, dos cidadãos e das sociedades intermédias.

No entanto, na cultura contemporânea é recorrente uma visão muito diferente do bem comum político e da função dos governantes e governados, o que dificulta a prática da fraternidade e a sua manutenção no âmbito sociopolítico. Tende-se a relegar o bem comum para o âmbito das funções do Estado, encarregado de instaurar a justiça por meio de leis que garantam claramente a realização do interesse público e de reprimir as condutas antissociais com sanções penais e administrativas. Essa atitude leva a perder de vista a constatação de que as leis civis não são suficientes para garantir a justiça nas relações sociais e políticas, e que a busca do bem comum por meio do endurecimento progressivo dos controles legais gera passividade na sociedade, já que encoraja os cidadãos a acreditar que o que corre mal vem de algum defeito ou deficiência nas leis. Além disso, desvia a atenção dos cidadãos da questão mais importante, ou seja ,do seu próprio dever de se comprometer com o bem comum individualmente ou em união com os outros. Em suma, em vez de estimular a solidariedade, a cooperação fraterna e o espírito de iniciativa nos sujeitos sociais, fomenta a mentalidade do menor esforço, do desleixo, da indiferença e do descarte, de modo que a atitude socialmente passiva acaba por se impor: «Eu cuido da minha vida, obedeço às leis, pago os meus impostos, não faço mal a ninguém; todo o resto, isto é, as necessidades dos outros, é assunto dos governantes».

A partir desta perspetiva, a convivência sociopolítica é identificada com a dupla vertente de “cidadãos ocupados com os bens privados” e “Estado ocupado com os bens públicos”, combinação que em muitos lugares tem levado o Estado a apropriar-se de atividades que são da competência dos cidadãos, como o início e fim da vida, a educação e a escolarização, a saúde e o combate à pobreza. Dessa maneira, formou-se o Estado de bem-estar, denunciado na encíclica Centesimus annus. A grande expansão da esfera de intervenção do Estado, recordava S. João Paulo II, «levou a constituir, de algum modo, um novo tipo de estado, o Estado do bem-estar». No esforço por combater as formas de pobreza e privação indignas da pessoa humana, prossegue o documento, “não faltaram excessos e abusos que provocaram, especialmente nos anos mais recentes, fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado como ‘Estado assistencial’. As anomalias e defeitos no Estado assistencial derivam de uma inadequada compreensão das suas próprias tarefas. Neste âmbito também se deve respeitar o princípio de subsidiariedade”.

Em oposição a este processo e em consonância com aFratelli Tutti, devemos observar que, pelo contrário, o bem comum ao qual se ordena a vida em sociedade é em si mesmo manifestação e exercício de fraternidade, promoção do bem do próximo que configura o bem pessoal: um horizonte de irmandade em que no ato de facilitar o bem do outro se alcança o próprio bem.

O rosto cívico-político da fraternidade resplandece, portanto, nas ações individuais e sociais que geram o bem comum, ou seja, que promovem as condições vitais e relacionais que permitem a cada um alcançar os seus fins com liberdade e responsabilidade. Nesta perspectiva, tudo se converte numa oportunidade de ser irmão ou irmã.

2. Fraternidade social, rosto da cidadania política

Se o bem comum político é gerado pela ação conjunta do Estado e da sociedade civil, é obrigatório reconhecer que uma parte essencial desse bem comum político é a idoneidade − competência e propensão − dos cidadãos para a realização do bem pessoal e social. A ausência deste património ético torna difícil resistir, dizer “não”, por exemplo, a benefícios injustos quando é fácil obtê-los, principalmente se, como se diz com mais ou menos verdade, “toda a gente faz isso”, ou quando a conduta injusta consegue burlar os sistemas de controlo legal. Por outras palavras, ser agente gerador do bem comum exige do cidadão algo mais do que a estrita obediência ao sistema jurídico estabelecido: implica um exercício de liberdade que ultrapassa os limites legais, pois exige laboriosidade, honestidade, solidariedade, prudência, subsidiariedade, confiança, temperança etc.

No exercício da cidadania assim entendida, a fraternidade social toma a sua forma, de modo que, quando um cidadão se relaciona com os outros com sentido de respeito e reciprocidade, desempenha com competência a sua profissão ou as suas funções, ocupa-se dos interesses comuns..., ele mostra o rosto da fraternidade no âmbito sociopolítico e, ao fazê-lo, configura o bem comum político em seu sentido mais autêntico. A Fratelli Tutti ilustra isso claramente com a parábola do bom samaritano.

Dirigindo-se aos homens de boa vontade, a todos e cada um dos homens, a encíclica convida a deixar-se interpelar por esta parábola para além da diversidade das convicções religiosas (FT 56). Recorda que o relato evangélico os convida a «fazer ressurgir a nossa vocação de cidadãos do próprio país e do mundo inteiro, construtores dum novo vínculo social», e destaca que se trata de «um apelo sempre novo, embora seja escrito como uma lei fundamental do nosso ser: que a sociedade se oriente para a busca do bem comum e, a partir deste objetivo, reconstrua incessantemente a sua ordem política e social, o tecido das suas relações, o seu projeto humano» (FT 66).

Cada indivíduo humano encarna de alguma forma, ao longo da sua vida, uma ou outra das personagens da parábola, mas para efeitos desta reflexão vale a pena centrar-se no aparentemente menos central, o estalajadeiro. Esta personagem, que na exegese habitual muitas vezes passa despercebida, demonstra ainda melhor do que os outros que cada pessoa, com a sua vida simples e normal, pode viver a fraternidade social de forma estável e de acordo com as suas peculiaridades no campo da cidadania política.

De facto, como observa a encíclica, até o bom samaritano «precisou da existência de uma estalagem que lhe permitisse resolver o que não estava em condições de garantir sozinho, naquele momento» (FT 165). Assim, na sociedade política, todos – inclusive o próprio Estado – precisam que os cidadãos e sociedades intermédias cumpram a sua tarefa quotidiana nos diversos âmbitos da convivência e do trabalho profissional. É necessário que todos, nas suas relações, sejam continuamente estalajadeiros e, portanto, irmãos, não só no acolhimento e no cuidado do outro na família e nas várias comunidades fundadas na amizade e na confiança, mas também nos outros âmbitos de relacionamento.

Nesse sentido, as ações propriamente cívicas e políticas são também exercício de fraternidade, pois dirigem-se às pessoas, da mesma forma que todo o gesto fraterno de amor, de cuidado mútuo, é também uma ação cívica e política, pois constrói verdadeiramente uma sociedade melhor (FT 181). Sem dúvida, na sociedade política as relações tendem a ser extensas e anónimas, mas isso não exclui a sua dimensão fraterna. Quem, por exemplo, limpa uma praça − seja como funcionário municipal ou como utente desse espaço − ao fazê-lo respeita e cuida de todos os outros cidadãos, mesmo que não conheça os seus rostos e não tenha uma relação direta específica com eles; exerce a amizade cívica, o amor social ou a fraternidade social, ou seja, aquela relação de benevolência (querer o bem do outro) baseada na coparticipação e na responsabilidade comum pelo bem público. Exerce assim uma fraternidade que pode evoluir para uma virtude social, uma disposição firme e habitual de agir sempre no respeito-promoção do bem dos outros; uma virtude que, por sua vez, pode gerar inúmeras formas de solidariedade. À medida que se alargar mais para o ambiente social, essa conduta solidária também ajudará a construir a cultura de toda a cidade.

O exercício da fraternidade social traduz-se, assim, na personificação do estalajadeiro no quotidiano nas diversas áreas de relacionamento: respeitar as regras de trânsito ao conduzir, pagar impostos, realizar o trabalho com responsabilidade e eficiência, não admitir práticas ilícitas (“subornos” , corrupção etc.) em benefício próprio ou alheio, dar importância às boas maneiras, comportar-se honestamente em todas as situações, usar a inteligência criativa para atender às necessidades próprias e alheias.

3. Fecundidade para toda a sociedade

Se todos podem ou devem ser estalajadeiros nas relações sociais, parece pertinente, além de focar a atenção nas personagens, refazer a pergunta da qual nasceu a parábola do samaritano, substituindo “quem é meu irmão?” por “quem é meu irmão na convivência sociopolítica?”. Claro que podemos responder: “aquele que tem fome, sede, está nu, está na prisão ou está doente”. Mas, sendo verdadeira, essa resposta também é incompleta, pois o outro não é meu irmão só porque precisa ou só quando está desamparado. A fraternidade social consiste na disponibilidade de cada um para com o outro em qualquer situação; designa a capacidade de cultivar sempre a sensibilidade para com o seu bem e as suas necessidades e transformá-la num apoio eficaz. Trata-se, portanto, de colocar a pessoa do outro em primeiro plano, e não as suas necessidades, reconhecendo nele um irmão, uma pessoa que constantemente merece a disposição de todos de dar e dar-se livremente.

Nesse amplo exercício de fraternidade, a maioria dos cidadãos assume o papel de estalajadeiro, mantendo o anonimato. Realizam as suas tarefas quotidianas – como estalajadeiros de profissão – sem fazer barulho, e assim realizam o bem comum político. Nesta multidão de estalajadeiros, cada um, mesmo sem pôr a sua assinatura no que faz, torna-se, de facto, irmão/irmã de todas as pessoas. O título da parábola que estamos a comentar é “parábola do bom samaritano”, mas seria igualmente correto chamá-la de “parábola do estalajadeiro”. Como no relato de Jesus, os estalajadeiros de todos os tempos e de todas as sociedades políticas passam quase despercebidos, apesar de prestarem um serviço essencial a todos: aos que encarnam o bom samaritano, aos que encarnam o ferido, e igualmente, de forma mais geral, para o bom funcionamento da sociedade como um todo.

Por isso, refletir sobre a figura do estalajadeiro abre-nos a uma maior compreensão da advertência do Papa Francisco: «Não devemos esperar tudo daqueles que nos governam […]. Gozamos dum espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações. Sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas. Hoje temos à nossa frente a grande ocasião de expressar o nosso ser irmãos» (FT 77).

“Espaço de corresponsabilidade” e “grande ocasião”, porque a maior parte do que constitui o bem comum político é obra de cidadãos que atuam como estalajadeiros, embora às vezes também devam personificar o bom samaritano. A leitura mais frequente da parábola centra-se no ato admirável deste último, e apenas em algumas ocasiões se explicita que cuidar dos feridos é também tarefa do estalajadeiro. Na verdade, porém, foi esta personagem quem fez a maior parte do trabalho, e fê-lo simplesmente cumprindo o seu dever profissional, sem a pretensão de aparecer nos media ou nas redes sociais, como diríamos hoje. O estalajadeiro foi irmão do bom samaritano e do ferido no desempenho de seu trabalho.

Consideremos, por outro lado, que os estalajadeiros não costumam agir sozinhos, mas estão inseridos no seu próprio dinamismo relacional e orientados para o bem de todos. Consciente ou inconscientemente, distinguem nas suas tarefas oportunidades mais ou menos diretas, mais ou menos evidentes, de prestar um serviço, de exercer a fraternidade, e também de nela envolver os outros, como adverte o Papa Francisco − «não o façamos sozinhos, individualmente»− ao observar que «o samaritano procurou um estalajadeiro que pudesse cuidar daquele homem» (FT 78). De facto, sem o trabalho bem feito do estalajadeiro, ele não teria podido cumprir o seu trabalho de cuidar do homem sofredor, assim como o estalajadeiro não teria podido cumprir o compromisso que assumiu sem o trabalho dos que dirigiam a pousada com ele.

Concretamente, a profissão ou ofício − e em geral qualquer atividade de serviço − representa para cada cidadão uma via privilegiada de fraternidade social e cívica, já que constitui uma contínua oportunidade de agir com retidão, promovendo efetivamente a justiça, a solidariedade e o bem dos outros. Como o samaritano prestou um serviço e “partiu sem esperar reconhecimentos nem agradecimentos”, os estalajadeiros do mundo exercem, na rotina diária da sua vida e no seu trabalho a responsabilidade para com esse “ferido que é o nosso povo e todos os povos da terra”. Do seu lugar na sociedade − do seu papel de estalajadeiros − dão uma resposta pessoal e objetiva às necessidades dos outros, respondem ao apelo do Papa Francisco: «Cuidemos da fragilidade de cada homem, de cada mulher, de cada criança e de cada idoso, com aquela atitude solidária e atenta, a atitude de proximidade do Bom Samaritano» (FT 79).

Numa projeção alargada, esta atitude pode transformar toda a cidade terrena, como fermento misturado na massa (Mt 13, 33), porque, como diz o Papa Francisco, retomando o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, o amor social é uma «força capaz de suscitar novas vias para enfrentar os problemas do mundo de hoje e renovar profundamente, desde o interior, as estruturas, organizações sociais, ordenamentos jurídicos» (FT 183).

4. Fraternidade social e caridade política

O fermento da fraternidade social que impregna as ações de cada cidadão − seja estalajadeiro ou samaritano − tem uma eficácia específica no terreno político, no qual se elaboram as leis que determinam as condições para servir o bem comum, seja como cidadão-bom samaritano ou como cidadão-trabalhador. Basta pensar na importância essencial que as leis sobre a família, o casamento, a educação, o trabalho, os benefícios sociais, a liberdade de associação, liberdade de expressão etc., têm nas nossas ações diárias.

Não há dúvida de que nem todos os cidadãos são chamados a desempenhar atividades governamentais. Porém, ninguém está isento da obrigação de se formar bem e seguir a sua consciência em tudo o que diz respeito às dimensões fundamentais da existência humana e ao bem comum da sociedade. Ser irmão/irmã no debate público implica comprometer-se a aprender sobre diferentes questões e contribuir para a solução dos problemas sociais. Esta conduta é uma exigência do amor social, da caridade, mas ainda antes disso, da virtude cardeal da justiça. Por isso, pôr em prática essas exigências da fraternidade social é um dever também em relação a questões que talvez não afetem direta ou imediatamente a vida ou os interesses pessoais e nas quais seria mais cómodo fechar os olhos, não participar no debate público.

Por um lado, é certo que a participação ativa, livre e responsável na vida política depende do grau de instrução e cultura de cada um, bem como da compatibilidade com outros compromissos familiares, profissionais e sociais. Por outro lado, porém, todos − e em maior medida aqueles que são dotados de competência e capacidade − são chamados a ser irmãos dos outros, cumprindo com liberdade e lealdade os seus deveres cívicos e políticos e procurando ter um conhecimento adequado das questões relacionadas com a administração pública e o governo, para poder oferecer pessoalmente uma crítica social serena e construtiva.

Os mais preparados têm também uma responsabilidade especial em termos de solidariedade e subsidiariedade. Como afirma a Fratelli Tutti, «a política não pode renunciar ao objetivo de conseguir que a organização de uma sociedade assegure a cada pessoa uma maneira de contribuir [para o bem comum] com as suas capacidades e o seu esforço» (FT 162). Da mesma forma, noutra passagem, especifica que a dimensão local «tem algo que o global [o Estado ou as organizações internacionais] não possui: ser fermento, enriquecer, colocar em marcha mecanismos de subsidiariedade» (FT 142). Os cidadãos e as associações locais, de facto, ao estarem mais próximos das necessidades concretas, estão mais bem posicionados para cuidar das pessoas e curar as suas feridas.

Em suma, trata-se de conjugar o “nós” ao invés do “eu”, também na esfera pública, como disse o Papa Francisco numa entrevista recente , para alcançar a “caridade política” ou a “caridade social”, entendida como superação da mentalidade individualista e amadurecimento daquele sentido do “nós” que nos faz amar o bem coletivo e buscar verdadeiramente o bem de todos (FT 182).

No caminho traçado pela encíclica Fratelli Tutti, a caridade política não caminha cegamente, nem depende de sentimentos mais ou menos favoráveis. Necessita da luz da verdade, que provém tanto da razão como da fé: consequentemente, «isto supõe também o desenvolvimento das ciências e a sua contribuição insubstituível para encontrar os percursos concretos e mais seguros para alcançar os resultados esperados. Com efeito, quando está em jogo o bem dos outros, não bastam as boas intenções, mas é preciso conseguir efetivamente aquilo de que eles e os seus países necessitam para se realizar» (FT 185). O Papa Francisco não hesita em olhar para as verdadeiras feridas da humanidade, não com o objetivo de fazer as pessoas sofrerem, mas para encorajar todos no esforço de curá-las; por exemplo, quando observa: «Muitas vezes hoje, enquanto nos enredamos em discussões semânticas ou ideológicas, deixamos que irmãos e irmãs morram ainda de fome ou de sede, sem um teto ou sem acesso a serviços de saúde. Juntamente com estas necessidades elementares por satisfazer, outra vergonha para a humanidade que a política internacional não deveria continuar a tolerar – mais além dos discursos e boas intenções – é o tráfico de pessoas. Trata-se de mínimos inadiáveis» (FT 189). Ou ainda quando adverte que “As maiores preocupações de um político não deveriam ser as causadas por uma baixa nas pesquisas, mas por não encontrar uma solução eficaz para «o fenómeno da exclusão social e económica, com suas tristes consequências de tráfico de seres humanos, tráfico de órgãos e tecidos humanos, exploração sexual de meninos e meninas, trabalho escravo, incluindo a prostituição, tráfico de drogas e de armas, terrorismo e criminalidade internacional organizada» (FT 188).

Nesta perspetiva, a encíclica chama todos à responsabilidade: cidadãos comuns, instituições públicas e privadas, Estados e organizações internacionais. Trata-se de evitar a polarização que divide e aliena, sem evitar os debates necessários. O objetivo comum é inevitável: alcançar «uma globalização dos direitos humanos mais básicos» (FT 189). Se esse objetivo ainda está longe, não é porque seja inatingível, mas por outros motivos.

A situação da pandemia, um marco importante para o amadurecimento das reflexões contidas na encíclica Fratelli Tutti, revelou, com o seu tremendo desafio para a maior parte do mundo, a incapacidade da humanidade hiperconectada de agir em conjunto (FT 7). Nota-se então a urgência de voltar a compreender a fraternidade, de assumir que os seres humanos, «todos irmãos – como nos lembra o Papa Francisco – são convidados a reunirem-se e encontrar-se num “nós” que seja mais forte que a soma de pequenas individualidades, já que o todo [o bem comum] é mais do que as partes, e também é mais do que a mera soma delas» (FT 78).

As circunstâncias ordinárias ou extraordinárias da convivência, sejam elas positivas ou negativas, representam ocasiões especiais, não só para dar aos outros algo do que possuímos, mas também para se doar com um compromisso total, no sentido de fazer tudo o que pudermos. Por isso quisemos abrir estas reflexões com as palavras do “santo do quotidiano”, S. Josemaria, “escolhido pelo Senhor para anunciar a vocação universal à santidade e para indicar que a vida de todos os dias, as atividades comuns, são caminho de santificação”. A vocação do cristão é procurar a santidade na vida quotidiana, amar a Deus tornando-se irmão/irmã em todos os aspetos da existência humana, descobrindo que podemos fazer isso de modo frutífero em qualquer trabalho honesto e no desempenho das atividades quotidianas. «Quando se procura viver assim no meio do trabalho diário, a conduta cristã transforma-se em bom exemplo, em testemunho, em ajuda concreta e eficaz; aprende-se a seguir as pegadas de Cristo, que coepit facere et docere (At 1, 1), que começou a fazer e a ensinar, unindo ao exemplo a palavra».

*Maria Aparecida Ferrari é Professora Associada de Ética Aplicada na Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade da Santa Cruz (Roma)