Filipe: “Em Fátima perguntei à Maria se tinha planos para os próximos 60 anos”

Maria João e Filipe conheceram-se em Coimbra. Tinham uma relação difícil com a fé, mas deixaram Deus entrar no seu trabalho, amizades e família. O pedido de casamento foi feito em Fátima. Vivem em Cantanhede, têm 4 filhos e uma paixão comum: as motos.

Fizemos 7 perguntas à Maria João e ao Filipe.

Podem falar sobre as vossas origens?

Maria João (MJ): Nasci em Loriga, pequena vila da Serra da Estrela, onde vivi com meus pais e irmãos mais velhos. Os meus avós foram muito importantes para a minha relação com Deus, em particular a minha avó materna. Com ela percebi a importância da comunhão, vendo como ela ficava feliz quando o fazia. Assim, o dia da minha primeira comunhão foi um dos mais marcantes da minha infância.

Já na adolescência e juventude fiz parte de um grupo de jovens da minha paróquia. Principalmente na semana santa e Páscoa, vivíamos a fé com mais intensidade.

Já na faculdade afastei-me um bocado da Igreja, vivendo uma “fé sentimental”. Se me apetecia e se me identificava com o discurso do Sr. Padre, ia à Missa, se nesse dia não sentia vontade, não ia.

Filipe (F): Nasci em Coimbra pois em 1980 as gravidezes de risco, de gémeos, eram para lá encaminhadas. Cresci em S.Jorge, perto da Batalha, lugar onde decorreu a Batalha de Aljubarrota, onde tive uma infância feliz numa família simples e comum. Tive 3 irmãos, entre eles uma irmã gémea, e um irmão mais velho que iria para o céu quando eu tinha 11 anos.

"Tive uma crise de fé, na adolescência. A morte do meu irmão fez-me pensar: "Irei ser um funcionário da sociedade e passar as semanas ansiando pelo fim-de-semana? Ou terei uma missão?"

Frequentei um grupo de jovens bastante ativo, e catequese que levei até ao Crisma.

Tive uma crise de fé, na adolescência, enquanto tentava perceber o que andava a fazer nesta vida. A morte do meu irmão contribuiu muito para esta inquietude. Irei ser um funcionário da sociedade e passar as semanas ansiando pelo fim-de-semana? Ou terei uma missão?

No meio disto, foi fundamental a perseverança dos meus pais, pois ter continuado a ir à Missa mesmo quando tinha muitas dúvidas sobre a fé ajudou-me a nunca me ter afastado de Deus.


Que sonhos tinham quando eram mais jovens?

MJ: Desde cedo, sonhava em lutar pela justiça, queria combater as injustiças, o que me levou à advocacia. Ainda influenciada por um missionário que veio falar a uma das aulas de Religião e Moral, houve ali um período em que imaginei um dia realizar uma missão.

"Desde cedo, sonhava em lutar pela justiça, queria combater as injustiças, o que me levou à advocacia"

F: Ser designer de carros ou de motos. Poder criar dando asas à minha imaginação (medo!). Um incêndio perto de minha casa (onde havia uma bomba de gasolina) despertou em mim a vontade (secreta) de ser bombeiro.


Como se reaproximaram de Deus? Que papel teve o Opus Dei nesse caminho?

MJ: A minha aproximação a Deus, dá-se na Universidade, ao frequentar uma formação sobre voluntariado, levando-me a conhecer o Clube dos Arcos, um centro do Opus Dei, onde encontrei uma segunda família. Na fase da “fé sentimental” sentia um vazio, por achar que meu dia-a-dia se resumia a ir Faculdade e casa, não fazendo muito pelos outros. Através do centro comecei a dar catequese a crianças, e a realizar atividades com idosos num centro de dia. O que mais me custou nessa altura, foi deparar-me com debilidade e solidão de um idoso. A maior lição foi perceber que por vezes a melhor ajuda é simplesmente fazer companhia e saber ouvir, em vez de querer fazer muitas coisas.

"A certeza de que Deus se fez homem, morreu por mim, e me deu uma vocação só me deu duas opções: ou me afastava do caminho e fugia o mais rápido que pudesse ou procurava saber que plano era esse".

F: Foi nos tempos de crise de fé quando já frequentava a Licenciatura em Design Industrial que através de dois amigos de infância mais próximos (recém-convertidos) que tive, retomei a formação espiritual. Foi inesperado mas providencial, para sair daquelas águas mornas em que navegava. O primeiro retiro foi uma bomba. Não conhecia uma boa parte de mim e dei comigo num entroncamento (existencial). A tomada consciência que Deus se fez homem, morreu por mim, e me deu uma vocação só me deu duas opções ou me afastava do caminho e fugia o mais rápido que pudesse ou continuava com o propósito firme de procurar saber que plano era esse. Não havia meio termo. Não sabia onde me levaria este caminho, mas tentar manter-me nele dava uma grande paz (e suspeitas de onde ele me pode levar). Só pela fé conseguia lidar com as incertezas da vida com tranquilidade.


Que impacto teve Deus no vosso estudo, nos vossos sonhos?

MJ: Com a formação cristã que recebi no Opus Dei, percebi que não vivia uma vida segundo a fé que professava, até perceber a importância de encontrar alguém com quem construir um projecto de vida.
Senti-me especialmente tocada por outras pessoas que eram coerentes com a sua fé. No clube percebi que as miúdas, filhas de famílias numerosas eram muito generosas, o que me inspirou, desejando ter, um dia, uma família assim.

F: Perceber que não era católico apenas ao Domingo foi perceber que Deus estava metido em tudo! Estudar e fazer os meus projetos em design sabendo que para além da altura e da largura, eles podiam ter (muita) profundidade encorajou-me a tentar fazer o melhor que consigo. Esta terceira d(D)imensão mudou tudo. Incluindo a forma de ver o que está para além de um aparente mau resultado.

"Pedi a Maria em casamento em Fátima no dia 12 de maio. Casamos pouco depois. A dentista da Maria perguntou-lhe: ‘Mas vai casar de aparelho? Daqui a uns meses já o vai tirar!’ Sabíamos que se atrasarmos os planos de Deus, estamos a perder tempo"

Conhecia a Maria mas não foi amor à primeira vista, mas quando deu o clique, foi tudo muito rápido e só pensávamos em casar.

Numa noite de 12 de Maio, em Fátima, já o recinto estava com pouca gente após a procissão das velas, perguntei à Maria se tinha planos para os próximos 60 anos. Pouco depois estávamos casados. Sabíamos o que queríamos e estava cada vez mais claro que estávamos condenados a ‘aturarmo-nos’ toda a vida. A dentista da Maria perguntou-lhe: ‘Mas vai casar de aparelho? Daqui a uns meses já o vai tirar!’ Sabíamos que se atrasarmos os planos de Deus, estamos a perder tempo (e o tempo é breve). Eu já tinha perdido muito tempo adiando decisões importantes, resistindo sair da ‘zona de conforto’.

Uma casa cheia com uma mesa comprida como nos natais da minha infância (lar luminoso e alegre) era para mim inspirador. Com a vinda dos filhos, a monotonia acabou, chegou a confusão... e a autêntica alegria.


… e, depois, mais tarde, que impacto teve Deus no vosso trabalho e família?

MJ: No trabalho percebi que podia oferecer aquilo que mais me custava, mas ao mesmo tempo que quando as coisas me correm bem, aí está graça de Deus. Já me vi muitas vezes na situação de não saber como fui capaz de fazer algo em tão pouco tempo... vejo aí intervenção do Espírito Santo. Aprendi a não julgar, tenho muitas vezes em mãos situações complexas de “culpa”, em que me sinto posta à prova em consciência, mas depois lembro-me que não tenho os dados todos, só Deus pode saber a verdade, e só a Deus cabe julgar, a mim cabe-me ajudar.

"No clube percebi que as miúdas, filhas de famílias numerosas eram muito generosas, o que me inspirou, desejando ter, um dia, uma família assim"

F: Não concretizei plenamente o sonho de criança, desenhando ‘apenas’ peças de motas e equipamentos para andar nelas, e ‘apenas’ projetando equipamentos para bombeiros. A doutrina ajudou-me a perceber que sou criatura, não Criador, podendo recriar a partir do que existe. O que não é pouco, sabendo que sou participante na obra criadora de Deus, cumprindo o Seu desígn(io). Ao longo do tempo percebi como a mão de Deus estava nas mudanças profissionais que foram surgindo. Nos momentos de maiores dificuldades (ou que aos ‘olhos da sociedade’) quando a curva profissional estaria em sentido descendente, vi que Deus estava a dar-me mais tempo em casa (mais flexibilidade e autonomia na gestão de tempo) no momento em que a família mais precisava. Também o envolvimento no Cenofa ajudou-me a perceber que tempo de qualidade (com a família, com os filhos) exige quantidade. E que a tenra idade deles poderia já ter passado se me apercebesse disso tardiamente.


Estão casados há mais de 10 anos. A vida mudou muito?

MJ: É um crescimento diário, sinto que nestes 10 anos evoluímos muito. Ao início acho que era insuportável. Nesse aspecto, a formação no Opus Dei e a proximidade de Deus foram um grande apoio para vencer o meu egoísmo na relação e pensar mais no outro. Um dia, numa meditação, o padre disse “as mulheres são a porta do céu dos maridos”. Isso motivou-me a tentar que assim seja, mas não por ser a cruz dele.

Com os filhos também sinto que amadurecemos pois deixamos de estar presos aos nossos “eus” para passar ao “nós”, sinto que cada filho fortalece a nossa relação embora nos limite o tempo. Mas tentamos arranjar um almoço a sós aqui e ali ou escaparmos dois dias, no verão, para uma volta de mota a dois, pois sabemos que unidos somos mais fortes para cuidar deles.

F: A vida de casado desafia-nos a sair de nós e dá-nos a oportunidade de servir, entregando-nos aos outros (a Maria, os miúdos). Não sei se isto está muito na moda mas é o único caminho que vejo para ser feliz no casamento. Procurando a felicidade própria estaremos sempre a defender o nosso eu e consequentemente ‘chocar’ com a nossa mulher.

A formação ajudou-nos a tornar claro que o casal é o tronco, os filhos os ramos, e que estes só podem dar fruto se o tronco estiver saudável. A importância em cuidar da vida do casal não esquecendo que vamos ter que nos ‘aturar’ quando eles ganharem ‘asas’ e quando isso acontecer é bom que os laços estejam fortes, mas também para que eles percebam que são fruto do nosso amor e que só estando unidos conseguimos levar a água ao nosso moinho.

"Instituímos também o dia ‘do filho único’ para o pai ou a mãe sair com cada um, ir buscar escola, almoçar, passear, tentando assim dar a atenção individual que cada um acaba por precisar"

É um grande desafio compatibilizar o trabalho e a família? Como fazem para dar atenção a quatro crianças pequenas?

MJ: Tentamos que o trabalho não se sobreponha à família, mas quando não conseguimos revezamo-nos para cuidar dos filhos e desta forma tentar minimizar a falta do outro. Falamos com os filhos explicando-lhes os porquês, aproveitando cada refeição para falarmos do que se passou no nosso dia, fazendo o jogo do “melhor” e do “pior” de cada dia.

Instituímos também o dia ‘do filho único’ para o pai ou a mãe sair com cada um, ir buscar escola, almoçar, passear, tentando assim dar a atenção individual que cada um acaba por precisar.

F: Fazer o que se deve, e estar no que se faz é uma boa máxima para nos lembrar que trabalhar e viver com intensidade e com intenção não só é a forma de ter tempo para ‘tudo’ (ou pelo menos para o mais importante) mas principalmente para nos santificarmos procurando cumprir o ‘tal’ plano divino.

Um amigo perguntou-me se tinha tempo para ir a um retiro ou atividades de formação cristã. Falava-lhe da grande responsabilidade em aproveitar essas ausências para aprofundar as lutas pessoais e para errar quando estou em casa. E de como os miúdos se vão percebendo que o pai tem muitos defeitos, mas que se esforça por melhorar (e que conta com a ajuda de Nossa Senhora), o que, no final do dia, tem mais impacto neles que muitos sermões ou palestras.