«Fez amável o Evangelho»

D. Álvaro del Portillo foi «um pai para cada um» dos que o conheceram, que fez «amável a verdade do Evangelho»: assim o recorda D. Javier Echevarría, atual prelado do Opus Dei e seu colaborador durante muitos anos, a poucos dias da sua beatificação

Javier Echevarría, Álvaro del Portillo e Joaquín Alonso (Roma, 1983)

Quando conheceu D. Álvaro? Que impressão lhe deixou após aquele primeiro encontro? Depois de tantos anos ao seu lado, qual é a primeira coisa que lhe ocorre ao recordar a sua figura?

O meu encontro com D. Álvaro é inseparável do meu encontro com S. Josemaría Escrivá de Balaguer, quando eu tinha 16 anos. Durante vários décadas, foi esse irmão mais velho em quem São Josemaria, muito especialmente, pôde apoiar-se, e nós observávamos a sua exemplaridade; não tenho dúvidas em assegurar que, desde o momento em que esteve à frente doOpus Dei, as suas virtudes tornaram-se ainda mais paternais e foi muito fácil para todos começar a vê-lo como um pai para cada um. Quando recordo a sua figura, vem-me à mente aquele seu sorriso, permanente, que era sinal de acolhimento afetuoso, de disponibilidade, de serviço.

Tenho consciência da graça de Deus que é ter convivido com dois santos e, por isso, peço todos os dias orações para corresponder a esse dom e transmiti-lo aos fiéis da prelatura e a todos os outros.

Como rezava D. Álvaro? E como vivia o dia a dia?

Aprendeu de são Josemaria a ser contemplativo no meio do mundo, através das circunstâncias correntes do dia: no trabalho, no cansaço, no estado de ânimo de cada momento, na preocupação pelos outros... Vivia uma relação de grande confiança com o Senhor, a quem recorria como Amigo e como Pai. O seu trato com Deus não era fruto de um momento extraordinário, ou de um empenho voluntarista, mas da vontade habitual tecida com as diversas circunstâncias que se partilham com quem se ama: um tempo de oração, a leitura meditada do Evangelho, a saudação filial a uma imagem de Nossa Senhora, uma breve visita ao sacrário ao sair de casa...

A sua intimidade com o sobrenatural proporcionava-lhe uma serenidade que atraía as pessoas. Tenho conhecimento que muitas pessoas, embora só o conhecessem por uns minutos de conversa, estão de acordo em destacar que lhes tinha transmitido uma grande paz, que não era a paz da quietude ou da impassibilidade, mas a de se saber querido por uma pessoa que focava as diferentes questões com a perspetiva do realmente importante. Por isso, D. Álvaro sofria com as penas dos outros e alegrava-se com as suas alegrias, ao mesmo tempo que contextualizava tudo nos desígnios da paternal providência de Deus.

Ele viveu muitos anos junto de São Josemaria. Como era a sua relação com o fundador doOpus Dei? Como o recordava?

Como se pode ler nos seus escritos e ver-se nos vídeos que se conservam, D. Álvaro teve sempre presente a figura e os ensinamentos de São Josemaria. Apesar das suas destacadas qualidades humanas e intelectuais, soube viver voluntariamente num segundo plano para ajudar São Josemaria a cumprir a sua missão. E, com humildade sincera, afirmava que não queria ser mais do que a sombra na terra da presença de São Josemaria. Depois, encarou a sua missão à frente da Obra como uma etapa de continuidade e de fidelidade ao carisma fundacional, empenhado em transmitir a todas as gerações a proximidade afetiva e efetiva com São Josemaria.

Muitos recordam-no como um homem de paz. No entanto, viveu a Guerra Civil e chegou mesmo a sofrer na carne a perseguição religiosa. Como viveu ele aqueles anos?

Nunca quis falar muito dos sofrimentos que, como tantos espanhóis da sua geração, teve que padecer durante aquela tremenda luta fratricida. Mas as poucas ocasiões em que relatou esses acontecimentos foram sempre para recusar todo o tipo de violência e pregar o perdão e o amor fraterno entre os homens. Dizia-nos: «Temos que perdoar sempre».

Como era a sua relação com Espanha? Como via os acontecimentos que se iam desenrolando no país ao longo dos anos?

Dois anos depois da sua ordenação sacerdotal, que foi em 1944, D. Álvaro foi para Roma, onde residiu até ao seu falecimento, em 1994. Fez-se romano, no sentido católico da expressão: universal. Além disso, nos primeiros anos, recebeu o encargo de São Josemaria de dirigir o apostolado da Obra em Itália, país que chegou a conhecer muito bem. Ao longo da sua vida, foi adquirindo aquilo que São Paulo chama uma solicitude por todas as Igrejas. Durante os seus anos como prelado do Opus Deiimpulsionou o trabalho da Obra por muitos países.

No entanto, esta mentalidade universal não o converteu numa pessoa sem raízes. Nunca perdeu o seu amor por Espanha, nem a sua caraterística forma de ser madrilena. D. Álvaro nasceu a poucos metros da Porta de Alcalá, e era muito madrileno; empregava expressões castiças na conversa e dava exemplos de recordações do seu tempo em Madrid. Além disso, como prelado e bispo manteve uma cordial e estreita comunhão com os bispos espanhóis e a Igreja em Espanha, em geral: instituições religiosas, movimentos eclesiais, etc...

D. Álvaro participou no Concílio Vaticano II como Presidente da Comissão pré-preparatória para o laicado. Como entendia ele o papel dos leigos na Igreja? Onde punha o acento tónico nas suas conversas e encontros com leigos? Que lhes pedia?

Com o seu trabalho naquela assembleia eclesial, D. Álvaro procurou difundir amplamente a chamada universal à santidade. Graças à sua experiência de anos a viver e a transmitir o espírito doOpus Dei, recebido de São Josemaria, pôde contribuir não só com a teoria, mas com a realidade da vida de milhares de fiéis leigos que, entendendo o seu Batismo como uma autêntica vocação para exercer o sacerdócio comum no trabalho profissional e nas circunstâncias correntes de cada dia, se esforçavam por manter uma coerência de vida entre a sua fé e as suas obras.

Mas D. Álvaro não só deu esses importantes contributos à teologia e ao Direito canónico, mas, sobretudo, ajudou milhares de leigos a descobrir a sua vocação batismal e mobilizou-os a implicarem-se na sociedade, semeando o fermento da fé mediante o trabalho profissional, a amizade e as relações familiares. Pode afirmar-se que continuou a missão de São Josemaria – o santo do corrente,como lhe chamou São João Paulo II - fazendo amável a verdade do Evangelho entre pessoas de todos os continentes, de todas as idades e condições.

Fez também parte da Comissão sobre a disciplina do clero. Como era D. Álvaro como sacerdote? E como entendia o ministério, em relação com a vida dos leigos?

Com efeito, foi Secretário da Comissão que redigiu o Decreto conciliar Presbyterorum Ordinis, sobre o sacerdócio. Nesse documento, podem ver-se os frutos maduros da relação entre o sacerdócio ministerial dos clérigos e o sacerdócio comum dos fiéis leigos. Ainda recordo o impacto que causava nalguns a sua explicação de que todos na Igreja, não só os leigos, mas também os Cardeais e Bispos, eram igualmente fiéis. Por outro lado, D. Álvaro explicava que «o sacerdote não é mais cristão do que os outros fiéis, mas é mais sacerdote, e inclusive é-o de um modo essencialmente distinto». Foi essa tese que desenvolveu no seu livroFiéis e leigos na Igreja e que está presente na teologia do Concílio.

A constante preocupação de São Josemaria pela santidade dos sacerdotes foi igualmente um dos grandes motores que impulsionaram a ação pastoral de D. Álvaro, que se traduziu em levar muito no seu coração os outros sacerdotes diocesanos quando sucedeu ao fundador. No último ano da sua vida, teve a alegria de poder afirmar que «São Josemaria sonhava com a magnífica realidade que hoje contemplamos: que um grande número de sacerdotes, mediante o fidelíssimo cumprimento dos seus próprios deveres, encarnassem o espírito doOpus Dei e contribuíssem para o difundir por todo o mundo».

D. Álvaro foi o sucessor de São Josemaria à frente doOpus Deie o primeiro prelado da Obra quando se constituiu em prelatura pessoal, em 1982. Nessa altura essa figura jurídica constituiu uma novidade no seio da Igreja: que balanço faz o Senhor depois de todos estes anos? E como viveu D. Álvaro as objeções que então alguns fizeram?

D. Álvaro alimentou sempre como prioridade continuar o legado fundacional de São Josemaria. Uma das tarefas mais importantes era a de culminar – a pedido de João Paulo I e, posteriormente, de João Paulo II – o caminho jurídico doOpus Dei, dentro do Direito geral da Igreja, para que a sua forma jurídica respondesse à sua realidade eclesial. São Josemaria deixou tudo preparado para que a Obra pudesse ser erigida como prelatura pessoal, uma figura jurídica contemplada pelo Concílio Vaticano II. D. Álvaro, com a prudência que o caracterizou, trabalhou com a Santa Sé, sem pressa, mas sem pausa, para levar a bom termo essa missão em benefício de toda a Igreja. Sou testemunha de como, durante esses anos, D. Álvaro rezou e fez rezar por essa intenção, e gostava de pormenorizar o imenso caudal de oração, sacramentos e sacrifícios de muitos milhares de pessoas, também entre os doentes e os indigentes. Apoiava-se em todos quando surgiam as dificuldades que costumam surgir neste tipo de processos e, em lugar de desanimar, se surgiam, agradecia-as ao Senhor, ao mesmo tempo que insistia connosco na necessidade de rezar mais.

Como desenvolve oOpus Deio apostolado num tempo eclesial marcado pela evangelização, em que o Papa Francisco pôs o acento tónico na família?

A imensa maioria dos fiéis da prelatura são fiéis leigos, cristãos correntes, pais e mães de família que procuram seguir Jesus Cristo aproveitando a sua situação familiar, profissional e social. Um dos grandes ensinamentos de São Josemaria foi recordar o valor do matrimónio como um caminho vocacional para a santidade. Atualmente, todos comprovamos que a sociedade progride ou retrocede moralmente de acordo com o termómetro do valor que se dá ao matrimónio, à paternidade, à maternidade, à vida familiar, em geral. Por isso, todos aqueles que participamos do espírito doOpus Dei, recebemos com grande alegria a notícia da decisão do Papa Francisco da próxima celebração das reuniões sinodais centradas na família. O Papa Francisco é um pastor muito próximo dos fiéis e conhece de perto as possibilidades e os riscos das famílias cristãs na atualidade. Todos os católicos devemos secundá-lo nesta intenção e apoiá-lo com a nossa oração e o nosso desejo evangelizador.

São numerosos os leigos vinculados aoOpus Deique têm aberta a sua Causa de canonização. É mesmo verdade que um pai ou uma mãe de família, um trabalhador no seu posto de trabalho, um estudante normal e corrente... podem chegar a ser santos, e santos de altar?

Assim foi ao longo da história do cristianismo! Especialmente nos primeiros séculos, foram numerosos os santos e santas que eram mães ou pais de família, adolescentes, soldados, artesãos, etc. É verdade que, durante uma época, essa realidade ficou num segundo plano, mas nunca desapareceu do caminhar da Igreja. O Senhor dispôs, inspirando São Josemaria, despertar entre os fiéis leigos a chamada à santidade, que não consiste em não ter defeitos, mas em lutar para ser leais ao Senhor, em aprender a amar a Deus e aos outros superando, dia a dia, o nosso egoísmo. Amar verdadeiramente todos não é fácil, mas está ao alcance de cada um se recorremos a Quem nos amou e se entregou por nós: Jesus Cristo, o Filho de Deus. Logicamente, alegro-me quando se abre uma nova Causa de canonização de um fiel leigo doOpus Dei, mas o que mais peço ao Senhor é que essas vidas sirvam de exemplo e estímulo para que muitos cristãos descubram o fascínio por Jesus Cristo, e a alegria de gastar a própria existência com Ele e por Ele.

Juan Luis Vázquez Díaz-Mayordomo

Juan Luis Vázquez Díaz-Mayordomo

Alfa y Omega