Características da boa amizade

Artigo de Salvador Bernal sobre como o fundador do Opus Dei, Josemaria Escrivá de Balaguer entendeu e viveu a amizade. O texto original foi Publicado originalmente em Scripta Theologica (jan-abr 2002, Vol. 34).

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Quando escrevi em 1976 Apuntes sobre la vida del Fundador del Opus Dei [Actualizado e publicado em formato digital recentemente em castelhano], dei o título Tempo de amizade ao capítulo quarto, na sequência do dedicado ao momento fundacional de 1928. Queria relatar como a história dos começos do Opus Dei se pode compendiar como história dos amigos do seu Fundador. Ao mesmo tempo, essas páginas apaixonadas expressariam uma característica da personalidade de Josemaria Escrivá de Balaguer: a sua profunda capacidade de amizade [1]. Refletiam a técnica que tinha selecionado ao elaborar o meu texto, como explicava na apresentação: chegar a um perfil baseado em factos e dados históricos, sem ordem cronológica; acontecimentos e escritos de diversas épocas aproximam-se e entrelaçam-se com liberdade, para apontar em traços rápidos os rasgos do Fundador que, em cada capítulo, queria destacar.

Queria relatar como a história dos começos do Opus Dei se pode compendiar como história dos amigos do seu Fundador

Recordava então que, quando chegou a Madrid, em 1927, a maior parte dos seus amigos ficou em La Rioja. Algumas famílias, conhecidas da sua, viviam na capital de Espanha. Depois do dia 2 de outubro de 1928, essas relações de amizade –junto às que surgiam com ocasião do seu trabalho sacerdotal, das suas tarefas de ensino na Academia Cicuéndez e das aulas particulares que se via obrigado a dar– foram o campo no qual frutificou a semente do chamamento cristão ao Opus Dei. Dia a dia, infatigavelmente, dedicando o seu melhor tempo à oração, acompanhado pela oração e o sofrimento dos doentes dos hospitais, o Fundador levou avante a sua missão: com os amigos, com os amigos dos amigos. O Pe. Josemaria Escrivá não deixava de rogar às pessoas que confessava que lhe facilitassem nomes de amigos que pudessem participar no seu apostolado. Os membros do Opus Dei daqueles anos, quando evocavam a chamada de Deus, costumavam referir-se sempre ao amigo que os apresentou ao que havia de ser para eles autêntico Pai (Padre).*

Não é demais matizar, desde o primeiro momento, que não forçava as coisas. Em concreto, nunca transformou a amizade em mero instrumento de apostolado. Deus serviu-se da sua capacidade de se dar bem com as pessoas para que viessem ao Opus Dei os seus primeiros seguidores. Mas abundam também os nomes – até de pessoas que acompanhava com a sua direção espiritual, segundo a terminologia clássica – a quem não falou do Opus Dei, ou se limitou a rogar-lhes que rezassem por ele e pela sua missão apostólica. Em primeiro lugar, foi amigo dos seus amigos.

Amigos e benfeitores de S. Josemaria

“Era muito alegre e compreensivo, muito simples e sem reservas, fazia-se amigo de todos, e todos gostavam dele. Eu não soube de ninguém que tivesse inimizade com ele pessoalmente”, pondera o dominicano Silvestre Sancho, com quem conviveu muito durante os anos quarenta. Não ignorava, contudo, as graves contradições que sofreu precisamente por essa altura. Talvez quisesse destacar a verdade profunda do que Josemaria Escrivá tinha escrito em Caminho, 838: “Não tenhas inimigos. - Tem apenas amigos... da direita - se te fizeram ou quiseram fazer-te bem - e... da esquerda - se te prejudicaram ou tentaram prejudicar-te. ”. Esta ideia, no seu fundamento sobrenatural, aparece também em Forja, 869: “Se de verdade amasses a Deus com todo o teu coração, o amor ao próximo - que às vezes te é tão difícil - seria uma consequência necessária do Grande Amor. E não te sentirias inimigo de ninguém nem farias aceção de pessoas”.

Não me deterei aqui na realidade histórica de umas maledicências e murmurações muito fortes. Quase sempre, quando tenho que escrever sobre o Fundador do Opus Dei, vem-me à cabeça o 17 de maio de 1992, dia da sua beatificação pelo Papa João Paulo II. Pela minha função informativa, tocou-me viver esse dia em Madrid. Residia então num edifício da rua Diego de León. Às dez da manhã de aquele domingo, segui a cerimónia, através da televisão, a muito poucos metros do oratório onde foi Josemaria Escrivá uma noite de 1942: “Senhor, se Tu não precisas da minha honra, eu para que a quero?”.

Eram anos do pós-guerra em Espanha. A Igreja tinha recuperado a liberdade perdida. Para o Fundador do Opus Dei, não foram tempos de vitória, mas de cruz. Nessa época de triunfalismo, deve ter sido um dos poucos eclesiásticos a quem era lícito insultar. Puseram-no como um trapo. Deus abençoou-o com a contradição dos bons, como se pode deduzir de um dos pontos de Forja, o 803, escrito em terceira pessoa, como se de outro se tratasse: “- Filho, ouve-me bem: mantém-te feliz quando te maltratarem e te desonrarem; quando muita gente se alvoroçar e estiver na moda cuspir em ti, porque és "omnium peripsema" - como que lixo para todos…”. Via-se considerado como toda a porcaria do mundo, como um pobre verme, e não lhe era fácil aceitar essa dura Vontade de Deus, porque tinha um caráter enérgico, sensível à liberdade e às injustiças, e estava bem consciente do valor radical da boa fama para os homens. Quando Mons. Escrivá de Balaguer evocava com rapidez estes acontecimentos, em Buenos Aires, numa tarde de 1974, acrescentava: “e custava-me, custava-me porque sou muito soberbo, e caíam-me umas lágrimas bem grandes...”. A verdade é que se abandonou por completo nas mãos de Deus, e renunciou a defender-se.

Em Forja 1052, ficou estampada a oração do Fundador do Opus Dei naqueles momentos de desconsolo: "Meu Jesus, que podia dar-te, além da honra, se não tinha outra coisa? Se tivesse tido fortuna, ter-ta-ia entregado. Se tivesse tido virtudes, com cada uma edificaria, para te servir. Só tinha a honra e dei-ta. Bendito sejas! Bem se vê que estava segura nas tuas mãos!".

Muitas vezes perguntaram-me pela razão dessas incompreensões. Não soube responder claramente, porque não se explica que os dardos tivessem sido lançados contra uma pessoa de tão grande coração. É bem verdade que o seu temperamento era vivo e enérgico, e talvez Deus permitisse a contradição para o ajudar a dominar o carácter, como podia deduzir-se indiretamente de Caminho, 20: “Chocas com o carácter deste ou daquele... Necessariamente há de ser assim; não és moeda de ouro que a todos agrade. / Além disso, sem esses choques que se produzem ao lidar com o próximo, como haverias de perder as pontas, arestas e saliências - imperfeições, defeitos - do teu temperamento, para adquirires a forma cinzelada, polida e vigorosamente suave da caridade, da perfeição? / Se o teu carácter e o carácter dos que vivem contigo fossem adocicados e brandos como merengues, não te santificarias.”.

A minha impressão é que dificuldades deste estilo surgiram sobretudo em ambientes eclesiásticos ou clericais. Assim se deduz de alguns acontecimentos –um pouco excessivos– entre os seminaristas de S. Francisco de Paula; de problemas seus com um parente próximo, Arcediago de La Seo [a catedral de Saragoça]; dos primeiros passos como sacerdote em Saragoça; de alguma reação exagerada que ouviu na cúria de Madrid; das críticas pela sua nomeação oficial no Patronato de Santa Isabel, ou das graves acusações dos anos de pós-guerra em Espanha (compatíveis com o apreço e prestígio entre bispos e superiores religiosos, que o chamavam para pregar a sacerdotes, seminaristas e comunidades de tantos lugares). Fenómenos análogos se darão anos depois em ambientes vaticanos específicos, insignificantes hoje, vendo as aprovações pontifícias e a expansão universal do Opus Dei. Talvez esse contraste de uma mentalidade laical –como a do Fundador– fosse indispensável com os elementos essenciais próprios de uma época cultural hoje felizmente superada.

Em nenhum caso, para Josemaria Escrivá, foram inimigos, mas benfeitores, pelos quais rezava diariamente: “Considera o bem que fizeram à tua alma os que, durante a tua vida, te importunaram ou procuraram fazê-lo. / Outros chamam inimigos a essas pessoas. Tu, procurando imitar os santos, pelo menos nisso, e sendo muito pouca coisa para ter ou ter tido inimigos, chama-lhes "benfeitores". E acontecerá que, à força de pedires a Deus por eles, simpatizarás com eles.”[2].

O fundador do Opus Dei teve muitos amigos

O grande lema da sua existência foi “ocultar-me e desaparecer é o que me é próprio, que só Jesus brilhe”. Com o passar dos anos, o Beato [São] Josemaria triunfou plenamente no seu propósito de passar inadvertido. Foi só depois do 26 de junho de 1975 que pude verificar a amplitude e a qualidade de pessoas que o queriam e admiravam em silêncio, sem expressá-lo externamente. Pelo contrário, a partir do seu falecimento, em todas a parte se publicaram artigos, comentários, recordações, que vinham exprimir o afeto diante do amigo desaparecido, e mostravam publicamente a gratidão que não se tinham atrevido a manifestar antes, porque Mons. Escrivá de Balaguer não o tolerava: os agradecimentos –assinalava habitualmente– só a Deus devem dar-se. A realidade é que teve muitos amigos, e foi um grande amigo; e continua a ser amigo dos que recorrem confiadamente à sua intercessão.

Nos meus contactos com as pessoas que o conheceram e conviveram com ele, apesar de serem mulheres e homens muito diferentes, adverti idêntica reação. Só havia facilidades: como se me agradecessem poder lançar por fim a todos os ventos vivências íntimas que não queriam conservar só para eles próprios, pois podiam ajudar a outras almas, em serviço da Igreja.

Para além dessas vivências imediatas, dispuseram-se logo com gosto a pôr por escrito a sua recordação pessoal sobre a vida e as virtudes de Mons. Escrivá de Balaguer, pensando na causa de canonização. Anos depois, com a sua autorização expressa, publicou-se um livro que reunia especialmente testemunhos de personalidades do mundo eclesiástico (cardeais, bispos, sacerdotes, religiosas e religiosos). Em finais de 2001, foi traduzido para italiano pelas Edições Ares com o expressivo título Un santo per amico [3].

Dizer de alguém que tem muitos amigos é um elogio evidente. Na experiência cristã, não é menos claro que a graça de Deus dilata o coração das almas santas: a sua capacidade de querer não se esgota num círculo reduzido de pessoas íntimas, de amigos do peito, mas amplia-se em planos sucessivos. De facto, a própria amizade cresce com o número de amigos, incompatível com ambientes pequenos, segundo o que se lê em Sulco, 752: “A atração do teu trato amável tem de aumentar em quantidade e qualidade. Se não, o teu apostolado extinguir-se-á em cenáculos inertes e fechados.” Até alcançar a máxima sociabilidade solidária da amizade ou caridade social, exigência da fraternidade humana e cristã [4].

Numa página de Apuntes..., resumi a diversidade, a universalidade de pessoas, que a propósito da sua morte publicaram artigos, comentários e recordações do amigo desaparecido: “Ao lado dos amigos de infância ou dos condiscípulos, aparecem professores e alunos; jornalistas e escritores, como Aznar ou Cortés Cavanillas; catedráticos e universitários, como Rodríguez Casado ou García Hoz; artistas como Jenaro Lázaro e operários, como Gonzalo Larrocha, porteiros da Residência DYA, na Rua de Ferraz, 50; sacerdotes e religiosos, que, com os anos, vieram a prestar destacados serviços a toda a Igreja: D. Vicente Blanco, D. Sebastián Cirac, D. José María García Lahiguera, D. Casimiro Morcillo, D. Pedro Cantero, D. José María Bueno Monreal, D. Marcelino Olaechea, frei José López Ortiz...”. Se tivesse redigido hoje essa página, poderia ter acrescentado algumas outras figuras exímias na Igreja universal no século XX, como os cardeaisBaggio, Casariego, Dell’Acqua, Hengsbach, Höffner, König ou Poletti.

O Beato [São] Josemaria destacou em Sulco, 193 que “os que encontram Cristo não podem fechar-se no seu ambiente. Triste coisa seria essa redução! Têm de abrir-se em leque para chegar a todas as almas. Cada um deve criar - e alargar - um círculo de amigos, no qual influa com o seu prestígio pessoal, com a sua conduta, com a sua amizade, procurando que Cristo influa por meio desse prestígio profissional, dessa conduta, dessa amizade.”.

Dessa perspetiva, a capacidade de amizade dilata-se até extremos incríveis, porque “o coração humano tem um coeficiente de dilatação enorme. Quando ama, dilata-se num crescendo de carinho que supera todas as barreiras. Se amas o Senhor, não haverá criatura que não encontre lugar no teu coração.”[5].

Vai-se então às almas com espírito aberto, sem discriminação alguma. A humilde magnanimidade do seguidor de Jesus derruba barreiras e divisões, e transforma o cristão em efetivo e permanente instrumento de unidade[6].

A iniciativa na amizade

O cristão procura sempre sair de si mesmo, para se interessar pelos outros: quem são, que fazem, como pensam. Está convencido de que, relativamente aos que o rodeiam, não se pode conformar com qualquer tipo de passividade ou languidez[7], especialmente quando observa que há muitas pessoas que sofrem a solidão e a indiferença. Ao homem de Deus não custa tomar a iniciativa , dar o primeiro passo para a amizade. Como evoca Mons. Echevarría, o Beato [São] Josemaria Escrivá “não se deixou levar por simpatias ou antipatias na sua relação com os outros. Atendeu pessoas que eram evitadas pelas suas amizades, por colegas de trabalho, ou pela própria família. Teve uma solicitude paciente com pessoas isoladas pelas suas doenças, pelo seu carácter sombrio ou pelas suas extravagâncias”[8]. Cumpriu o propósito firme de boa amizade, que deixou estampado em Sulco, 748: “que nunca deixe de praticar a caridade, que nunca dê entrada na minha alma à indiferença”.

Secundava assim na sua existência o exemplo da vida de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, que tantas vezes considerou na sua meditação pessoal, como se comprova ao ler os seus escritos: “Reparai que toda a sua vida está cheia de naturalidade. Passa 30 anos oculto, sem chamar a atenção, como qualquer outro trabalhador, e conhecem-no como o filho do carpinteiro. Ao longo da sua vida pública, também não se nota nada que destoe, que pareça estranho ou excêntrico. Rodeava-se de amigos, como qualquer dos seus concidadãos, e no seu porte não se diferenciava deles. De tal modo que Judas, para o denunciar, precisa de combinar um sinal: aquele a quem Eu beijar, é esse. (Mt XXVI, 48)”[9].

Muitas vezes se emocionou o Beato [São] Josemaria perante o calor da amizade da casa de Betânia, o soluçode Jesus que chora por Lázaro, o amigo morto [10]. Comovia-se ante a Humanidade de Cristo, “que não deixava de agradecer os serviços que lhe prestavam. Atraía-o a felicidade que se respirava junto ao Mestre, que não afasta as provas de carinho dos que o rodeavam. E destas lições tirava consequências: ‘o Senhor não tinha um coração seco, tinha um coração de infinita profundidade que sabia agradecer, que sabia amar’” [11].E fez amplo eco nos seus ensinamentos de essa grande pedagogia divina do Coração de Cristo, que contrasta com tanta pequenez humana: “Jesus Cristo, que veio salvar todos os povos, e deseja associar os cristãos à sua obra redentora, quis ensinar aos seus discípulos – a ti e a mim – uma caridade grande, sincera, mais nobre e valiosa: devemos amar-nos mutuamente como Cristo nos ama a cada um de nós. Só desta maneira, isto é, imitando o exemplo divino – dentro da nossa rudeza pessoal – conseguiremos abrir o nosso coração a todos os homens, amar de um modo mais elevado, inteiramente novo” [12].

Em última análise, Jesus “é Amigo, o Amigo: vos autem dixi amicos (Ioh XV, 15), diz-nos Ele.Chama-nos amigos e foi Ele quem deu o primeiro passo, pois amou-nos primeiro. Contudo não impõe o Seu carinho, oferece-o. E prova-o com o sinal mais evidente da amizade: ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos (Ioh XV, 13)” [13].

De certo modo, o Fundador do Opus Dei aprendeu na casa dos pais essa característica da alma cristã que leva a antecipar-se no afeto. Amigos de infância evocaram, por exemplo, a amizade de Josemaria com o pai, manifestada externamente nos grandes passeios que davam juntos em Barbastro. Essa relação de confiança baseava-se na iniciativa de José Escrivá, que o convidava a “que abrisse o coração e lhe contasse as suas preocupações, com o objetivo de ajudar a criança a vencer arrebatos impulsivos do seu nascente carácter ou a sacrificar gostos e caprichos. José escutava-o sem pressas e respondia às perguntas próprias da curiosidade infantil perante a vida. Ao filho. agradava ver que o pai se mostrava disponível para ser consultado e que, se lhe fazia uma pergunta, o levasse sempre a sério[14].

Características da boa amizade

Na minha recordação pessoal de Mons. Escrivá de Balaguer, e em tantos livros sobre a sua vida e nos seus ensinamentos, encontrei essas características de boa amizade que configuram uma das facetas mais ricas da sua personalidade humana e apostólica. Agrupei-as nuns títulos que não refletem uma ordem estrita de preferência: não me é fácil –nem sequer neste ponto– distinguir se estamos perante uma faceta do seu caráter ou perante o fruto da graça de Deus, que atua de modo aparentemente natural.

O humano e o divino fundem-se harmonicamente na vida do Fundador do Opus Dei, caminho de santidade no meio do mundo. Chega um momento no qual o Beato [São] Josemaria afirma que não sabe distinguir entre oração e trabalho. Algo semelhante é observado ao lidar com as outras pessoas: “Num cristão, num filho de Deus, amizade e caridade formam uma só coisa: luz divina que dá calor” [15]. E aí radica o apostolado mais importante dos fiéis do Opus Dei: o que cada um “realiza através do testemunho da sua vida e com a sua palavra, no convívio diário com amigos e companheiros de profissão. Quem poderá medir a eficácia sobrenatural deste apostolado silencioso e humilde? É incalculável a ajuda que representa o exemplo de um amigo leal e sincero, ou a influência de uma boa mãe no seio da família” [16].

Configura-se assim a grandeza espiritual das circunstâncias mais normais, não logicamente isentas de graças divinas especiais, como afirma Mons. Javier Echevarría: “Nosso Senhor concedeu-lhe uma capacidade muito única de se comunicar: mediante este dom do Céu, fazia-se entender com facilidade por pessoas de diversas culturas, formação, raças, nações. Neste sentido, não faltam provas de que possuía o dom de prescrutar corações, porque se produzia uma tão exata adequação do seu conselho às necessidades e condições de uma alma concreta, que não podia pensar-se numa mera coincidência. Muitos ‑ os interessados ou os seus amigos‑ assim o testemunharam: encontravam o remédio e a compreensão mais profundas ante a sua própria situação, ou sentiam-se alentados ante as suas inquietações, sempre envoltos pelo carinho sobrenatural e humano de Mons. Escrivá de Balaguer. Isto sucedia, inclusive, sem ter-lhe manifestado o interior da alma e, às vezes, mesmo sem a pessoa estar presente” [17].

Josemaria Escrivá de Balaguer, um amigo desinteressado

A amizade verdadeira não se baseia no intercâmbio embora, certamente, suponha comunicar sentimentos, penas, alegrias, passatempos, favores, serviços. Por isso, os ricos podem ter, aparentemente muitos amigos [18], e do pobre até os amigos se afastam [19]. Mas, em rigor, o amigo autêntico assume como próprias as preocupações, ilusões ou anseios do outro. Não pensa em si mesmo. O seu desinteresse pessoal é traduzido paradoxalmente em interesse objetivopor aqueles que estão ao seu lado, disposto a compartilhar tudo com alegria, também a dor, sem esperar nada em troca: “Quando se ama de verdade –expressava com vivacidade Mons. Escrivá em 1954 ‑, dá-se com alegria, sem cobrar e sem procurar agradecimento: é suficiente, então, para a alma, a oportunidade de se gastar de bom grado! Não se pensa se já se fez muito, ou se custa: ao tratar com Deus não se repara nos obstáculos porque, como no amor humano, não há dificuldades nem defeitos que impeçam a conversa com a pessoa amada” [20].

Desde a infância, com o exemplo recebido no lar de Barbastro, Josemaria foi um rapaz normal, aberto, simpático. Compartilhou os passatempos e esperanças dos rapazes da sua idade, os seus jogos e diversões. Fez bons amigos, que não o esqueceram, assim como ele não os esqueceu. Assinala Mons. Javier Echevarría que, “ao recordar aqueles tempos da sua infância e da sua primeira adolescência, em que a necessidade de se interessar pelos outros e de amá-los lealmente estava registada na sua alma ‑como observava nos seus pais‑, uma consideração que lhe fazia frequentemente a mãe, Maria Dolores, veio-lhe à cabeça: Josemaria, vais sofrer muito na vida, porque pões todo o coração no que fazes. Asseguro que aquele presságio materno se cumpriu” [21].

Josemaria Escrivá soube amar. Estava atento a tudo, de modo particular relativamente aos que estavam mais próximos. Mas não esquecia as pessoas que passava muito tempo sem ver. Lembrava-se delas porque gostava delas. A sua excecional memória era fruto do seu grande coração, da sua capacidade de se interessar verdadeiramente pelos outros: no que é grande –a vida da alma‑ e nos pormenores mais pequenos da vida quotidiana. O carinho não sabe nada de enteléquias ou de abstrações: no Beato [São] Josemaria ele brotou forte e terno, cheio de intuição e rapidez.

Álvaro del Portillo –sem nenhuma dúvida, na terra foi o melhor testemunho do Fundador do Opus Dei– contou muitas vezes como o tinha impressionado a dor do Padre ante a morte de amigos queridos: “Era extraordinariamente sobrenatural, e por isso mesmo, também muito humano: gostava dos seus amigos com todo o coração”. E relatava o que sucedeu em Madrid, durante a guerra civil espanhola. A partir do dia 18 de julho de 1936, teve que mudar-se de um esconderijo para outro, pois a sua vida corria perigo perante a perseguição religiosa. A partir de um determinado momento, o Pe. Josemaria e Álvaro compartilharam um refúgio. Num desses dias, o Fundador teve que deambular umas horas pelas ruas da capital, e soube da morte de dois amigos. Álvaro nunca esqueceu a imensa pena com que lhe referiu o assassinato do Pe. Lino Vea‑Murguía, e novos detalhes sobre o martírio do Pe, Pedro Poveda,Fundador da Instituição Teresiana [22].

O desprendimento vacina contra o egoísmo, a vaidade, a timidez que se fecha em si mesma, a inveja, as comparações, a suscetibilidade [23]. Eajuda a superar momentos de desânimo, perante a possível falta de correspondência, pois, ao fim e ao cabo, há amigos que o são só de nome [24]. Não lhe faltaram na vida desenganos, como recolheu numa carta de 1971, que cita Vázquez de Prada, 79: “Porque será que, apesar das minhas misérias, eu costumo ser sempre mais amigo dos meus amigos do que eles de mim? Seguramente é porque me faz muito bem, se aceito –fiat!–, esse desapego”. A experiência parece refletir-se também em Caminho, 363: “Desiludido. –Vens de asa caída. Os homens acabam de te dar uma lição ‑ Julgavam que não necessitavas deles, e desfaziam-se em oferecimentos. A possibilidade de terem de te ajudar economicamente ‑uns miseráveis tostões‑ converteu a amizade em indiferença.‑ Confia só em Deus e naqueles que, por Ele, estão unidos a ti.”

Mas o desalento passageiro não lhe deixa a marca do agravo, porque “a verdadeira caridade, assim como não faz contas aos “constantes e necessários” serviços que presta, também não anota (“omnia suffert”, tudo suporta!) os desplantes que sofre” [25].

Um amigo cordial

Como reiterei no começo, en Apuntes... consegui reunir uma infinidade de pormenores do seu carácter, do seu modo de ser e de comportar-se, em acontecimentos e recordações vivas e recentes, que tornaram possível a minha aproximação a uma tarefa que me parecia francamente árdua: transmitir, aos que não tiveram oportunidade de conhecê-lo pessoalmente, o calor humano e espiritual –o grande coração– de Josemaria Escrivá de Balaguer.

As testemunhas coincidiam em enfatizar a sua alegria, o seu afeto, inclusivé quando teve que repreendê-las. Tinha-lhes ficado gravado na alma a luz do seu olhar, a expressão carinhosa dos seus olhos, a solicitude acolhedora do seu rosto, a facilidade do seu sorriso, a expressividade amável dos seus gestos, os seus braços abertos. Não resisto em reproduzir o expressivo comentário dos monges jerónimos de El Parral (Segovia) nos princípios dos anos quarenta, quando chegava aí o Pe. Josemaria: “Lá vem o sacerdote que está sempre de bom humor”.

Não imaginava eu, quando conheci Mons. Escrivá de Balaguer no dia 8 de setembro de 1960 no Colegio Mayor Aralar de Pamplona, que tivesse tal simpatia, tal capacidade de meter no bolso os universitários. Mas a sua facilidade conatural de se fazer entender, a sua rapidez nas respostas, a sua graça e simpatia humanas, nada tinham a ver com um fazer-se simpático. Tudo me pareceu forte, espontâneo, verdadeiro.

Eu não sabia naquela altura que ele tinha sido sempre assim. Álvaro del Portillo destacava a simplicidade com que, vestido de batina, tratava os seus colegas universitários da Faculdade de Direito de Saragoça nos anos vinte: “De vez em quando, à saída das aulas, osamigos convidavam-no a tomar um aperitivo num local frequentado pelos estudantes: era o bar Abdón, no Paseo de la Independencia, junto à Plaza de la Constitución. Josemaria aceitava algumas vezes, e assim cultivava a amizade de um modo muito natural. O seu comportamento era tão sacerdotal e ao mesmo tempo tão humano que, quando se ordenou sacerdote, alguns dos seus colegas o escolheram como confessor habitual” [26]. E, desde sempre, sabia discordar deles quando era necessário, sem se tornar antipático [27].

Mons. Escrivá de Balaguer destacava-se pela sua grande cordialidade, a sua maneira marcada - amigável e franca - de falar do divino e do humano. Ao seu lado, era fácil sentir-se compreendido, envolvido, impulsionado para o amor de Deus. O seu coração desbordava carinho: para com Deus, para com os homens, para com o mundo. E assim desejava que transbordasse na vida das pessoas: “É uma pena não ter coração. Os que nunca aprenderam a amar com ternura são uns infelizes. Nós, os cristãos, estamos apaixonados pelo Amor: o Senhor não nos quer secos, insensíveis, como uma matéria inerte. Quer-nos impregnados do seu carinho!” [28],

Daí derivava talvez a sua facilidade para descobrir e acentuar o positivo nos acontecimentos e nas pessoas [29], ainda mais que pessimismos, contrariedades ou calúnias. Longe de diminuir o valor ou a honra de alguém, colocava em tudo o sinal “mais” do carinho, da afirmação gozosa, dos braços abertos de Cristo na Cruz.

Repetia com gosto a razão que usava S. Tomás de Aquino: “Em todo o homem existe algum aspeto pelo qual os outros podem considerá-lo como superior, conforme as palavras do Apóstolo "levados pela humildade, tende uns a outros como superiores" (Filip. II, 3). De acordo com isto, todos os homens devem honrar-se mutuamente” [30]. E Mons. Escrivá concluía: “A humildade é a virtude que nos faz descobrir que as manifestações de respeito pela pessoa –pela sua honra, pela sua boa fé, pela sua intimidade‑, não são convencionalismos exteriores, mas as primeiras manifestações da caridade e da justiça” [31].

O seu trato com os outros foi cheio de requinte, de politesse –termo francês que vinha com frequência aos seus lábios–, da atenção própria dos que se querem sinceramente. Aplicava essa experiência humana ao relacionamento das almas com Deus, para assinalar a falta de delicadeza que supõe não dar importância a pequenos pormenores, que obstaculizam a plenitude do amor. Notava-se a força de quem, antecipadamente, o tinha experimentado numa relação com os outros: “se vamos pela rua e, na travessia do cruzamento com outros peões, nos encostamos ou damos um pequeno encontrão, a isso não damos a mínima importância; mas se o que nos dá um encontrão é nosso amigo, e o faz com indiferença, com desprezo, desperta-se logo na nossa alma uma sentida dor. Esta realidade devemos aplicá-la à nossa relação com o Senhor” [32].

Um amigo generoso

Podia ter intitulado esta rubrica com outros adjetivos –sacrificado, serviçal, magnânimo–, mas preferi a simplicidade da generosidade que, num certo modo, destaca o carácter pessoal da amizade “de tu a tu, de coração a coração” [33]. Para já, não exclui a plenitude evangélica que leva a entregar a própria vida pelo amigo: ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus amigos [34], encarnado por Quem nos chamou amigos [35]. Mas evoca melhor a situação vulgar de quem pensa no que de verdade necessita o amigo, custe o que custar, renunciando a si mesmo, com espírito de sacrifício [36]. Como se lê na Escritura, “quem por amor do amigo não repara em sofrer algum prejuízo é um homem justo” [37].

Por aí corre, segundo a mensagem do Fundador do Opus Dei, o canal da mortificação que santifica a própria alma sem mortificar aos outros; pelo contrário, torna-lhes mais amável o caminho da santidade no meio do mundo: “Penitência é tratar sempre os outros com a maior caridade, começando com os teus. É atender com a maior delicadeza os que sofrem, os doentes e os que padecem. É responder com paciência aos maçadores e inoportunos. É interromper ou modificar os nossos programas, quando as circunstâncias –sobretudo os interesses bons e justos dos outros ‑ assim o requerem” [38].

Josemaria Escrivá de Balaguer deixou páginas excecionais sobre o sentido humano e divino do espírito de serviço, nem sempre compreendido na cultura moderna, construída sobre uma hipertrofia do individual que oculta, sem querer, facetas essenciais da condição e dignidade da pessoa. Em qualquer caso, a amizade –como a família ou o trabalho em equipa– avança baseando-se em servir com alegria, inclusivamente sem que o interessado o note [39].

Os amigos ajudam-se mútua e desinteressadamente, com retidão de intenção, sem amizades particulares, com sentido de justiça que exclui tratamentos de favor ou informações privilegiadas. Mas fazem-se favores. E assim se comportava o Beato [São] Josemaria. Por exemplo, conservam-se muitas cartas que refletem as diligências e encargos que fazia em Madrid, pelos finais dos anos vinte e também nos anos trinta, a colegas de Saragoça ou a sacerdotes com os que tinha coincidido na residência da rua de Larra: desde ir buscar uma batina ou reservar um quarto na pensão, a comprar umas pedras de isqueiro. Procurava fazer esses favores de imediato, sem esperas desnecessárias [40]. Prestava a todos, com um sorriso nos lábios –mesmo em momentos de dor‑ um serviço sem regateios [41].

Um amigo delicado

A amizade arranca de uma primeira coincidência, cultivada depois com encontros mais ou menos assíduos, em que cada um dá o melhor de si mesmo. Em concreto, o amigo sabe arranjar tempo –um bem escasso na vida intensa e cheia de Josemaria Escrivá de Balaguer–, para estar com os outros. A amizade cresce com trabalhos e interesses comuns, em festas e no lazer, nos momentos difíceis. O Beato [São] Josemaria não podia ir a tudo, e substituía a sua ausência com palavras iluminadas que deixavam uma calorosa recordação escrita para sempre. E sabia também perder tempo para alegrar a vida dos seus amigos. Por exemplo, Álvaro del Portillo ouviu-o contar que quando era seminarista em Saragoça, foi muito amigo do Vice-presidente do Seminário de São Carlos, D. António Moreno. O Fundador relatava-o com estas palavras: “Por amizade e especialmente por caridade ‑a mim não me dava gosto nenhum fazê-lo‑, alguma vez, quando descia ao seu quarto, acedia a jogar o dominó com ele. Recordo que tinha que o deixar ganhar porque, se não, não ficava contente e até se aborrecia. Para mim, que estava decidido a aprender dos sacerdotes que gastavam a sua vida pelo Senhor, aqueles bocados de tempo eram momentos muito agradáveis, porque esse sacerdote demonstrava muito espírito sacerdotal, muita experiência pastoral e era muito humano. Contava-me acontecimentos muito gráficos, com grande sentido sobrenatural e pedagógico, que me faziam um bem enorme” [42].

Para descrever a sua dedicação, basta evocar a intensidade que punha nos anos trinta em organizar e realizar visitas aos hospitais de Madrid. Sintetizou-o bem José Manuel Doménech, então jovem estudante, a respeito de Santa Isabel: destacava “como empregava o seu tempo generosamente connosco –o grupo de estudantes que atendíamos os doentes– e também com esses próprios doentes”.

António Rodilla, muitos anos Vigário Geral de Valência, Reitor do Seminário Arquidiocesano e Diretor do Colégio Maior San Juan de Ribera em Burjasot, traçou por seu lado o amplo quadro de amabilidades e delicadezas que Josemaria Escrivá teve com ele e com a sua família: desde o consolo em situações íntimas muito dolorosas, até à presença física no enterro da sua mãe.

Não sei se alguém teve a paciência –a que me referi em Apuntes...– de calcular as muitas horas que gastou convidando a almoçar os múltiplos amigos com –a frase é de Caminho, 974– “a velha hospitalidade dos Patriarcas, com o calor fraterno de Betânia”.

Sei, no entanto, que se realizou um esforço ímprobo para reconstruir a sua correspondência. Escreveu milhares de cartas, prolongamento à distância de uma amizade profundamente sentida. Não deixou de escrever nem durante os anos da guerra de Espanha, contornando com imaginação criativa a censura postal. Muitas pessoas deixaram constância da sua gratidão quando, isolados nas frentes, recebiam as notícias do Fundador, que os alentava a seguir na brecha de outras lutas: a sua luta interior, o seu trabalho intelectual, o seu afã apostólico, a sua preocupação pelos outros, a reconstrução das suas vidas, para continuar a fazer uma sementeira cristã de paz quando terminasse o conflito. Sonho com o dia em que esteja pronto para a imprensa o melhor de esse epistolário: ajudará a compreender mais a fundo a personalidade de Josemaria Escrivá de Balaguer.

Um amigo leal

Não é adjetivo tópico, mas verdadeiro. Talvez redundante: como entender um amigo que não seja fiel, leal? Monsenhor Escrivá de Balaguer ansiava por lealdade, também para a Igreja, em tempos não fáceis após o Concílio Vaticano II. Até então, sabíamos que a sua virtude humana preferida era a sinceridade. Mas, nos últimos anos, como um refrão, enalteceu a lealdade: como ser fiel a Deus, se não se saboreia a delícia da lealdade humana, da fidelidade aos outros? E isso porque, “para que este mundo nosso vá por um caminho cristão ‑o único que vale a pena‑, temos de viver uma amizade leal com os homens, baseada numa prévia amizade leal com Deus” [43].

Sem dúvida, o amigo fiel é um tesouro, com o que nada é comparável [44]. Confiamos nesse amigo para desabafar o coração e buscar conselho nas encruzilhadas da vida. Às vezes, desejamos só falar, contar o que nos fizeram, explanarmo-nos de tristezas e dissabores [45]. Mas o verdadeiro amigo oferece também a ajuda do seu conselho [46], “com o ascendente que a intimidade dá” [47]: canaliza preocupações, abre horizontes, suaviza a vida) [48].

Essa profunda realidade transforma-se, sem perder a sua condição humana, em canal apostólico específico, segundo o espírito do Opus Dei; tanto, que o Fundador o incluiu expressamente nos Estatutos da Prelatura (n. 117): os fiéis do Opus Dei “suum personalem apostolatum exercent praesertim inter pares, ope praecipue amicitiae et mutuae fiduciae”; o texto acrescenta, pouco depois, com deliberada repetição, após citar a passagem emblemática de Jo 15, 15: “peculiare igitur Praelaturae fidelium apostolatus medium est amicitia et assidua cum collaboratoribus consuetudo”. Desde sempre, foi paradigmática a passagem de Caminho, 973: “Essas palavras, deslizadas tão a tempo ao ouvido do amigo que vacila; a conversa orientadora que soubeste provocar oportunamente; e o conselho profissional, que melhora o seu trabalho universitário; e a discreta indiscrição que te faz sugerir-lhe imprevistos horizontes de zelo... Tudo isso é apostolado da confidência”.

O Beato [São] Josemaria era um homem de Deus que arrastava os seus amigos para Ele. Tinha muito gosto em lidar com velhos amigos e dizer-lhes coisas íntimas; e levava-os à vida interior, convencido de que isso é o que faz Cristo com os homens: uma razão mais para conhecer e tratar a Humanidade Santíssima do Senhor.

Além disso, o amigo leal não falha quando chegam aflições [49], o tempo da doença, a dor ou o fracasso profissional. Antecipa-se, sai ao encontro, como Cristo ressuscitado buscou os discípulos de Emaús [50]. Tudo, menos deixar só o amigo em circunstâncias adversas, até arriscando sofrer consequências negativas [51]: para além de rezar, é preciso “fazer por ele o que gostarias que fizessem por ti, em circunstâncias semelhantes. Sem o humilhar, é preciso ajudá-lo de tal maneira que se lhe torne fácil o que lhe é difícil” [52].

Especialmente, passa-se mal na vida quando a calúnia é desencadeada. Josemaria Escrivá, que a sofreu na sua própria carne desde muito novo, nunca deixou nenhum amigo abandonado. Mons. Javier Echevarría pôde comprová-lo durante os vinte e cinco anos que viveu a seu lado em Roma: “Jamais se absteve de dar a mão aos que tinha conhecido, se se viam envolvidos em situações desagradáveis, motivadas por insídias, calúnias ou incompreensões. Recordo o caso de vários eclesiásticos, caídos em desgraça e abandonados pelos seus companheiros e pelos que os tinham servido, que encontraram a companhia de Mons. Escrivá de Balaguer, que não ocultou a sua relação com essas pessoas, também perante os que criavam o vazio em seu redor” [53].

Muitas pessoas, como Mons. Juan Hervás Benet, promotor dos Cursos de Cristandade, deixaram o testemunho do alento do Beato Josemaria quando se levantavam contra ele e contra a sua iniciativa apostólica insídias e incompreensões. Mons. Escrivá não se limitava a dar o consolo da sua palavra, que não teria sido pouco. Além disso, movia-se e chegava à raiz dos problemas e soluções: “Só Deus sabe –reconhece Mons. Hervás– em que medida pôde contribuir a abrir os caminhos da Providência” [54].

Com maior motivo, o amigo fiel nunca dá ocasião a alguma maledicência ou mesquinhez: “Nunca permitas que a erva ruim cresça no caminho da amizade: sê leal [55]. E noutro lugar: “Evita sempre a queixa, a crítica, as murmurações...: evita de modo absoluto tudo o que possa introduzir discórdia entre irmãos” [56]. De este modo, a lealdade faz indestrutível a amizade.

Um amigo agradecido

Relatei noutro lugar que a última vez que estive junto a Mons. Escrivá de Balaguer, no dia 26 de maio de 1975, presenciei com muita proximidade o seu espírito de agradecimento. Sucedeu no aeroporto de Barajas, ao regressar de Torreciudad, Barbastro e Saragoça. Eu estava num dos parques de estacionamento exteriores, e ali chegou num automóvel da companhia aérea. Não me deu tempo de lhe abrir a porta, pois adiantou-se com viveza. Antes de seguir o seu caminho, procurou rapidamente o condutor desse veículo, para se despedir dele e agradecer-lhe pelo serviço que acabava de lhe prestar. Penso que esta gratidão, habitual na vida do Fundador do Opus Dei, refletia o que deixou escrito em Forja, 502: “Se se faz justiça a seco, é possível que as pessoas fiquem feridas”.

O agradecimento constituiu o arranque de algumas amizades duradouras de Josemaria Escrivá. Esta faceta destaca-se na relação que manteve durante muitos anos com uma boa parte dos seus professores de Logronho e Saragoça. A abertura de coração de Josemaria facilitava a superação de possíveis obstáculos derivados da diferença de idade ou de horizontes vitais. A amizade consolidar-se-ia logicamente com os sacerdotes, especialmente depois da ordenação do próprio Josemaria. Basta talvez mencionar aqui alguns nomes, como os de Calixto Terés y Garrido, que o considerava o melhor aluno que tinha tido em Ética e Direito, e passadostempos, quando ia vê-lo a Madrid, anunciava-se na portaria como “Pe. Calixto, o cura de Logronho”; Ciriaco Garrido, cónego penitenciário da Colegiada, a quem se confessou muitas vezes, e foi um dos primeiros que “deram calor à minha incipiente vocação”,como reconheceria anos depois; João Moneva, catedrático de Direito Canónico em Saragoça, a quem dedicaria um extenso e sentido parágrafo no seu discurso no Paraninfo no dia 21 de outubro de 1960 ao ser recebido como doutor honoris causa no claustro da sua alma mater cesaraugustana; José Pou de Foxá, catedrático de Direito Romano, que o seu aluno considerava “amigo leal e nobre e bom”, que certamente foi, com o passar dos anos, conselheiro e apoio moral nas ocasiões particularmente difíceis nos primeiros anos do seu sacerdócio e do Opus Dei; por fim, Miguel Sancho Izquierdo, catedrático de Direito Natural, com quem compartilharia relações de veneração e afeto, que se poriam de manifesto em 1960 ao escolher ao “Prof. Miguel, o meu Mestre” como um dos dois primeiros doutores honoris causa da incipiente Universidade de Navarra.

Em Apuntes... mencionam-se sinteticamente os primeiros passos para começar o trabalho do Opus Dei em Bilbau, quando flutuavam no ambiente as consequências de sérios ataques pessoais contra o Fundador. Muitas portas se cerraram. Em vez disso, a Viúva de Ibarra, Carito Mac Mahon, abriu-lhe todas as portas da sua casa, com plena confiança. Mons. Escrivá de Balaguer não o esqueceu nunca: qualquer ocasião era boa para ter algum detalhe especial com essa família amiga. A Marquesa de Mac Mahon deixou um registo expresso da sua profunda gratidão: “sempre recordava com agradecimento excessivo o pouco que eu e os meus fizemos por ele naquelas épocas em que não era conhecido, nem sequer a Obra”.

Os exemplos podiam multiplicar-se. A sua gratidão não era só cortesia: palavra que se diz e logo se esquece. A amizade do Fundador do Opus Dei sempre transbordou de humanidade, de pormenores cordiais capazes de superar a distância ou a ausência prolongada, como a facilidade com que enviava carinhosas felicitações com motivo do dia de santos ou aniversários pessoais. Aderia –com capacidade de aplauso‑ aos bons acontecimentos, sem cair em vaidosas adulações. E mantinha no tempo, com abundantes detalhes de afeto e de serviço, incluída a oferta da sua oração e da sua fé [57].

Um amigo indulgente

Onde há amizade espera-se compreensão com os defeitos e debilidades. O amigo é compreensivo, não picuinhas. Passa por alto as pequenas coisas, as fricções inevitáveis na convivência humana. Costuma dizer-se com razão que se gosta do amigo e se quer o bem do amigo, não porque ele seja já bom, ou seja bom em tudo: o próprio Jesus deu exemplo, sendo amigo de publicanos e fariseus [58].

Por maioria de razão, não exige identidade de temperamentos, opiniões, ideologias: “A verdadeira amizade implica também um esforço cordial por compreender as convicções dos nossos amigos, mesmo que não cheguemos a partilhá-las nem a aceitá-las” [59]. Pelo contrário, o amigo tende a ficar no lugar do outro e passa por alto os defeitos: “Se não amas senão as boas qualidades que vejas nos outros ‑ se não sabes compreender, desculpar, perdoar ‑, és um egoísta.” [60].

O amigo perdoa com facilidade, é rápido para reconciliar-se, sabedor também de que o perdão é talvez o mais divino que pode sair de um coração humano. Esse gesto aproxima a ação do Espírito Santo que, com o sacramento da penitência, devolve o pecador ao círculo da amizade com Deus [61].

Conclusão, “temos que conviver, temos que compreender, temos que desculpar, temos que ser fraternos; e, como aconselhava S. João da Cruz, temos que pôr amor, onde não há amor, para encontrar amor, sempre, mesmo nas circunstâncias aparentemente intranscendentes que o trabalho profissional e as relações familiares e sociais nos proporcionam” [62].

A partir desta atitude radical, surge espontânea a confiança nos outros. De facto, Josemaria Escrivá acreditava mais na palavra do amigo, ou das pessoas do Opus Dei, do que no “testemunho unânime de cem notários”, como afirmava com frase gráfica. Essa confiança leva – se não tinha brotado antes – a uma intimidade amigável, para além do mero conhecimento, do companheirismo, da relação de vizinhança, do convívio social.

Especial compreensão se requer para a abertura a pessoas que se isolam por causa do seu carácter ou da sua doença. É preciso acompanhá-las, porque necessitam seguramente o desaguadouro de alguém que os ouça, para descarregar as suas preocupações. Mons. Escrivá de Balaguer dedicou muitas horas da sua vida a atender os que sofriam esse tipo de inquietação. Nas suas palestras a sacerdotes, como evoca D.Javier Echevarría, insistia-lhes em que tivessem uma grande paciência com essas almas: “Se esse caso se apresenta, pensai que tendes diante um enfermo, atendei-o e servi-o, não lhe fecheis as portas nem os braços da vossa caridade sacerdotal. Pode ser que vos repitam uma e outra vez as mesmas coisas. Se não os atendêsseis, ficariam feridos, e inclusivamente afastar-se-iam da prática religiosa. Por isso, enquanto escutais aquela mesma conversa com o mesmo tom, com os mesmos temas, com as mesmas manias, com problemas que não têm solução porque são fruto de uma imaginação enfermiça, não os mandeis embora aosm berros; atendei-os, e enquanto dure essa longa conversa, procurai pedir a Deus pelo interessado, procurai rezar orações, porque essas pessoas conformam-se com que haja alguém que as escute, sem dar-lhes nenhuma resposta”[63].

Como recorda também o atual Prelado do Opus Dei [refere-se a D. Javier Echevarría], “animado pela justiça, reconciliou muitas pessoas, que tinham rompido a amizade, ou mostravam-se mútua antipatia. Com sentido sobrenatural e paciência humana, fazia-os raciocinar separadamente. Se vinham queixar-se do que consideravam adversário, perguntava-lhes: ‘escutaste-o?; tiveste em conta a sua situação pessoal?; falaste-lhecom clareza, e sem o ofender?”. Além disso, não deixava de avisar com simplicidade: ‘chamo-te a atenção com completa sinceridade que também ouvirei a outra parte, tanto para ajudá-lo –com o mesmo afã que o faço contigo ‑, como para ponderar o que me estás tu a dizer agora’” [64].

Um amigo forte

Não basta compreender. A amizade sincera leva também a corrigir [65]. Denota o sinal máximo de retidão de intenção, de purificação de afetos, diante da brandura da bondadosidade [66]. Nada de palavras lisonjeiras e fingidas [67]: os amigos merecem o exercício da justiça e da veracidade, embora correndo o risco de esfriar apreços humanos. Se não, a amizade pode acabar num caminho de perdição, como destacam algumas passagens da Escritura [68]. D. Javier Echevarría resumiu um sucesso significativo: “Nos primeiros anos do seu sacerdócio, perdeu um dos seus maiores amigos. Um companheiro do Seminário abandonou a sua vocação e fez uma tentativa de casamento civil apesar das súplicas com que lhe rogou para não dar esse passo. Passado tempo, para regularizar a sua situação canónica, pediu-lhe que declarasse que tinha chegado à ordenação com falta de liberdade, pressionado por coações familiares. O Fundador do Opus Dei, com clareza e caridade, negou-se rotundamente; e explicou-lhe que não podia dar esse testemunho, pois conhecia a liberdade com que tinha acedido às ordens sagradas. A família daquele homem esteve-lhe sempre muito agradecida, apesar de que o interessado nunca mais lhe falou. Nunca quis a verdade a meias, por entender que ‑em muitas ocasiões‑ uma verdade a meias pode ser uma grande mentira” [69].

Sem chegar a extremos tão duros, parece claro que, desde a inicial simpatia mútua, os amigos superam aspetos sensíveis mais ou menos frívolos ou superficiais que limitariam talvez a sua relação a compadrio de amigalhaços, cúmplices das misérias alheias [70]. E nem falemos se chegam ao limite das amizades perigosas, que poderiam acorrentar a alma: “Fraqueja o teu coração e buscas um arrimo na terra. –Está bem. Mas procura que o apoio de que te serves para não cair, se não converta em peso morto que te arraste, em cadeia que te escravize” [71].

Uma amizade humana e espiritualmente nobre exige acrisolar e purificar os afetos, que não é desencarnar, prescindir do carinho real que brota de um coração limpo: “Pondo amor de Deus na amizade, este afeto depura-se, engrandece-se, espiritualiza-se; porque se queimam as escórias, os pontos de vista egoístas, as considerações excessivamente carnais” [72].

Exclui, portanto, o que na literatura espiritual clássica se conhece como amizade particular, tão ligada à aceção de pessoas. Josemaria Escrivá explicava-o com grande clareza: “Vamos lá a ver, que injúria se te fez a ti porque este ou aquele tem mais confiança com determinadas pessoas, que conheceu antes ou por quem sente mais afinidades de simpatia, de profissão, de carácter? ‑No entanto, entre os teus, evita cuidadosamente até a aparência de uma amizade particular” [73]. De modo semelhante, animava a sentir e viver a fraternidade, “mas sem familiaridades” [74]. E tudo, sem respeitos humanos que podem esconder comodismo ou tibieza [75].

Por fim, a força da amizade culmina na correção do amigo. Evocarei outro exemplo, de D. Pedro Cantero, a quem conheci pessoalmente quando era Arcebispo de Saragoça. Sempre que o visitei, como Diretor do Colégio Maior Miraflores, falou-me do Padre, de que o tinha visto havia pouco tempo em Roma ou de que tinham trocado correspondência, ou estariam em breve juntos. Entre tantas recordações da sua amizade, destacava o forte acontecimento que referiu na sua homilia ao celebrar uma Missa por alma do Fundador do Opus Dei: uma séria reprimenda, recebida no dia 14 de agosto de 1931, que “mudou a perspetiva da minha vida e ministério pastoral” [76].

Amigos de Deus

Josemaria Escrivá sacudiu amavelmente a alma de Pedro Cantero, demasiado enfrascado na sua tese de doutoramento quando a Igreja atravessava em Espanha momentos críticos. É que a amizade do cristão aumenta com a fé, até transformar-se –sem desnaturalizá-la– em canal de apostolado.

O Fundador do Opus Dei viveu em pleno a virtude humana da amizade, procurando fazer dos seus amigos pessoas amigas de Deus. Não foi um trato postiço ou instrumental o dele, porque punha em tudo o sinal mais: a amizade humana cresce com a graça divina, e multiplicam-se os serviços prestados com alegria [77], sem fazê-lo notar e sem que os outros notem esse esforço alheio [78].

Nunca deixou os seus velhos amigos, segundo o conselho da Escritura [79]. No fundo, mais do que aproximá-los da sua pessoa, queria fazê-los amigos de Deus, através da oração pessoal e também através do trato íntimo com os que foram amigos de Deus na terra, segundo o que costumava ensinar: Se em certas ocasiões não vos sentis com forças para seguir as pisadas de Jesus Cristo, conversai, como entre amigos, com aqueles que O conheceram enquanto permaneceu nesta nossa terra. Em primeiro lugar, com Maria, que o trouxe para nós. Com os Apóstolos. Vários gentios aproximaram-se de Filipe, que era de Betsaida da Galileia, e fizeram-lhe este pedido, dizendo: desejamos ver Jesus. Foi Filipe e disse-o a André; André e Filipe disseram-no a Jesus. Não é verdade que isto nos anima? Aqueles estrangeiros não se atrevem a apresentar-se ao Mestre e procuram um bom intercessor.” [80].

Esse clima de amizade íntima manifesta-se na conexão entre a Eucaristia e Begónia que fazia o Fundador do Opus Dei: “É verdade que chamo sempre Betânia ao nosso Sacrário... –Faz-te amigo dos amigos do Mestre: Lázaro, Marta, Maria. ‑E depois já não me perguntarás por que chamo Betânia ao nosso Sacrário” [81]. O elemento místico acompanha naturalmente razões de amizade e convívio humano.“Reparaste com que afeto, com que confiança se relacionavam com Cristo os seus amigos? Com toda a naturalidade as irmãs de Lázaro lançaram-lhe em rosto a sua ausência: - Tínhamos-te avisado! Se Tu tivesses estado aqui!...‑Confia-lhe devagar: -Ensina-me a tratar-te com aquele amor de amizade de Marta, de Maria e de Lázaro; como te tratavam também os primeiros Doze, ainda que no princípio te seguissem talvez por motivos não muito sobrenaturais” [82].

Josemaria Escrivá encarecia também o convívio amigável com os anjos, bem persuadido de que cada pessoa tem um intercessor próprio, que elimina qualquer sensação de solidão. “Todos necessitamos de muita companhia: companhia do Céu e da terra. Sejamos devotos dos Santos Anjos! A amizade é muito humana, mas também é muito divina; tal como a nossa vida, que é divina e humana.” [83].

Deus não é um ser longínquo, que contempla indiferente a sorte das suas criaturas. Muito ao contrário, sai ao encontro das almas, fala com elas como amigo [84], e sabe esperar cada uma com solicitude de Pai, de irmão, de Amigo [85]. Assim falou Deus a Moisés, cara a cara, como um homem costuma falar ao seu amigo, em clássica expressão de Ex 33, 11. O Fundador do Opus Dei alentava vivamente a essa amizade com Deus em Caminho, 88: “Procuras a companhia de amigos que, com a sua conversa e o seu afeto, com o seu convívio, te tornam mais tolerável o desterro deste mundo..., embora os amigos às vezes atraiçoem. - Não me parece mal. Mas... como é possível que não frequentes cada dia com maior intensidade a companhia, a conversa com o Grande Amigo, que nunca atraiçoa?” [86].

E de novo o apostolado: quando se saboreia a amizade com Cristo, impõe-se fazê-la chegar aos outros, porque o bem é difusivo. Em 1954, Mons. Escrivá advertia aos seus filhos, segundo anota o atual Prelado do Opus Dei: “convencei-vos de esta realidade: na Obra a santidade não é compatível com o isolamento: um homem do Opus Dei, que sente a sua vocação cristã, necessita de buscar amigos, necessita pegar esta loucura divina do amor de Deus,

através do seu trabalho, nas suas conversas com os seus colegas, com os seus companheiros, com os seus parentes” [87].

A vida profissional, as relações humanas são caminho privilegiado para mostrar a vida de Cristo e as suas manifestações de amizade, de carinho, de compreensão e de paz: “Assim como Cristo passou fazendo o bem (At X, 38), por todos os caminhos da Palestina, assim vós ireis por todos os caminhos humanos - da família, da sociedade civil, das relações profissionais de cada dia – semeando paz”[88].

Terminarei com uma citação, certamente extensa, mas emblemática: “O nosso apostolado tem de basear-se na compreensão. Insisto novamente: a caridade, mais do que em dar, está em compreender. Não vos escondo como aprendi, na minha própria carne, o que custa não ser compreendido. Esforcei-me sempre por fazer-me compreender, mas há quem se empenhe em não me entender: eis outra razão, prática e viva, para que eu deseje compreender a todos. Mas não é um impulso circunstancial que há de obrigar-nos a ter esse coração amplo, universal, católico. O espírito de compreensão é expressão da caridade cristã do bom filho de Deus: porque o Senhor quer que estejamos presentes em todos os caminhos retos da terra, para estender a semente da fraternidade - não do joio -, da desculpa, do perdão, da caridade, da paz. Nunca vos sintais inimigos de ninguém.
O cristão há de mostrar-se sempre disposto a conviver com todos, a dar a todos - pela maneira de lidar com os outros - a possibilidade de se aproximarem de Cristo Jesus. Há de sacrificar-se gostosamente por todos, sem distinções, sem dividir as almas em departamentos estanques, sem lhes pôr etiquetas como se fossem mercadorias ou insetos dissecados. O cristão não pode separar-se dos outros, porque a sua vida seria miserável e egoísta: deve fazer-se tudo para todos, para salvar a todos (1 Cor IX, 22)”[89].


[1] Devo reconhecer que escrevi este artigo por amizade.Quando o diretor de Scripta Theologica mo propôs, sugeri-lhe outro tipo de autor. Francisco L. Mateo Seco respondeu-me que tentasse contar como se poderia descobrir a grandeza da mente e do coração do Fundador do Opus Dei através da variedade e intensidade das suas amizades, das suas relações humanas. Faz o que puderes –viria a concluir‑ e envia-me o teu trabalho nos finais de janeiro. Devo tantos favores ao diretor da revista, que não podia dizer-lhe que não. Espero que sirva para que, dentro das reflexões em curso sobre a grandeza da vida normal, algum teólogo penetre com profundidade no sentido da amizade na antropologia cristã à luz da vida e dos ensinamentos do Beato [São] Josemaria Escrivá. Pode ser interessante também, tendo em conta o resultado da minha imersão superficial no índice do Catecismo da Igreja Católica: menciona incidentalmente a amizade humana como um bem temporal que pode ser merecido (2010) –um grande bem no que se expressa a castidade (2347)‑, mas noutra dezena de lugares emprega o termo só no plano espiritual da amizade com Deus, sinónimo de graça, intimidade com o Senhor, convívio com Ele, manifestação do seu apreço pela criatura humana desde o momento da sua criação.

[2]Forja, 802.

[3] O livro original é Un hombre de Dios. Testimonios sobre el Fundador del Opus Dei, Madrid, Ediciones Palabra, 1994, 447 páginas. Citá-lo-ei como Testemunhos... Penso que é desnecessário indicar, porque são conhecidas, as referências bibliográficas dos livros de ou sobre Josemaria Escrivá que menciono neste artigo. Assinalarei só o título completo dos que cito abreviadamente no corpo do trabalho:

Amigos...: Amigos de Deus.

Apuntes...: S. BERNAL, Mons. Josemaria Escrivá de Balaguer. Apontamentos sobre a vida do Fundador do Opus Dei (citamos em espanhol, por estar esgotada a versão portuguesa dessa altura).

Entrevistas...: Entrevistas a S. Josemaria.

Entrevista...: A. DEL PORTILLO, Entrevista sobre o Fundador do Opus Dei.

Cristo...: Cristo que passa.

Lembrando...: J. ECHEVARRÍA, Lembrando o Beato Josemaria Escrivá.

Recuerdo...: S. BERNAL, Recordando Álvaro del Portillo.

VÁZQUEZ DE PRADA...: A. VÁZQUEZ DE PRADA, O Fundador do Opus Dei, Volume I

[4] Cf. CEC 1939.

[5]Via Sacra, 8, 5.

[6] Cf. Amigos..., 233.

[7] Cf. Forja, 880.

[8]Lembrando..., 122.

[9]Amigos..., 121.

[10] Cf. Jo 11, 35.

[11]Lembrando, 106.

[12]Amigos..., 225.

[13]Cristo..., 93.

[14]VÁZQUEZ DE PRADA, 35. Com o passar dos anos, o Fundador do Opus Dei situou no centro da sua pedagogia familiar o conselho aos pais de que procurassem fazer-se amigos dos seus filhos: “Pode-se harmonizar perfeitamente a autoridade paterna, que a própria educação requer, com um sentimento de amizade que exige pôr-se de alguma maneira ao mesmo nível dos filhos. Os jovens - mesmo os que parecem mais indóceis e desprendidos - desejam sempre essa aproximação com os pais. O segredo costuma estar na confiança. Que os pais saibam educar num clima de familiaridade, que nunca deem a impressão de que desconfiam, que deem liberdade e que ensinem a administrá-la com responsabilidade pessoal. É preferível que se deixem enganar alguma vez. A confiança que se põe nos filhos faz com que eles próprios se envergonhem de terem abusado, e se corrijam. Pelo contrário, se não têm liberdade, se vêm que não se confia neles, sentir-se-ão levados a enganar sempre.” (Entrevistas..., 100).

A mesma ideia, com outras palavras, em Cristo..., 27: “Os pais são os principais educadores dos seus filhos, tanto no aspeto humano como no sobrenatural, e hão de sentir a responsabilidade dessa missão, que exige deles compreensão, prudência, saber ensinar e, sobretudo, saber amar; e devem preocupar-se por dar bom exemplo. A imposição autoritária e violenta não é caminho acertado para a educação. O ideal para os pais é chegarem a ser amigos dos filhos; amigos a quem se confiam as inquietações, a quem se consulta sobre os problemas, de quem se espera uma ajuda eficaz e amável.

“É necessário que os pais arranjem tempo para estar com os filhos e falar com eles. Os filhos são o que há de mais importante; mais importante do que os negócios, do que o trabalho, do que o descanso. Nessas conversas, convém escutá-los com atenção, esforçar-se por compreendê-los, saber reconhecer a parte de verdade - ou a verdade inteira - que possa haver em algumas das suas rebeldias. E, ao mesmo tempo, apoiar as suas aspirações, ensiná-los a ponderar as coisas e a raciocinar; não lhes impor uma conduta, mas mostrar-lhes os motivos, sobrenaturais e humanos, que a aconselham. Numa palavra, respeitar a sua liberdade, já que não há verdadeira educação sem responsabilidade pessoal, nem responsabilidade sem liberdade”.

[15]Forja, 565.

[16]Entrevistas..., 31.

[17]Lembrando..., 355-356.

[18] cf. Pr 14, 20.

[19]cf. Pr 19, 7.

[20]Lembrando…, 52.

[21]Lembrando..., 89-90.

[22] Cf. Entrevista..., 116.

[23]Cf. Sulco, 757.

[24]Cf. Si 37, 1.

[25]Sulco, 738.

[26]Entrevista..., 27-28.

[27]Cf. Sulco, 429.

[28]Amigos..., 183.

[29]Cf. Forja, 455.

[30] S. Tomás de Aquino, S. Th., II‑II, q. 103, a. 2‑3.

[31]Cristo..., 72.

[32]Lembrando..., 55-56.

[33]Cf. Sulco, 191.

[34]Cf. Jo 15, 13

[35]Cf. Jo 15, 15.

[36]Cf. Sulco, 191.

[37] Pr 12, 26.

[38]Amigos..., 138; Cf. Sulco, 750.

[39]Cf. Amigos..., 44; Caminho 440; etc.

[40]Cf. Pr 3, 28.

[41]Cf. Forja, 699.

[42]Entrevista..., 175.

[43] Forja, 943.

[44] Cf. Si 6, 14-15.

[45] Cf. Amigos..., 245.

[46]Cf. Pr 25, 9.

[47]Sulco, 731.

[48]Cf. Pr 27, 9.

[49]Cf. Pr 17, 17.

[50]Cf. Lc 24, 13ss.

[51]Cf. Si 22, 31.

[52]Forja, 957.

[53]Lembrando..., 123.

[54]Testemunhos..., 202.

[55]Sulco, 747.

[56]Sulco, 918.

[57] Cf. Forja, 36.

[58]Cf. Mt 11, 19.

[59]Sulco, 746.

[60]Forja, 954.

[61]Cf. CEC 1468.

[62]Amigos..., 9.

[63]Lembrando..., 122.

[64]Lembrando..., 139-140.

[65]Cf. Si 19, 13.

[66] Neologismo expressivo de Josemaria Escrivá de Balaguer, não incorporado na edição de 2001 do Dicionário da Real Academia Espanhola.

[67]Cf. Pr 29, 5.

[68]Cf., p. ex., Jb 6, 27; 2M 6, 21.

[69]Lembrando..., 136.

[70]Cf. Sulco, 761.

[71]Caminho, 159; Cf. também Caminho, 160.

[72]Sulco, 828.

[73]Caminho, 366.

[74]Caminho, 948.

[75]Cf. Sulco, 204.

[76] Foi relatado cuidadosamente em Testemunhos..., 65-67.

[77]Cf. Cristo..., 51, 182.

[78]Cf. Sulco, 737.

[79]Cf. Si 9, 14.

[80]Amigos..., 252.

[81]Caminho, 322.

[82]Forja, 495.

[83]Amigos..., 315; Cf. também Caminho, 562.

[84]Cf. CEC, 142.

[85]Cf. Amigos..., 120.

[86]Cf. também Caminho, 422.

[87]Lembrando..., 65-66.

[88]Cristo..., 166.

[89]Cristo..., 124.

* NT: em espanhol, a palavra padre usa-se normalmente para pai. Era nesse sentido de pai de família que os primeiros rapazes em contacto com o Opus Dei lhe chamavam Padre, visto que os sacerdotes seculares são normalmente tratados por don…, seguido do nome próprio e apelido.