Canonização de São Josemaria Escrivá

D. Alberto Cosme do Amaral (n. 1916) é bispo emérito de Leiria-Fátima. Num artigo publicado em O Independente (4.10.2002) afirma: «Eu era para ele além de um filho espiritual, o "bispo da Virgem" como dizia de tal maneira que não sou capaz de distinguir o seu afecto por mim do seu amor a Nossa Senhora, à Santa Igreja e ao Romano Pontífice, por quem tanto rezou na Cova da Iria.»

A Irmã Lúcia e o Papa João Paulo II

O grande acontecimento suscita em mim os mais profundos sentimentos de júbilo e gratidão. Júbilo porque Deus é glorificado nos Seus santos e provoca uma maior difusão da sua mensagem na Igreja e no mundo. Gratidão para com Deus que o enriqueceu de tantos dons; gratidão para com o próprio São Josemaria pelo que significa para mim a sua paternal amizade.

Efectivamente, a canonização é o louvor da Igreja pelas excelsas graças que Deus lhe concede através dos santos nos quais Ele fez brilhar, com particular fulgor, o Seu infinito Amor por todos nós, estimulando-nos a seguir, com fé e audácia, o caminho dos santos. Em muitos casos como este, não é só o louvor pela sedutora exemplaridade de uma vida cristã apaixonante; é também um acto de agradecimento colectivo pela especial mensagem que Deus lhe confiou para bem da Igreja e do mundo.

De facto, essa mensagem, que constituiu mais tarde o núcleo da mensagem conciliar – chamamento universal à santidade e ao apostolado que fez dele precursor do Concílio – destina-se a despertar em todo o Povo de Deus a consciência da radicalidade evangélica, da totalidade para Deus (Cfr. Mc 12, 30-31). Não se pode duvidar da sua oportunidade e urgência ao contemplar a miséria doutrinal e moral de tantos baptizados que pensam e vivem como se o Senhor estivesse lá longe onde brilham as estrelas, e não consideram que também está sempre ao nosso lado como Pai amoroso (Cfr. Caminho n. 267).

A canonização do Fundador do Opus Dei repercutir-se-á salutarmente em milhões de almas como um novo e poderoso alerta para esta "guerra de paz" ― costumava dizer ― que consiste na luta interior, na nossa própria e contínua conversão, único meio eficaz de transmitir o Evangelho. Que ela sirva para que todos recordem os objectivos principais da Igreja para o Terceiro Milénio, como João Paulo II nos aponta na Carta Apostólica: a contemplação do rosto de Cristo, o empenho na santidade pessoal, a oração, a Eucaristia, a Reconciliação, o primado da graça, a escuta e anúncio da Palavra (Cfr. NMI, cap. II e III).

Não posso pensar na canonização de São Josemaria Escrivá sem sentir por ele uma gratidão imensa como Bispo, como sacerdote, como fiel cristão, como amigo e como seu filho espiritual. Não saberei distinguir esses aspectos da minha gratidão, porque os reconheço na minha alma como um todo indivisível; à medida que passavam os anos e aumentavam as minhas responsabilidades eclesiais, mais provas de afecto, de cuidado, de confiança e de paternidade fui dele recebendo. Creio, por isso, dar prioridade à minha condição de Bispo de Leiria-Fátima (actualmente emérito). Se a ele tudo me unia, desde a simpatia humana às preocupações pastorais, estas – e o nome de Fátima – aproximaram-nos num "crescendo" de intimidade que considero uma das maiores bençãos da minha vida.

No período conciliar os nossos encontros significaram para mim – como para centenas de bispos que o visitavam – uma luz e um apoio extraordinários, apesar de não interferir directamente nos nossos trabalhos. A "naturalidade sobrenatural" com que tratava de tudo elevava-nos a uma tal "altura panorâmica" nas questões em debate que as confusas se tornavam límpidas e as mais árduas fáceis.

Mas, a partir da minha nomeação para Leiria, a sua paixão por Maria e pela Igreja fez de mim um privilegiado das suas atenções. Eu era para ele além de um filho espiritual, o "bispo da Virgem" como dizia de tal maneira que não sou capaz de distinguir o seu afecto por mim do seu amor a Nossa Senhora, à Santa Igreja e ao Romano Pontífice, por quem tanto rezou na Cova da Iria. Dele recebi muitas cartas repassadas de tanta devoção e confiança na "Mãe de Fátima" que, além do seu valor documental no processo de canonização, constituirão mais tarde um tesouro para a Igreja e, naturalmente, para a própria história do nosso amadíssimo Santuário.

Outro benefício da canonização: a crescente divulgação desse tesouro de doutrina que derramou às mãos cheias por toda a parte, por escrito, através da pregação, por conversas informais, com pequenos grupos ou multidões de milhares de pessoas.

Sucedem-se conferências, congressos, simpósios; encontramo-nos perante uma fonte inesgotável de sabedoria cristã que há-de beneficiar beneficamente o existir quotidiano do Povo de Deus.

Desejava ardentemente, como todos os santos, desaparecer na sua pessoa e dar lugar a Cristo nas almas. Quer o Céu, porém, que ele apareça, agora mais do que nunca, precisamente para que continue a ser o "instrumento fidelíssimo de Deus na transmissão da perene novidade evangélica da santificação através do trabalho profissional e do cumprimento dos deveres de cada dia à imitação da família de Nazaré".

O Reino de Deus está dentro de nós. Mas a todos incumbe o grato dever de o implantar fora de nós até ao último recanto da terra, como o Fundador do Opus Dei nos ensinou ao proferir aquela impressionante homilia no Campus da Universidade de Navarra em 8 de Outubro de 1967, subordinada ao tema Amar o Mundo Apaixonadamente.

A doutrina é tão antiga como a Encarnação do Verbo e foi pregada pelos primeiros Padres da Igreja; simplesmente durante séculos não se falou dela. Deste modo chegou-se a cavar um fosso profundo entre a vida espiritual e o afã de cada dia, entre o templo e a rua, entre acção e contemplação. Em tal contexto a igreja seria o espaço e o tempo em que a alma podia entrar na intimidade divina e saborear momentos do Céu; fora, o mundo seguia o seu ritmo.

A breve trecho, o cristão tinha que renunciar a ser construtor da história.

O Fundador do Opus Dei preconizava a unidade de vida como meio de ultrapassar salutarmente todos esses antagonismos. É ela que permite ao crente descobrir esse "algo divino" que se encerra na actividade mais irrelevante e vulgar, escondida aos olhos dos homens, mas bem patente ao olhar de Deus.

Podemos então "falar de um materialismo cristão, que se opõe audazmente aos materialismos cerrados ao espírito". Trata-se de restituir ao universo criado a santidade e justiça originais.

Vamos então endireitar a conduta familiar, profissional, social; rectificar intenções, oferecer a Deus todos os nossos afazeres, cuidados e alegrias; ver Cristo em todos os homens, especialmente nos mais necessitados; fazer da vida um cântico novo de louvor à Trindade e de serviço aos homens nossos irmãos.

Acreditemos na misericórdia e no poder de Deus nosso Pai e enchamo-nos de alegre e firme esperança. Restaurar tudo em Cristo foi a única paixão que deu sentido à vida e à morte do Fundador do Opus Dei. Que lá do Céu a todos acompanhe e abençoe!

+ Alberto Cosme do Amaral

Bispo Emérito de Leiria-Fátima

O Independente, 4 de Outubro de 2002