Vida de Maria (VII): O nascimento de Jesus – Magistério, Padres, santos, poetas

Selecção de textos de literatura religiosa que comentam a cena do nascimento de Cristo em Belém.

A VOZ DO MAGISTÉRIO

«Ficando, pois, a salvo a propriedade de uma e de outra natureza e unindo-se ambas numa só pessoa, a humildade foi recebida pela majestade, a fraqueza pela força, a mortalidade pela eternidade e para pagar a dívida da nossa raça, a natureza inviolável uniu-se à natureza passível. E assim — coisa que convinha para nosso remédio — um só mediador entre Deus e os homens, que é Jesus Cristo homem [1 Tm 2, 5], por um lado, pôde morrer e por outro não. Na natureza, pois, íntegra e perfeita de verdadeiro homem, nasceu Deus verdadeiro, inteiro no Seu, inteiro no nosso.

«O Filho de Deus entra, pois, nestas fraquezas do mundo, descendo do Seu trono celeste, mas não se afastando da glória do Pai, gerado por nova ordem, por novo nascimento. Por nova ordem, porque invisível no Seu, tornou-se visível no nosso; incompreensível, quis ser compreendido; permanecendo antes do tempo, começou a ser no tempo; Senhor do universo, tomou forma de servo, obscurecida a imensidade da Sua majestade; Deus impassível, não se envergonhou de ser homem passível e imortal, de Se submeter à lei da morte. E, por novo nascimento, gerado: porque a virgindade inviolada ignorou a concupiscência e forneceu a matéria da carne. A natureza foi tomada da mãe do Senhor, não a culpa; e no Senhor Jesus Cristo gerado do seio da Virgem, não por ser o nascimento maravilhoso, é a natureza distinta de nós. Porque o que é verdadeiro Deus é também verdadeiro homem e não há nesta unidade mentira alguma, ao dar-se juntamente a humildade do homem e a alteza da divindade. Pois da forma que Deus não se muda pela misericórdia, assim tão pouco o homem se aniquila pela dignidade. Uma forma e outra, com efeito, opera o que lhe é próprio, com comunhão da outra; quer dizer, que o Verbo opera o que pertence ao Verbo, a carne cumpre o que respeita à carne. Um deles resplandece pelos milagres, o outro sucumbe pelas injúrias. E assim o Verbo não se separa da igualdade da glória paterna; também, tão pouco, a carne abandona a natureza do nosso género».

São Leão Magno (século V). Carta 28 dogmática Lectis dilectionis tuae, a Flaviano, patriarca de Constantinopla (13-VI-449), lida no Concílio ecuménico de Calcedónia (ano 451).

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«Seguindo, pois, os Santos Padres, todos a uma voz ensinamos que há-de confessar-se  um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, o mesmo perfeito na divindade e o mesmo perfeito na humanidade, verdadeiramente Deus e o mesmo verdadeiramente homem de alma racional e de corpo, consubstancial com o Pai enquanto à divindade e o mesmo consubstancial connosco enquanto à humanidade,  semelhante em tudo a nós, excepto no pecado [ Hb 4, 15]; gerado do Pai antes dos séculos enquanto à divindade e o mesmo, nos últimos dias, por nós e para nossa salvação, gerado de Maria Virgem, mãe de Deus, enquanto à humanidade; que se há-de reconhecer um só e mesmo Cristo Filho Senhor unigénito em duas naturezas, sem confusão, sem alteração, sem divisão, sem separação; de modo algum apagada a diferença de naturezas por causa da união, mas conservando, antes, cada natureza a sua propriedade e concorrendo numa só pessoa e numa só hipóstasis, não quebrado ou dividido em duas pessoas, mas um só e mesmo Filho unigénito, Deus Verbo Senhor Jesus Cristo, como dos primórdios acerca d’Ele nos ensinaram os profetas e o próprio Jesus Cristo e no-lo transmitiu o Símbolo dos Padres».

Concílio Ecuménico de Calcedónia, sessão 5 (22-X-451). Definição das duas naturezas de Cristo (Denz 301-302).

* * * A VOZ DOS PADRES «Um grande sol se recolheu e escondeu numa nuvem esplêndida. Uma adolescente foi Mãe d’Aquele que criou o homem e o mundo. Ela levava um menino, acariciava-O, abraçava-O, mimava-O com as mais formosas palavras e adorava-O dizendo-Lhe: A minha mente está perturbada pelo temor, concede-me a força para Te louvar. Não sei explicar como estás calado, quando sei que em ti retumbam os tronos. Nasceste de mim como um pequeno, mas és forte como um gigante; és o Admirável , como te chamou Isaías quando profetizou sobre ti (cfr. Is 9, 5).

Eis aqui que todo Tu estás comigo e, no entanto, estás inteiramente escondido em teu Pai. As alturas do céu estão cheias da Tua majestade e, não obstante, o meu seio não foi demasiado pequeno para ti. A Tua Casa está em mim e nos Céus. Louvar-Te-ei com os Céus. As criaturas celestes olham-me com admiração e chamam-me Bendita.

Que me ampare o céu com o seu abraço, porque fui mais honrada do que ele. O céu, com efeito, não foi a Tua mãe; mas tornaste-o o Teu trono. Quanto mais venerada é a Mãe do Rei do que o Seu trono! Abençoar-Te-ei, Senhor, porque quiseste que fosse a Tua Mãe; celebrar-Te-ei com formosas canções.

Oh! Gigante que susténs a terra e que quiseste que ela Te sustenha. Bendito sejas. Glória a Ti, oh! Rico, que te fizeste Filho de uma pobre».

São Efrén da Síria (século IV). Hino 18

* * * «O que significa que, quando o Senhor nascer se faça o censo do mundo, senão que aparecia na carne Aquele que havia de realizar o censo dos Seus eleitos para a eternidade? Em vez disso, dos réprobos se afirma pelo profeta: sejam riscados do livro dos vivos e não se inscrevam os seus nomes entre os justos ( Sal 68/69, 29).

Também era conveniente que nascesse em Belém, porque Belém significa "casa do pão"; e precisamente é Ele próprio quem diz: Eu sou o pão vivo que desceu do Céu ( Jo 6, 51). Portanto, o lugar onde nasce o Senhor já antes tinha sido chamado casa do pão, porque, efectivamente, havia de verificar-se que quem saciaria interiormente as almas apareceria ali na substância da carne.

E não nasce na casa dos Seus pais, mas no caminho, para mostrar que na realidade nascia como que emprestado na Sua humanidade que tinha tomado. De emprestado, digo, ou no alheio, não me referindo à Sua potestade, mas à natureza; porque da Sua potestade está escrito: veio para o que era Seu (Jo 1, 11); e pelo que se refere à Sua natureza, na Sua nasceu antes dos tempos, na nossa veio no tempo. Portanto, o que, permanecendo eterno, se mostrou no tempo, é alheio a onde desceu.

E como pelo profeta se diz: toda a criatura é como a erva ( Is 40, 6), ao fazer-Se homem converteu a nossa erva em grão, o que diz de Si mesmo: se o grão de trigo, depois de lançado à terra, não morre, fica infecundo ( Jo 12, 24). Por isso, ao nascer é deitado numa manjedoura, para alimentar com o trigo da Sua carne todos os fiéis, ou seja, os santos animais, de modo que não permaneçam em jejum do sustento da sabedoria eterna».

São Gregório Magno (século VI). Homilia 8 sobre os Evangelhos.

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A VOZ DOS SANTOS E AUTORES ESPIRITUAIS

«Saí, pois, filhas de Sião, diz a Esposa no Cantar dos Cantares, e olhai para o Rei Salomão com a coroa com que o coroou a Sua Mãe no dia dos seus esponsais e no dia da alegria do seu coração.

Almas piedosas e que amam Cristo, largai agora todos os cuidados e negócios do mundo e, recolhidos todos os vossos pensamentos e sentidos, ponde-vos a contemplar o verdadeiro Salomão, pacificador de céus e terra, não com a coroa com que O coroou o Seu Pai quando o gerou eternamente e lhe comunicou a glória da Sua divindade, mas com a que O coroou Sua Mãe quando o teve temporalmente e o vestiu da nossa humanidade.

Vinde ver o Filho de Deus, não no seio do Pai, mas nos braços da Mãe; não entre os coros dos anjos, mas entre uns vis animais; não sentado à destra da Majestade nas alturas, mas reclinado numa manjedoura de animais; não trovejando nem relampejando no céu, mas chorando e tremendo de frio num estábulo.

Vinde celebrar este dia dos seus esponsais, donde já sai do tálamo virginal desposado com a natureza humana com tão estreito vínculo de matrimónio, que nem na vida nem na morte se há-de desatar.

Este é o dia da alegria secreta do Seu coração, quando chorando exteriormente como menino, se alegrava interiormente pelo nosso remédio como verdadeiro Redentor».

Frei Luis de Granada (século XVI), Vida de Jesus Cristo, cap. 4.

* * * «Contemplo agora Jesus, deitado numa manjedoura ( Lc 2, 12), num lugar que só é próprio para os animais. Onde está, Senhor, a Tua realeza: o diadema, a espada, o ceptro? Pertencem-Lhe e não os quer; reina envolto em panos. É um Rei inerme, que se nos apresenta indefeso: é uma criança. Como não havemos de recordar aquelas palavras do Apóstolo: aniquilou-se a Si mesmo, tomando a forma de servo ( Flp 2, 7)?

Nosso Senhor encarnou, para nos manifestar a vontade do Pai. E começa a instruir-nos, estando ainda no berço. Jesus Cristo procura-nos — com uma vocação, que é vocação para a santidade — para consumarmos com Ele a Redenção. Considerai o seu primeiro ensinamento: temos de corredimir à custa de triunfar, não sobre o próximo, mas sobre nós mesmos. Como Cristo, precisamos de aniquilar-nos, de sentir-nos servidores dos outros para os conduzir a Deus.

Onde está o nosso Rei? Não será que Jesus deseja reinar, antes de mais, no coração, no teu coração? Por isso se fez Menino, porque quem não ama uma criança? Onde está o Rei? Onde está o Cristo, que o Espírito Santo procura formar na nossa alma? Não pode estar na soberba, que nos separa de Deus, nem na falta de caridade que nos isola dos homens. Aí não está Cristo, aí o homem fica só.

Aos pés de Jesus Menino, diante de um Rei que não ostenta sinais exteriores de realeza, podeis dizer-lhe: Senhor, expulsa a soberba da minha vida, subjuga o meu amor próprio, esta minha vontade de afirmação pessoal e de imposição da minha vontade aos outros. Faz com que o fundamento da minha personalidade seja a identificação contigo».

São Josemaría Escrivá de Balaguer (século XX). Cristo que passa, n. 31.

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A VOZ DOS POETAS

À Encarnação do Verbo Eterno

soneto CXXXVII, in OBRAS DE LUÍS de CAMÕES, Lello & Irmão Ed., Porto, 1970, p. 72 Desce do céu imenso Deus

para encarnar na Virgem soberana.

Porque desce o divino a cousa humana?

Para subir o humano a ser divino.

Pois como vem tão pobre e tão menino,

Rendendo-se ao poder de mão tirana?

Porque vem receber morte inumana

Pera pagar de Adão o desatino.

É possível que os dois o fruito comem

Que de quem lhes deu tanto foi vedado?

Sim, porque o próprio ser de deuses tomem.

E por esta razão foi humanado?

Sim, porque foi com causa decretado,

Se quis o homem ser Deus, que Deus fosse homem.

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Soneto - Diogo Bernardes

A Natividade de Nossa Senhora

Nao seja hoje o sol de luz avaro,

mostre mor resplandor, mor fermosura,

pois nasceu hoje aquela Virgem pura

da qual outro nasceu mais puro e claro.

Com gosto espiritual, com prazer raro

celebre toda humana criatura

o parto que deu luz à noute escura,

rainha deu ao céu, a terra emparo.

Felice parto que o inferno espanta,

enche o céu de beleza e maravilha,

restaura-nos a graça que perdemos.

Com tal filha te alegra, o Ana santa;

com seu filho se alegre a santa filha,

e nós com todos três nos alegremos.