O Centro de Estudos Josemaria Escrivá elaborou um mapa interativo que permite "viajar" pelos lugares onde o fundador do Opus Dei passou os seus verões entre 1958 e 1973. Reúne fotografias, episódios e alguns pormenores históricos desses anos.
Pilar Urbano, no seu livro O homem de Villa Tevere, conta que, durante muitos anos, quando alguém insistia junto de Escrivá para que reduzisse a sua atividade, ele respondia: «Descansarei quando me disserem: requiescat in pace». No entanto, com a passagem do tempo, apercebeu-se de que estava enganado. Ele próprio o explica da seguinte forma: «O corpo e a cabeça não podem manter-se em constante tensão, porque acabam por explodir»[1].
No entanto, explica Pilar Urbano, só em 1958 é que conseguiu ter um período de descanso. A razão mais imediata era a falta de um lugar adequado fora de Roma. Já nessa altura havia, naturalmente, algumas casas de retiros e convívios no campo, «mas as suas filhas e os seus filhos utilizavam-nas, em turnos sucessivos e sem solução de continuidade, para eles e para os seus apostolados. De modo que não podia ir para lá»[2].
A partir de 1958, São Josemaria começou a passar os verões fora de Roma. Durante os meses de julho e agosto costumava ficar com Álvaro del Portillo e Javier Echevarría numa casa arrendada ou emprestada. Ocasionalmente, tinham a companhia ou recebiam a visita de alguns dos seus filhos. Nesses dias, longe do ferragosto romano, conjugava o descanso, o estudo e o impulso ao trabalho apostólico do Opus Dei.
Aceda ao mapa: Os verões de São Josemaria (1958-1973).
Viagens de São Josemaria nos verões de 1958 a 1973:
- 1958: Londres (Inglaterra).
- 1959 e 1960: Londres (Inglaterra) e Irlanda.
- 1961 e 1962: Londres (Inglaterra) e Espanha.
- 1963 e 1964: Reparacea e Elorrio (Espanha).
- 1965: Florença (Itália).
- 1966: Florença (Itália) e França.
- 1967: Abruzos (Itália).
- 1968: Olona (Itália) ; visita ao santuário de Nossa Senhora de Einsiedeln (Suíça).
- 1969: Intra (Itália).
- 1970: Intra (Itália).
- 1971: Comasco (Itália).
- 1972: Lecco (Itália).
- 1973: Lecco (Itália).
1. Londres (1958)

Em 1958, Josemaria Escrivá passou algumas semanas de julho e de agosto em Woodlands, numa vivenda arrendada na zona norte de Hampstead Heath, ao fundo da Courtenay Avenue, em Londres. Pilar Urbano comenta que «os donos são um casal bastante pitoresco: ele dedica-se à indústria do cinema e ela à quiromancia e ao espiritismo»[3].
Durante a sua estada, teve oportunidade de visitar diferentes locais da cidade de Londres e algumas cidades vizinhas: Whitehall, Oxford, St. Albans e, em duas ocasiões, Canterbury, onde foi rezar à igreja onde repousa a cabeça de São Tomás Moro.
Num dos seus passeios por Londres, viveu uma experiência interior que o perturbou. Um dia, caminhava pelas ruas da cidade e ficou impressionado com a pressa com que os transeuntes se deslocavam, com a arquitetura imponente das fachadas antigas e com o trânsito intenso. Vázquez de Prada conta que, enquanto atravessava o Canal, de Boulogne para Dover, «o Fundador avaliava estes factos na presença de Deus. Considerava quão insuficientes seriam o seu esforço e a sua intrepidez, investidos naquela encruzilhada do mundo. E deve ter sentido uma ponta de desalento, ao comparar as suas forças materiais com o poderio da City. Mas não se deixou abater. Confrontando-se interiormente com o Senhor, examinou os seus recursos, tirando a óbvia conclusão de que orientar tudo aquilo – tantas almas e tantos empreendimentos – para Cristo, exigia uma alavanca e um esforço sobre-humanos»[4].
Os dias seguintes foram de oração e trabalho. Vázquez de Prada, na biografia do Fundador, afirma que «deve ter sido nessa altura que o Senhor lhe respondeu claramente com uma locução, uma das muitas que teve, e que tão firmemente lhe ficaram gravadas na memória: “Tu, não; eu, sim!”. Tu certamente não és capaz; mas eu sou»[5].
Regressado a Roma, durante uma meditação, contou aos seus filhos essa experiência sobrenatural:
«Ao considerar esse panorama, senti-me desconcertado e incapaz, impotente: “Josemaria, aqui não podes fazer nada”. E tinha razão: sozinho não conseguiria nenhum resultado; sem Deus, não conseguiria sequer erguer uma palha do solo. Era tão patente a minha pobre ineficácia, que quase me senti triste; o que é mau. Um filho de Deus, entristecer-se? Pode estar cansado, porque puxa o carro como um burrinho fiel; mas triste, não. De repente, no meio de uma rua percorrida por pessoas de todos os cantos do mundo, senti dentro de mim, no fundo do coração, a eficácia do braço de Deus: tu não podes nada, mas Eu posso tudo; tu és a ineptidão, mas eu sou a Omnipotência. Eu estarei contigo e haverá eficácia! conduziremos as almas à felicidade, à unidade, ao caminho do Senhor, à salvação! Também aqui semearemos paz e alegria abundantes!»[6].
A sua vibração pelas almas
No dia 15 de agosto, renovou a consagração do Opus Dei ao Coração de Maria no santuário de Willesden e nos dias seguintes percorreu igrejas de Londres. Algumas eram «católicas (Spanish Place, St. Etheldreda, Westminster Cathedral) e outras anglicanas (Bryanston Street Annunciation, Westminster Abbey, Hannover Square). Queria encontrar em Londres uma igreja que pudesse ser confiada aos sacerdotes do Opus Dei»[7].
Aproveitou, ainda, os dias de descanso para estar com os seus filhos de Londres. Durante uma tertúlia em Netherhall House, falou-lhes da expansão do Opus Dei para Oxford, Cambridge, Manchester, «mostrando-lhes as possibilidades apostólicas, que se lhes ofereciam a partir de Inglaterra, que era uma encruzilhada do mundo por onde passava gente de todos os continentes e de todas as nações, países aos quais a Obra ainda não tinha chegado na sua expansão apostólica, mas onde estavam à sua espera». Esteve, também, com as suas filhas em The Cottage, interessando-se especialmente pelas condições em que viviam e pela precariedade das instalações. Mais tarde, enviou às mulheres da Obra um tríptico para o oratório, cópia de um quadro de Memling que representa a Virgem e o Menino Jesus rodeados de anjos. A oferta foi entregue por Michael Richards, o primeiro sacerdote inglês do Opus Dei.
Durante esses dias também fez algumas diligências e encontrou-se com bispos e académicos a quem falou do projeto de expansão da Obra em Inglaterra; recebeu também a visita de alguns membros do Opus Dei que viviam na Irlanda.
Da sua permanência em Londres conserva-se uma carta que Escrivá enviou aos membros da Obra em Espanha, onde contava as suas impressões da viagem:
«Só vos digo que penso que estarmos em Inglaterra é providencial e que aqui se pode realizar muito trabalho para a glória de Deus. Rezai, por intercessão de Nossa Mãe Santa Maria, como sempre, e veremos grandes trabalhos do nosso Opus Dei realizados nesta encruzilhada da terra, para o bem das almas de todo o mundo»[8].
2. 1959 e 1960: Londres (Inglaterra) e Irlanda

Nos verões de 1959 e 1960, Escrivá regressou a Londres e ficou hospedado na casa onde tinha ficado no ano anterior, em Woodlands, ao norte de Heath. Além de descansar uns dias, o fundador do Opus Dei queria dar continuidade ao projeto apostólico iniciado em Oxford, em 1958.
Em 1959, a casa e os terrenos de Grandpont já tinham sido adquiridos e deviam ser iniciadas algumas obras. Por este motivo, para além de Álvaro del Portillo e de Javier Echevarría, acompanharam-no nesta viagem alguns arquitetos de Roma, a quem deu instruções para o projeto de um colégio universitário em Oxford.
Vázquez de Prada conta que o fundador «tinha o desejo de criar um pináculo no cimo do edifício e, a rematá-lo, uma imagem de Nossa Senhora, que estaria iluminada. Nossa Senhora também estava representada no escudo de Grandpont, com o lema ipsa duce por cima de uma ponte com ondas azuis e brancas»[9].
Visita à Irlanda
Nesse verão, aproveitou a oportunidade para visitar a Irlanda e apoiar os seus filhos e filhas. Ficou hospedado durante cinco dias na Ely Residence, um centro do Opus Dei na Hume Street. Durante esses dias encorajou todos a estarem «muito alegres, muito alegres, porque o contrário não é bom». No dia 16 de agosto, depois de celebrar a Missa, disse aos seus filhos: «Dai graças a Deus, filhos, porque embora não sendo grande coisa, embora não sejas digno – eu também sou um homem insignificante – Deus escolheu-te para começar o trabalho na Irlanda e assim seres instrumentos das suas maravilhas»[10].
Nessa altura, visitou Nullamore, sede de um Curso Internacional de verão, onde se encontravam quarenta jovens de várias nacionalidades, com grande entusiasmo pela aprendizagem do inglês. Depois, Galway, uma cidade no oeste da Irlanda. Por fim, encontrou-se com o Arcebispo de Dublin.
Impulsos apostólicos
De regresso a Londres, acompanhou de perto o projeto de expansão do Opus Dei em Oxford, e «visitou alguns prelados: em Winchester, com o Arcebispo de Portsmouth, cuja diocese chegava até Grandpont; em Londres, com o Cardeal Godfrey e com Mons. Craven»[11].
No fim do verão de 1959, Escrivá promoveu a criação da Associação de Amigos dos Estudos Gerais de Navarra. Numa carta enviada ao reitor do Estudos Gerais de Navarra (atual Universidade de Navarra), explica as principais características da associação e os seus objetivos: o apoio à promoção e financiamento do centro. Este objetivo estava ligado à dimensão espiritual deste trabalho, pois pedia aos seus membros que rezassem todos os dias uma Ave Maria pelos Estudos Gerais[12].

Escrivá resumia esses dias do verão de 1959 em breves palavras: «Aqui descansamos, trabalhamos e rezamos. Rezamos muito»[13].
Voltou a Inglaterra pela terceira vez no verão de 1960. Fez tertúlias com os seus filhos, recebeu visitas da Irlanda, de França e de Espanha. Amadureceu o projeto de alargamento da obra corporativa de Netherhall House, porque queria uma nova residência, com mais lugares para estudantes da Commonwealth. O projeto concretizou-se mais tarde com a compra de um edifício contíguo, o que permitiu aumentar a sua capacidade[14].
3. 1961 e 1962 Londres (Inglaterra) e Espanha

«Nos verões de 1961 e 1962, Escrivá voltou a esse mesmo bairro londrino, mas alojou-se noutra casa, no número 21 de West Heath Road, arrendada a Mr. Soskin, um juiz de guerra de origem russo-judaica»[15]. O fundador da Obra tentará conciliar durante esses dias descanso, estudo e impulso às pessoas e trabalhos apostólicos do Opus Dei.
Vázquez de Prada relata que, em 1961, «dois dias depois de ter chegado, lhe comunicaram que a ordenação de um grupo de sacerdotes da Obra, a realizar em Madrid, tivera de ser adiada por dificuldades formais. No dia seguinte, sábado 22 de julho de 1961, decidiu ir visitar D. Leopoldo Eijo y Garay, que costumava passar o verão em Vigo. Compraram os bilhetes, e no domingo partiu de Londres, de avião, com destino a Biarritz, na companhia do Pe. Álvaro del Portillo. O conselheiro de Espanha estava à espera de ambos, de carro. Dormiram em Vitoria, e na segunda-feira atravessaram a meseta, com um calor insuportável e um veículo de velocidade limitada, desde a madrugada até ao cair da tarde. Deu um abraço a D. Leopoldo: qual era o problema? Não havia problema nenhum, estava tudo em ordem. Simplesmente, há muito tempo que o bispo de Madrid não via o Fundador e quis ter essa alegria»[16].
Aproveitando a passagem por Espanha, Josemaria Escrivá decidiu visitar o Pe. Eliodoro, um sacerdote que vivia em Tui e que «o tinha ajudado generosamente desde os começos da Obra. A amizade e a gratidão levaram-no a pôr-se imediatamente a caminho. Viram-se às tantas da noite e deitou-se esgotado. Em 25 de julho era festa em Santiago de Compostela. Foi visitar os seus filhos e filhas e o Cardeal»[17].
No regresso a Londres, além de dedicar algum tempo ao descanso e ao estudo, deu especial atenção ao incremento dos trabalhos do Opus Dei.
1962 foi o seu último verão em Inglaterra. Tinha acabado de ser instalada uma nova sede para a Comissão Regional. Aproveitou esses dias para incentivar o trabalho apostólico e encontrar-se com os membros da Obra. Em Roma estava a par do desenvolvimento de alguns projetos: um clube de jovens no sul de Londres, a criação de uma Residência Universitária em Manchester, a casa de retiros em Sussex, as residências femininas em Londres, Bangor e Manchester e também a Escola de Ciências Domésticas e Hotelaria.
Vázquez de Prada comenta que, para além de todas estas ocupações, o fundador «rezava, rezava. Era visto de terço na mão nas igrejas anglicanas, ou diante do altar de Westminster Abbey. Dizia jaculatórias na solidão dos templos sem sacrários: em All Hallows, ou em Saint Bartholomew, diante de uma imagem de Nossa Senhora»[18].
4. 1963 e 1964: Reparacea e Elorrio (Espanha)

Josemaria Escrivá passou em Espanha os verões de 1963 e 1964. No primeiro ano, descansou numa casa chamada Reparacea, em Navarra, entre San Sebastián e Pamplona; e, em 1964, em Elorrio, uma localidade da Biscaia.
Pilar Urbano narra que «pede a Álvaro del Portillo e a Javier Echevarría – que o acompanham sempre – que lhe sugiram planos e programas para trabalhar noutros assuntos, durante esse tempo de férias. Quando sai de Roma, faz uma voluntaria “lavagem ao cérebro”, desliga do seu trabalho habitual e delega, noutras pessoas, o máximo possível de tarefas do governo da Obra. Mas a sua mente – um portentoso dínamo de ideias – não pode ficar de braços cruzados. (…) Nesses verões, além de ler, estudar e escrever, ocorrem a Escrivá centenas de iniciativas audazes, de soluções engenhosas, de descobertas insuspeitadas, que ele próprio irá anotando ou indicando aos que o acompanham, para as “pôr em andamento” quando regressar a Roma no reinício do ano de trabalho»[19].
Enquanto esteve em Elorrio, Escrivá escreveu aos seus filhos: «Estamos neste recanto fresco e húmido, a fazer todos os dias – não acreditais – um passeio de mais de duas horas: já fazemos parte da paisagem, os camponeses conhecem-nos, bem como as vacas e os cães, que mal nos ladram. Penso que, se em Roma conseguirmos arranjar um bocadinho para andar todos os dias, depois dessa clausura monástica de anos, à qual estivemos sujeitos contra tudo o que está determinado – mea culpa! – e contra o senso comum, teremos mais saúde e poderemos servir melhor o Senhor no seu Opus Dei. Tendes de me ajudar a cumprir este propósito difícil: assim faremos cumpri-lo ao Pe. Álvaro, que para ele é um remédio necessário»[20].
5. 1965: Florença (Itália)

Texto extraído de: Pilar Urbano, O Homem de Villa Tevere, cap. XVII, editado por ed. Quadrante em S. Paulo (Tradução revista para português europeu).
Em 1965, Scaretti, um amigo de Álvaro del Portillo, empresta-lhes, até meados de agosto, a casa de uma quinta de lavoura que tem em Castelletto del Trebbio, a vinte quilómetros de Florença, com a condição de a deixarem livre a meados de agosto, quando pensa ir para lá com a família.
A casa encontra-se bastante deteriorada pelos anos e pela falta de uso, e está longe de ser um lugar confortável. Não tem telefone nem televisão. Para lá chegar, é preciso subir uma alta colina por um caminho de terra batida. Os arredores são campos de cultivo. E a região, como quase toda a Toscana, é de clima continental: muito frio no inverno e muito quente no verão.
Escrivá, Del Portillo, Echevarría e Cotelo passarão aí várias semanas de julho e agosto.
Precedem-nos quatro mulheres da Obra – Marga Barturen, Victoria Postigo, Dora del Hoyo e Rosalía López – que se encarregarão de cuidar da administração doméstica e de transformar essa deteriorada vivenda num lar alegre e acolhedor.
Scaretti tinha-lhes comentado que, na sala de jantar, iriam ver umas belas porcelanas de Capodimonte, avaliadas em quarenta milhões de liras. Assim que chegaram, o Padre [São Josemaria] indicou que as retirassem com todo o cuidado, e as guardassem em num armário que não ia ser utilizado, para não correrem o risco de se partirem e terem de fazer um gasto desnecessário.
Nessa casa – como em qualquer casa onde passe o período de férias –, Escrivá tem plena consciência de que o imóvel, os móveis e os utensílios que usa não são seus, e procura evitar estragos. Se, para organizar o trabalho e o estudo, decidem mudar alguns móveis de lugar, encarrega Javier Cotelo de fazer “um desenho da sala, tal como estava ao chegarmos, para a deixar exatamente na mesma quando nos formos embora”. Procura também que os móveis não rocem a parede ou que se substitua uma lâmpada fundida, ainda que para isso seja preciso ir à povoação comprá-la.
Nessas semanas, Escrivá organiza um horário com tempos para rezar, trabalhar, fazer desporto, dar alguns passeios e excursões...
Concentra o seu trabalho na revisão de um documento – a Instrução sobre a Obra de São Gabriel – que se refere aos membros supranumerários do Opus Dei e ao apostolado com pessoas casadas.
Começara a redigir esse texto em maio de 1935 e terminara-o definitivamente em setembro de 1950. Mas naquela época não existiam fotocopiadoras, o stencil era de muito baixa qualidade e a gráfica em Villa Tevere ainda não estava em funcionamento. Foram feitas cópias datilografadas para ser distribuído pelos diferentes países onde a Obra trabalhava. Alguns copistas, involuntariamente, tinham cometido erros de sintaxe e de pontuação, chegando até a omitir palavras. O mesmo acontecera com as outras Instruções (a da Obra de São Rafael, relativa ao apostolado com a juventude, e a da Obra de São Miguel, sobre os membros do Opus Dei, numerários e agregados, que permanecem solteiros). Escrivá fizera retirar de circulação todas as cópias, para as trocar por um texto único, impresso, que se editaria na gráfica de Villa Tevere. E era exatamente nessa edição que trabalhava agora.
Vendo como se podia alterar totalmente o sentido de uma frase pela colocação errada de um ponto ou de uma vírgula, ou pela omissão de um advérbio – sobretudo, visto tratar-se de textos que tinham de conservar íntegro o seu caráter ‘fundacional’ –, Escrivá comenta com Álvaro e Javier Echevarría a necessidade de “sermos todos exigentes connosco próprios e acabarmos materialmente bem todos os trabalhos, porque não podemos oferecer a Deus coisas atamancadas”. Nesses dias, insiste muito com eles na “ascética das coisas pequenas”.
Toma nota das suas leituras para um projeto de um livro – Diálogo – sobre a vida contemplativa, que está muito avançado, mas que não chegará a terminar.
Lê os documentos do Concílio Vaticano II. Reza pelos grandes temas que ainda serão debatidos: o dos religiosos e o dos sacerdotes. Dá graças pelo documento Lumen Gentium, no qual se percebe o eco de alguns pontos do espírito do Opus Dei, que passam assim a ser doutrina da Igreja, solenemente proclamada e recomendada. Escrivá passa muitos momentos no pequeno oratório que instalaram na casa, agradecendo essa chancela da Igreja à mensagem que, durante tantos anos, fora encarada com reticências e não compreendida nem aceite.
Como na casa não há televisão e o jornal chega muito tarde, quando regressa da sua caminhada diária, Escrivá pede a Álvaro – assim: “pede” – que ligue o rádio para ouvir o noticiário da uma da tarde. Interessa-lhe estar a par do que acontece no mundo. Enquanto ouve as notícias, faz quase sempre um comentário de tom sobrenatural e anima os que estão com ele a rezar por tal país, por tal situação, por tal pessoa...
Uma vez por semana, vão a Florença, a joia renascentista, terra dos Médicis e de Savonarola, junto ao rio Arno. No entanto, apesar de Escrivá ser um apaixonado pela arte, não fazem turismo. Não vão aos museus, nem deambulam pela cidade para contemplar de passagem tantos e tão esplêndidos monumentos.
Curiosamente, a maior parte do seu tempo é passado a rezar na igreja de Santa Maria Novella ou na igreja de Santa Croce, junto do monumento a Dante. Por que motivo quando tem a catedral e tantas outras belíssimas igrejas, Escrivá só visita estas duas? Talvez porque Santa Maria Novella é a sede mais importante da Ordem dos dominicanos em Florença, tal como Santa Croce é a dos franciscanos. E, nessa fase do Concílio, não saem da mente e do coração de Monsenhor Escrivá as necessidades espirituais destas duas grandes e antigas famílias religiosas.
Depois dessas semanas em Castelletto del Trebbio, vão para Piancastagnaio, uma quinta perto de Orte, que também não dispõe de telefone nem de televisão. O proprietário quer vendê-la e cede-lhes o seu uso durante alguns dias.
Escrivá tem interesse em adquirir uma casa rodeada de bom terreno. Os alunos do Colégio Romano da Santa Cruz precisam de um "pulmão" para os tempos de férias. Durante anos, utilizaram a propriedade de Salto di Fondi, perto de Terracina, na costa do Tirreno. Mas o que a princípio não passava de uma praia solitária, está agora cheia de turistas e é o que há de mais parecido com a Quinta Avenida em hora de ponta e de menos adequado para uns dias de descanso e formação.
Mal chegam a Piancastagnaio, apercebem-se de que este lugar está muito próximo de umas nascentes de água sulfurosa, o que torna o ar bastante irrespirável. Escrivá não faz o menor comentário ao mau cheiro. Mas, passado o tempo combinado com o proprietário, comunica-lhe que “depois de lá ter estado, nestes poucos dias de experiência, percebo que não é o sítio que procurávamos”.
6. 1966: Florença (Itália) e França

Texto extraído de: Pilar Urbano, O Homem de Villa Tevere, cap. XVII.
No verão de 1966, voltam a Castelletto del Trebbio. [...] Escrivá passa longos momentos no oratório. Deseja considerar e amadurecer o modo de tornar vida as conclusões a que se chegou no Congresso Geral do Opus Dei, que acabara de se realizar. Mas, preocupam-no sobretudo a Igreja e a autoridade do Papa, nessa época pós-conciliar de tensões, conflitos, leituras enviesadas e interpretações abusivas.
O Concílio abriu caminho para que o Opus Dei pudesse ter finalmente a sua formulação jurídica adequada como prelatura. Aprovou uma matéria que, embora seja uma solução nova, amplia uma figura já conhecida e utilizada na Igreja: as jurisdições pessoais.
Agora pede luzes a Deus para poder apresentar à Santa Sé uma solicitação bem fundamentada e bem documentada que permita ao Opus Dei “desfazer-se da pele de cobra”; deixar de ser de direito o que já não é de facto: passar da figura de Instituto Secular para a de prelatura pessoal. Mas entende que, por prudência, deverá pedi-lo no tempo oportuno, quando as convulsões pós-conciliares se apaziguarem e as reformas se sedimentarem.
Nos passeios que dá com Álvaro e com Javier falando dessa “intenção especial”, comenta-lhes mais de uma vez:
— Ofereço a minha vida a Deus para que cheguemos à solução definitiva, ainda que eu não a veja realizada na terra, se o Senhor me pedir esse sacrifício.
Como nos âmbitos eclesiásticos e nos mass media, se abusa de a expressão "pós-conciliar", apresentando-a como a súmula do verdadeiramente novo, moderno, progressista... e, sobretudo, oposto ao que havia antes, Escrivá também lhes diz nessas conversas pela quinta de Castelletto del Trebbio:
— Estamos em “tempo pós-conciliar” desde o século I: desde o Concílio de Jerusalém. Isso de “tempo pós-conciliar” é um termo impreciso e impróprio, quando referido unicamente ao Concílio Vaticano II, porque este último concílio continua os anteriores e ratifica tudo o que neles se disse: não pode haver solução de continuidade entre as outras assembleias ecuménicas da Igreja e a que terminou no ano passado.
Dirá o mesmo, anos mais tarde, perante milhares de pessoas. Mas, no verão de 1966, essas palavras são as suas primeiras reflexões em voz alta: o sobressalto mental inconformista de quem não tenta adotar a cor da moda dominante, que não é camaleão.
Escrivá recorre a todos os meios para rezar pela Igreja, “desde a hierarquia até ao último dos batizados”. E organiza para o dia 4 de agosto, festa de São Domingos de Gusmão, uma viagem a Bolonha, porque deseja celebrar a Missa na igreja de São Domingos, onde se conserva a arca sepulcral do santo fundador dos dominicanos.
Vão no Fiat 1100, que não tem ar condicionado. Está-se em plenos dias de canícula, e o calor faz-se sentir pela autoestrada como chumbo derretido. Durante o trajeto, à ida e na volta, Escrivá recomenda insistentemente aos seus três acompanhantes que rezem muito pelos religiosos. Não precisa de lhes dizer que essa não é a espiritualidade do Opus Dei, mas não deixa de lhes sublinhar que “o estado religioso foi e continua a ser absolutamente necessário na Igreja”.
Javier Echevarría ajuda diariamente Escrivá no momento mais importante do seu dia: quando celebra a Missa. Seria lógico que já estivesse acostumado. No entanto, não é assim. E, concretamente, essa Missa do Padre em São Domingos, deixa-lhe tal impressão, causa-lhe tal impacto que, ao recordá-la vinte e oito anos depois, escreveu:
— Tenho muito viva na memória a devoção com que celebrou aquela Missa. Digo isto porque, se cada uma das suas Missas já era um forte abanão para quem a presenciava, naquela de São Domingos, notámos, palpámos que o nosso Padre rezava de um modo muito especial pelo estado religioso: com amor e gratidão. Eu diria... com predileção.
Poucos dias depois, deixaram Castelletto del Trebbio e viajaram de carro até Abrainville, uma aldeia perto de Étampes, em França. Os membros do Opus Dei arranjaram ali uma casa. Uma vivenda no campo. O Padre quer ver as suas filhas e os seus filhos franceses.
Quer vê-los para os animar nas sua tarefas apostólicas e para fazer vibrar as cordas das suas almas. Sim, das suas almas. Da última vez que esteve em França, recusou provar o vinho. Bebeu apenas água mineral. E quando alguém, com certa estranheza, lhe perguntou se não gostava do vinho de França, respondeu:
— Por bons que sejam os vinhos franceses, a mim, de França, interessam-me mais as almas.
Todos os dias, logo a seguir ao almoço, vão de Abrainville a Paris. Passa uns momentos com os seus filhos no centro da rua Dufrenois. Não foi para outra coisa. Algumas escapadelas a antiquários e velharias, ao popular marché aux puces e pouco mais. Para não chamar a atenção com o veículo de matrícula romana, utiliza nessas deslocações um Citroën 4L com matrícula francesa, que lhe foi emprestado.
A 30 de agosto vai a Couvrelles, nos arredores de Soissons. É uma casa nobre, não muito grande, mas harmoniosa, com as suas fachadas do século XVII, rodeada de arvoredo e de um lago. É um centro internacional de convívios onde, ao longo do ano e sem interrupção, terão lugar colóquios culturais, conferências, cursos intensivos de formação doutrinal, retiros, convívios, etc. As pessoas encarregadas da administração apoiam a residência, uma escola de hotelaria e atividades para casais.
Escrivá consagra os altares de Couvrelles. E no exterior da casa, ao pôr-do-sol, tem uma tertúlia inesquecível com os seus filhos de França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Suíça, Itália e Espanha que, sentados nos degraus de pedra da dupla escadaria, se sentem incentivados pela vivacidade e pelo calor das suas palavras:
— Ninguém pode guardar para si próprio o tesouro da fé, nem o tesouro da vocação!

Texto extraído de: Pilar Urbano, O Homem de Villa Tevere, cap. XVII.
Em 1967, encontram uns terrenos à venda perto de Roma, na zona davia Flaminia chamada Saxa Rubra, Pedras Vermelhas. Ali será construída a sede definitiva do Colégio Romano da Santa Cruz, Cavabianca, com capacidade para mais de duzentas pessoas, com instalações desportivas, uma zona ajardinada e uma moradia anexa, completamente independente, para a administração: Albarosa.
Empreender a construção e o financiamento destes edifícios será, para Escrivá, uma das suas “três últimas loucuras”. Na realidade, foi uma loucura muito sensata. Por um lado, a expansão da Obra pelo mundo e o aumento de vocações ampliam anualmente o número de alunos do Colégio Romano. Em Villa Tevere vivem praticamente amontoados, prolongando uma situação provisória já há demasiados anos. Por outro lado, esse mesmo crescimento e difusão do Opus Dei tornam cada vez mais necessário que Villa Tevere se dedique ao fim específico para que foi concebida: ser a sede central do governo da Obra, com os escritórios e serviços administrativos de apoio: os do Conselho Geral, para os homens, e os da Assessoria Central, para as mulheres.
Entretanto, passa três semanas de agosto em Gagliano Aterno, nos Abruzos. A casa pertence à Baronesa Lazzaroni, que lha cedeu para que descanse. É um casarão antigo, com alguns pormenores arquitetónicos muito originais, que Escrivá pede ao arquiteto Javier Cotelo, que os copie em esboço, “para o caso de poderem ser aproveitados em Cavabianca”. Desenha uma coluna baixa e rechonchuda, que batiza “la chaparrita”, “a gorduchinha”. Anos mais tarde, quando a vê reproduzida em Cavabianca, alta e esbelta, chamá-la-á, castiçamente, “la bien plantá”, “a airosa”.
A casa dispõe de um oratório familiar. Numa lápide afirma-se categoricamente que São Francisco de Assis esteve naquele lugar. Ao percorrer as dependências, no primeiro dia, Escrivá lê esse texto da lápide, mas não diz nada.
Pouco depois, convida dois dos seus filhos do Conselho Geral, a interromper por um dia o seu trabalho no meio do ferragosto romano e a acompanhá-lo numa visita a um santuário de Nossa Senhora, nessa ronda de orações que iniciou. Um dos que vêm é Giuseppe Molteni, um lombardo oriundo de Brianza, doutorado em química e em teologia, leigo e administrador geral do Opus Dei. O Padre chama-o familiarmente Peppino. Enquanto se ultimam os preparativos para a partida, leva-o ao oratório e mostra-lhe a lápide. Depois, comenta brincando:
— Peppino, é difícil, dificílimo, encontrar em Itália um lugar, por mais recôndito que seja, onde não se diga que ali esteve São Francisco de Assis, ou que ali dormiu Garibaldi. Não me podes negar: sois um pouco triunfalistas nas recordações...!
— Certo, certo... É um costume muito difundido em toda a Itália, para dar destaque aos lugares: aqui esteve Leonardo da Vinci, aqui Torquato Tasso, aqui Dante, aqui Garibaldi... Così facciamo patria!.
Escrivá ri às gargalhadas, divertindo-se com o atrevimento e o sotaque lombardo de Peppino.
A vida naquele casarão está muito limitada, porque há pouco espaço para passear. De vez em quando saem de casa, de carro. Quando chegam ao portão, junto à casa do caseiro, Escrivá pede a um dos dois Javieres que vá à frente abrir e fechar o portão:
— Já lhes damos bastante trabalho, por estarem atentos à manutenção da casa. Por isso, como ato de caridade, e para que vejam que não os queremos sobrecarregar cada vez que saímos, antecipe-se um dos dois... Assim, não incomodamos o casal, nem os filhos.
E sempre que saem ou regressam, diz-lhes umas palavrinhas de saudação afetuosa, com o carro ligado, mas parado, enquanto abrem ou fecham o portão:
— Como estão? Como vai o trabalho? Lamento dar-lhes mais trabalho nestes dias em que estamos aqui... Mas lembro-me de vocês, todos os dias, na Santa Missa. Rezo por esta família. Rezo pelas coisas que trazem no coração…
No início, os caseiros mostram-se reservados e tímidos. Mas com o decorrer dos dias, Escrivá conquista-os com o seu trato direto e simples. Pouco a pouco, são eles que se aproximam para ter esse momentinho de conversa. Talvez não o saibam exprimir, mas o que os atrai é o facto de o monsignore não lhes falar com condescendência senhorial, mas com cordialidade sacerdotal.
Nos Abruzos, na aldeia de San Felice d'Ocre, há uma casa de convívios do Opus Dei, Tor d'Aveia, onde os alunos do Colégio Romano passam as férias pela primeira vez nesse ano. O Padre irá lá em várias ocasiões para estar com eles.
Ao chegar, vai diretamente ao oratório para cumprimentar “o Senhor da casa”. Diz aos que o acompanham que, nessa temporada ao fazer a genuflexão, costuma dizer: «Glória ao Pai, glória ao Filho, glória ao Espírito Santo, glória a Santa Maria e também a São José... Jesus, amo-te! Obrigado aos anjos que te fazem a corte».
Depois, passa algum tempo com as filhas, que se ocupam da administração. Interessa-se por tudo: se estão contentes, se rezam muito, se fazem excursões, se conseguem tempo para ler, se se alimentam bem, “mas sem engordar, porque nestas terras costumam alimentar-se com comidas com muita gordura”.
Num dia, pede para ver as cozinhas, a loiça, os utensílios de cozinha, os eletrodomésticos com que trabalham.
Noutra ocasião, dirigindo-se a Blanca Nieto, no seu tom de voz vibrante e penetrante, diz algo muito simples, mas que vai abrir um formidável horizonte de irradiação àquelas mulheres, empenhadas de sol a sol na tarefa de gerir a residência: o próximo mais próximo. A mesmíssima aldeia onde, até então, viviam isoladas no seu próprio casulo:
— Diretora... tende muito espírito apostólico! Nesta aldeia, sim, nesta aldeia, tendes de vos tornar muito amigas de todas as mulheres, das filhas, das raparigas novas... E procurai ir dando uma formação cristã profunda (...). Quero que este centro seja um foco de apostolado para toda a aldeia. E que depois se beneficie toda a região. Se fordes apostólicas, conseguireis que se superem essas rivalidades tão próprias das aldeias latinas vizinhas, que “estão sempre umas contra as outras”. Com a vossa caridade, com o vosso serviço, com o vosso interesse por todas as pessoas daqui, chegareis às terras vizinhas, depois de terdes deixado um rasto profundo entre as mulheres que vivem nesta aldeia de San Felice d'Ocre. Não é um horizonte utópico. Está ao alcance da mão. Almas? Estão mesmo ali, ao virar da esquina! Uma vez mais, “lo tan real, hoy lunes”[21].
E depois de estar com elas, passa a estar com eles. Percebe-se que se delicia com o que lhe contam. É nesse ano que começam a aparecer roupas masculinas de cores e estampados agressivos: uma moda que quebra as monótonas riscas cinzentas. Escrivá brinca com um jovem norte-americano que veste uma chamativa camisa cor de laranja e umas calças de xadrez verde:
— Mas, meu filho, vais para alguma barraca de feira?!
Preocupa-se que façam desporto. E, ainda que esse dito futebol lhe pareça “uma desordem fabulosa”, encoraja-os a organizar jogos e a descontrair “chutando com força”. Nos anos 50, fez com que os alunos do Colégio Romano, que não tinham onde dar dois passos em Villa Tevere, jogassem futebol nas instalações públicas de Acquacetosa. E ele próprio ia lá muitas manhãs, por alguns minutos, porque se divertia vendo-os jogar.
Mas, quando volta a visitá-los, uns dias mais tarde, vê que um deles tem um braço ligado com uma tala e outro anda de muletas e tem uma perna engessada. Leva as duas mãos à cabeça, como que para dar maior expressividade ao seu assombro:
— Filhos da minha alma, que me estais a fazer? Disse para fazerem desporto e exercício…, mas sem exagero! Não digo que estas coisas não aconteçam, uma luxação, ou algo parecido... e não me estou metendo com este meu filho, que está tão bem de braço ao peito. Mas digo que não arrisqueis mais do que o necessário, se virdes que não podeis fazer determinado esforço, que não conseguis, que é demasiado para vocês… Sede prudentes, também nisto. Caso contrário, o Padre, que é pai e mãe de cada um de vós, preocupa-se mais do que podeis imaginar.
Depois, à parte, com o orgulho de pai, e um sorriso de orelha a orelha, dirá:
— Mas que brutinhos são! Dá-me muita alegria vê-los tão saudáveis e tão fortes...!
Mais tarde, com guitarras e maracas, cantam uma canção. Pede-lhes notícias apostólicas dos diferentes países. Encoraja os sul-americanos a empenharem-se na sua formação humanística:
— O que vou dizer não é uma crítica; mas infelizmente, meus filhos, nos vossos países... por vezes o nível do ensino não é muito elevado e nem todos os cursos são feitos com a devida profundidade... Faço-me entender?
Estimula os ingleses a terem “a audácia de entrar na alma dos outros”:
— Fostes educados num delicado respeito pela privacy dos outros. E isso é uma virtude muito louvável. Mas, meus filhos, o respeito não pode servir de desculpa para se desentender da ajuda que, como cristãos, temos a obrigação de dar aos outros (...). Vós, sem deixar de vos sentirdes muito ingleses, tendes de vos meter, sem medo, na vida dos outros. Se necessário, violentando-vos um pouco, não é?... É a maneira de essa vossa nação, que prestou tão grandes serviços à humanidade, continuar a prestá-los no verdadeiro sentido cristão a que sois chamados. Não me esqueçais, meus filhos ingleses, que a vossa terra é uma encruzilhada. E a partir daí, pode ser feito muito bem ou muito mal. Não podeis cair na omissão de não vos interessardes pelas pessoas da vossa terra. Se não vos preocupais com os que convivem convosco, mais facilmente ireis desinteressar-vos pelos que vivem longe, ao que antigamente se chamava colónias. E tendes o dever de continuar a ajudar essas pessoas...!
Aqueles dias em Gagliano Aterno não tardaram a terminar. Escrivá trabalhou no que viria a ser o Codex, o código, o Direito do Opus Dei.
Ao redigir esse texto, antecipa-se. Pensa num longínquo "depois". Quer deixá-lo pronto, porque sabe que é a ele que incumbe a sua autoria, como fundador. Mas, nesses momentos, não sabe nem suspeita que, passados apenas dois anos, terá de convocar, com urgência, um congresso extraordinário do Opus Dei, para debater e aprovar precisamente esse Codex. Ninguém poderia intuir, nesse verão de 1967, que o cérebro de um homem já estava a maquinar uma ameaça grave, muito grave, para a Obra.
8. 1968: Olona (Itália); visita ao santuário de Nossa Senhora de Einsiedeln (Suíça)

Texto extraído de: Pilar Urbano, O Homem de Villa Tevere, cap. XVII.
A casa de Sant'Ambrogio Olona é uma villa de três andares. Tem um jardim estilo francês, muito bem cultivado, com roseirais e caminhos estreitos ao longo das orlas geométricas formadas pelas sebes de buxo. Um jardim para ser admirado de longe, pois está tão perfeitamente cuidado que dá um certo constrangimento passear por ele. Em frente da casa há um pátio. Escrivá passará aí muitos momentos de tertúlia com as suas filhas que, como noutros anos, são responsáveis pela administração. A Begoña Múgica, Dora del Hoyo e Rosalía López juntou-se uma aragonesa loira e de olhos muito azuis: María José Monterde. Logo no primeiro dia, 18 de julho, Escrivá pergunta-lhes:
— Pensastes no horário que vamos seguir?
— Se achar bem, podíamos fazer mais ou menos como em Roma…
— O que mais convier. Organizai-o e dai-mo por escrito.
Pouco depois, Maria José entrega-lhe uma folha de papel em que – como de costume – especificaram a hora do pequeno-almoço, do almoço, do lanche e do jantar; as horas de que precisavam para fazer a limpeza da casa e em que eles deveriam permanecer fora da propriedade, deixando livre o local; e também algumas horas em que elas possam usar o oratório, sem se encontrarem.
Escrivá lê devagar. Faz menção de devolver o papel, sem alterar uma única vírgula do que as suas filhas propõem. Mas depois pede uma caneta. Apoia-se na mesa da sala de jantar onde elas estão e escreve com energia: “Não vos mateis a limpar!”.
Mais tarde, em diferentes momentos, dir-lhes-á:
— Aproveitai estes dias aqui para uma mudança de ares e de ambiente. Não compliqueis a vida com o trabalho da casa. Não vos metais a encerar e a fazer limpezas extraordinárias. Está tudo muito limpo! Vamos ver se arranjais tempo para sair e distrair-vos um pouco... Para mim era uma grande alegria!
No dia seguinte recebem a primeira visita: Silvia Bianchi e Rita di Pasquale. São duas jovens da Obra. Vieram de Milão para trazer algumas coisas que faltavam na casa. O Padre quer vê-las e passa algum tempo com elas na sala de estar. Fala-lhes de apostolado com grande entusiasmo. Exorta-as a que sejam as italianas a “puxar a carroça” em Itália, “e que as espanholas possam regressar ao seu país”. Sugere-lhes que empreendam atividades sociais, obras corporativas do Opus Dei, “que nasçam de forma espontânea para servir as pessoas deste país em coisas de que realmente necessitem. Não deveis imitar ou copiar o que se faz noutros lugares; há coisas que funcionam bem lá, mas aqui pode ser mais adequado ou necessário outro trabalho”.
Nessa tarde, também lhes fala mais que da "virtude" como algo abstrato, das "virtudes" em concreto: caridade, sinceridade, laboriosidade, alegria... São conversas breves, mas quase diárias em que trata de temas muito diversos. Mas há dois em que incide e reincide: o trabalho bem feito e a fidelidade à Igreja. Aproveita todos estes encontros para pedir às suas filhas que rezem intensamente pelo Papa e pela Igreja. Nota-se que é uma preocupação que não o larga.
No dia 22, Álvaro del Portillo, Javier Echevarría e Javier Cotelo vão a Varese, a cidade mais próxima, para fazer compras. Escrivá fica em casa a trabalhar. À tarde, está alguns minutos com María José e Begoña:
— Foram a Varese, entre outras coisas, para comprar uma boquilha para D. Álvaro. Este meu filho, para viver a pobreza, aproveita tanto as coisas que a boquilha que usa já está toda queimada, riscada... um nojo! De modo que aproveitei esse pretexto, para os fazer sair e distrair-se.
Depois comenta que era o dia da festa de Santa Maria Madalena. Escrivá gosta da figura desta mulher, “louca de amor” por Jesus Cristo. Chama-lhe, com um sabor popular, “a Madalena”.
— Minhas filhas, vou trabalhar no quarto que me preparastes. Mas, a verdade, é que a mesinha que lá está é demasiado pequena, com pouco espaço para espalhar papéis. Por favor, vede se conseguis encontrar outra mesa nalgum canto desta casa que ninguém esteja a usar e que seja maior...
Procuraram por todos os lados. Finalmente, na cave, viram uma mesa de pingue-pongue, formada por duas peças encaixadas uma na outra. Pegaram numa das duas tábuas, forraram-na com papel de embrulho e colocaram-na no quarto do Padre, sobre os cavaletes da mesa de pingue-pongue.
Quando está com elas, vê-se que está sinceramente agradecido:
— Trabalho muito bem nela. Que Deus vos pague!
Nessa mesa improvisada, Escrivá redigiu um importante documento doutrinal, em forma de carta, que toma o título das primeiras palavras com que começa: Fortes in fide. Uma carta forte, para alertar e pedir vigilância ao Opus Dei do mundo inteiro, nessa difícil hora de deserções, de rebeldia perante a autoridade, de teologias fraudulentas, de teorias morais enganadoras dentro da Igreja. Hora triste. Hora amarga, em que se pode sentir o corruptio optimi, pessima: a corrupção do melhor é o pior.
Trabalha também na leitura dos seus velhos cadernos de Apuntes íntimos: cadernos escritos em forma de diário, que começam em 1930. Depois de cada data, Escrivá anotava reflexões espirituais, confidências da sua vida interior e mesmo vivências sobrenaturais. De facto, começou a tomar estas notas por volta de 1926. Mas, mais tarde, destruiu o primeiro caderno: queimou-o. O primeiro caderno abrangia o período imediatamente anterior e posterior a 2 de outubro de 1928, data em que viu o Opus Dei.
Agora, quando Del Portillo ou Echevarría lhe perguntam por que o destruiu, refere-se àquela época como uma sucessão de episódios excecionais e inenarráveis. Para não entrar em pormenores – nota-se que não o quer fazer – chama a esses anos “a história das misericórdias de Deus”. E, como explicação para o facto de ter queimado esse primeiro caderno, diz-lhes que “Deus fez, no momento oportuno, coisas maravilhosas através de um pobre instrumento”; e que está persuadido de que “com o passar do tempo, quem tivesse lido aqueles escritos pensaria que o sacerdote protagonista de tão imensos favores era uma pessoa muito santa e de espiritualidade muito elevada”.
— E eu, que me conheço muito bem, embora não completamente, sei o que sou: um pobre homem, um pecador que ama loucamente Jesus Cristo; mas um pecador muito grande.
Apesar destes argumentos, Álvaro e Javier insistem, durante todo o verão, na conveniência de refazer esse caderno.
— Ainda que escreva só o que lhe ficou mais gravado na memória, Padre, isso representaria mais tarde, para todos, algo de muitíssimo valor.
— Não, não. Se me nego a reconstituí-la, não é porque tantos e tantos favores de Deus – que de facto houve – tenham sido apagados da minha alma. Não. É que teria medo de acrescentar um pouquinho da minha interpretação humana e de me desviar, mesmo que minimamente, da verdade dos factos.
Esta ‘luta’ é como um ritornello das conversas em Sant'Ambrogio Olona. Cada vez que Escrivá faz algum comentário sobre os Apuntes íntimos que anda a ler, surge o ‘convite’ para que passe para o papel aquelas vivências, traços relevantes na história da Obra.
Com bons modos, mas dando por encerrada a questão, o Padre responde:
— É inútil insistir. Já deixei claro que não posso, nem quero, nem vou escrevê-lo.
Nesse verão de 1968, dá-se o esmagamento da Primavera de Praga. Um golpe de força dos tanques soviéticos que arranca pela raiz o incipiente ressurgir das liberdades públicas na Checoslováquia.
Passeando com Álvaro e Javier Echevarría, diz-lhes certa manhã:
— Nestes dias rezo muito pela Checoslováquia. Lembro-me de um modo especial dos bispos e dos clérigos desse país, porque estão mais expostos a essa tremenda perseguição que o comunismo sempre exerceu. Talvez agora de uma maneira mais refinada, subtil: sem fazer mártires; mas, isso sim, minando e destruindo a personalidade dos católicos. E também os leigos que se declararem católicos devem estar a sofrer essa perseguição e essa hostilidade. Peço muito por eles. A discriminação no trabalho, no salário ou na vida social, tem repercussões nas suas famílias. E isso é muito triste... Não me importo de que na vossa direção espiritual, peçais consentimento para fazer mortificações especiais por estas pessoas. Há anos que sofrem, mas agora estão a sofrer ainda mais e de um modo mais violento.
O Padre quer dar uma escapadela até à Suíça, para ver os membros da Obra que lá vivem e trabalham. E poucos dias depois, faz uma viagem rápida. Mas não é para ver os seus filhos. É para ver a sua Mãe. Como está próxima a festa da Assunção da Santíssima Virgem, propõe fazer uma romaria ao santuário mariano de Einsiedeln.
Nos fins de agosto, deixam a casa de Sant'Ambrogio Olona. Antes de partir, voltam a pôr tudo como estava quando chegaram. Já sem o forro de papel de embrulho, a mesa de Escrivá volta a ser o que era: a mesa de pingue-pongue. Regressam à canícula romana.
9. 1969: Intra (Itália).

Texto extraído de: Pilar Urbano, O Homem de Villa Tevere, cap. XVII.
No verão de 1969, alugam uma casa no campo, também no norte de Itália, perto de Milão, em Premeno, uma povoação junto de Intra, a menos de um quilómetro do Lago Maggiore.
A casa, Villa Gallabresi, está rodeada por um jardim com pinheiros altos. Como fica muito isolada, no meio do campo, Escrivá indica, antes de partir, que instalem o oratório no primeiro andar, para que esteja bem protegido. Nesse mesmo andar, ficarão os quatro quartos: o seu, o de Álvaro del Portillo e os de Javier Echevarría e Javier Cotelo que, como de costume, conduz o carro, agora um Mercedes 320, vermelho muito escuro, com a matrícula de Roma EO8342. O carro já tem sete ou oito anos de uso, mas está em muito bom estado. Foi oferecido a Mons. Escrivá por causa das suas longas viagens pelas estradas da Europa.
No rés-do-chão da casa ficam a sala de estar, a sala de jantar – que também lhes serve como sala de trabalho –, a cozinha e o quarto de passar a ferro. No último andar, para melhor lhes garantir a independência, alojam-se María José Monterde, Begoña Múgica, Dora del Hoyo e Inés Cherubini, que cuidam da administração da casa.
Uma escada central liga os diferentes andares. É uma escada muito empinada, com degraus altos que permitirá a Javier Echevarría fazer uma importante descoberta sobre a vida interior de Josemaria Escrivá. Com efeito, poucos dias depois de estarem ali, observa que o Padre sobe e desce esta escada com muita frequência, entre uma ocupação e outra, ou mesmo interrompendo uma sessão de trabalho ou um tempo de leitura. Não é difícil notar, porque os degraus são de madeira velha e rangem. Javier fica atento disposto a averiguar onde vai o Padre em todas estas viagens. E logo esclarece a dúvida: Escrivá não faz mais do que viver o seu costume de "se escapar" uma e outra vez, até ao sacrário mais próximo. Só que aqui é mais incómodo.
Por outro lado, o local é muito húmido: não há um dia em que a casa não amanheça envolta em brumas e névoas, ou em que não chova durante várias horas. Por vezes, a neblina é tão espessa que não permite ver para além dos pinheiros do jardim. Quando, ao fim de duas ou três horas, "levanta", aparece ao longe, num belíssimo azul, o Lago Maggiore como uma miragem de cristal.
A humidade afeta Escrivá. Os joelhos incham e doem-lhe as articulações: os ombros, os cotovelos, os pulsos e os joelhos. Por causa das dores, coxeia ao andar. Sobretudo quando sobe e desce escadas. Apesar disso, não diminui as suas visitas breves, mas frequentes, a Jesus Cristo no sacrário.
Esse verão de 1969 é de trabalho intenso e de intensa oração. Escrivá, Del Portillo e Echevarría prepararam o material que será utilizado no Congresso Extraordinário do Opus Dei, convocado em junho. O texto-base é nada menos que o Codex, o Direito particular da Obra.
Aos olhos de muitas pessoas, é um modo de seguir as indicações gerais da Santa Sé, dadas com base no Concílio Vaticano II, para que todas as instituições eclesiais revejam as suas constituições, os seus regulamentos, os seus carismas fundacionais, a fim de se “adaptarem às necessidades pastorais dos tempos”.
Durante o inverno anterior, em Roma, Escrivá recordara uma vez mais, perante os dicastérios da Santa Sé, que o Opus Dei não tinha nada a ver com as ordens e congregações religiosas, nem com os institutos seculares, ou com os de vida consagrada, nem com as sociedades de vida comum; e também que não precisava que o autorizassem a rever os seus estatutos, já que tinha pessoalmente essa faculdade pela sua condição de fundador.
No entanto, interessa-lhe convocar esse congresso por um motivo bem diferente: consta-lhe com toda a certeza que se vem urdindo um novo e gravíssimo ataque, não contra o bom nome e a imagem das pessoas da Obra, nem contra os seus apostolados, mas contra as estruturas do Opus Dei e a sua inserção na Igreja. É precisamente para, entre outras razões, tutelar o caminho jurídico da instituição, que convoca esse Congresso extraordinário.
Tal como nos outros verões, o desporto será jogar lebocce e caminhar. Passeiam pelos arredores de algumas aldeias próximas do Lago Maggiore: Intra, Arona, Lantino, Stresa... Às vezes, aproximam-se de algumas barracas de quinquilharias. O Padre gosta de descobrir quinquilharia: algum boneco engraçado que possa ser usado como presente no dia de la Befana. Passeando por Arona, vê um soldadinho alpino de madeira, que custa duzentas e vinte liras.
— Que tal se o levarmos para o Umberto, como brincadeira? De certeza que vai gostar muito!
Esse ‘alpino’ tem a sua "história": desde novo, o Dr. Umberto Farri, advogado, revelara um grande entusiasmo pela vida castrense. Da altura em que estava no serviço militar, contava piadas muito engraçadas, cujo protagonista era sempre um coronel, un colonnello. Como estas histórias animavam a vida em família, o Padre instava-o a “fazer esse número”:
— Vamos, Umberto, conta-nos uma piada sobre o teu colonnello...! Ou já se te acabou a corda?
Outro dia, noutra barraca, encontraram um pequeno cão de caça que mexia a cabeça e tinha um faisão na boca:
— Este podia ser mesmo bom para Paco Vives, que gostava tanto das caçadas nos seus bons tempos…
Escrivá pegou num pato de borracha amarelo. Olhou para ele e desatou a rir:
— Aqui está o anatroccolo do nosso Peppino.
Pronuncia anatroccolo – patinho – imitando em voz baixa a pronúncia lombarda, o sotaque milanês tão caraterístico de Giuseppe Molteni, Peppino.
Deste modo descontraído, ao sabor da vida, o Padre ensina-os a pensar sempre nos outros: a quererem-se uns aos outros como uma verdadeira família, e a economizar umas liras, comprando esses bonequinhos com suficiente antecedência e muito mais baratos do que nas lojas de Roma.
A 10 de julho, depois do lanche, o Padre e Álvaro del Portillo passam alguns momentos com as que cuidam da administração da casa. Comenta-se na conversa que Auma e Mumbúa, duas africanas quenianas, membros da Obra, estão prestes a chegar a Roma para ficar uns anos “a romanizar-se” e beber o espírito do Opus Dei na sua própria fonte.
— Tendes de as ajudar a adaptar-se rapidamente. Pensai que para elas tudo é novo e diferente: o clima, a vida na cidade, as comidas, os horários, a língua...
— Padre, já estão a aprender castelhano...
— Coitadas, deve estar a custar-lhes muito!... Imagino que já sabeis por que motivo– embora a Obra seja universal e não seja nem daqui nem dali – a sua língua é o castelhano... Não o sabeis? Isso ficou decidido há vários anos, no Congresso Geral de 1956, por deferência para com Espanha, que foi onde a Obra nasceu.
Pouco dias depois, no dia 15, volta a estar com elas. De Milão, vieram Silvia Bianchi, Sofia Varvaro, Tina e outras. O Padre falou-lhes da necessidade de conseguir vocações italianas para a Obra, sem contar com a ajuda das espanholas:
— Aqui, em Itália, há almas maravilhosas... Não sejais cobardes. Falai-lhes de Deus. Falai-lhes muito de Deus. E do Opus Dei. Precisais de ser mais. Vós, mulheres da Obra, tendes de desempenhar, na sociedade civil, os mesmos trabalhos que os homens, os mesmos, chegando onde eles chegam. E, além disso, tendes de vos encarregar das administrações dos nossos centros. Portanto, como acabo de dizer, precisais de ser mais!
Del Portillo chegou à reunião quando já tinha começado. Nesse momento, Escrivá está a pedir-lhes que rezem pela Igreja. De repente, lembra-se de ter lido num jornal desses dias a expressão “um sacerdote social”:
— Quando se acrescenta ao ouro e à prata um adjetivo, é que não são nem ouro nem prata de lei. O sacerdote é um sacerdote e isso basta. A sua missão é exclusivamente espiritual: a cura das almas. E no instante em que sai disso, mal!
A 28 de julho vão a Milão. O Dr. Calogero Crocchiolo, médico e membro do Opus Dei, conduz o carro. Estacionam no número 7 do Corso di Porta Vittoria, onde Escrivá tem consulta marcada com o oftalmologista Professor Romagnoli. Romagnoli examina-o minuciosamente. Dilata-lhe a pupila e examina-lhe o fundo do olho. A sala está em penumbra. Todos permanecem em silêncio. Romagnoli senta-se muito perto de Escrivá. Liga o feixe de luz do oftalmoscópio e direciona-o para um dos olhos do paciente. Enquanto o explora, as suas faces quase se tocam. Sente-se a proximidade da respiração.
Poucos dias depois, a 31 de julho, voltam a Milão para resolver um assunto de trabalho. Apanham o traghetto, um ferry para passageiros e veículos, e atravessam o Lago Maggiore. Regressam ao fim da tarde. Mas o Padre quer ver as suas filhas, porque lhes comprou, no cais, uns pacotes de guloseimas e, além disso, tem de lhes dizer que no dia 4 de agosto, como no ano anterior, irão a Einsiedeln.
— Desta vez estaremos fora quase três dias, por isso tereis de ir à Missa em Premeno, ou em Intra... E, como não podeis deixar a casa sem ninguém – porque o Senhor fica no sacrário – organizai-vos em dois turnos e aproveitai esses três dias para descansar um pouco, para ir ao jardim, tomar ar fresco...! Convidai as de Milão...! Fazei o que quiserdes, menos meter-vos em limpezas extraordinárias, que eu bem vos conheço!
Maria José e Begoña reparam que o Padre está com mau aspeto. E dizem-lhe:
— Padre, está com cara de cansado...
— É porque estivemos a trabalhar em Milão. Mas descansa-me mais trabalhar do que não trabalhar. Não trabalhar consome-me...
— De qualquer forma, Padre, desde que chegou de Roma, não parou. Que poderíamos fazer para que descansasse?
— Só descansaria... se pudesse esquecer-me da Obra. Mas não quero esquecer-me da Obra! E de Deus? De Deus, não. De Deus não poderia esquecer-me, porque... morreria.
No dia 4, saem em direção à Suíça, para fazer a romaria a Nossa Senhora de Einsiedeln. Quando se despediram das que ficam na Villa Gallabresi, o Padre dá-lhes a bênção e, como aquelas mãezinhas que, na hora de partir, começam a enumerar todo o repertório de possíveis perigos, começa e não para:
— Descansai...Comei bem... Deixai-vos de limpezas... Celebrai o onomástico da Dora... À noite, fechai tudo bem e trancai as portas...
Regressa no dia 6. Como a casa de Premeno está no alto de uma colina, veem o carro chegar, quando ainda está longe. O Padre vem radiante. É sempre assim quando vai – como ele diz – “ver Nossa Senhora”.
— Desta vez não vos trouxe chocolates da Suíça. Mas comprámos umas surpresas... Acho que vos vão agradar... Pelo menos vão durar mais do que o chocolate.
Sim, realmente deixa-as surpreendidas: trouxe para cada uma delas um broche de bijuteria muito bonito […].
Nesse mesmo verão, comunicam-lhe de Villa Tevere que tinha recebido um telegrama de Paulo VI junto com uma medalha de bronze dourado, como prova de afeto e felicitação pelo 25º aniversário da primeira ordenação sacerdotal de profissionais do Opus Dei: os engenheiros Del Portillo, Hernández de Garnica e Múzquiz.
10. 1970: Intra (Itália).

Texto extraído de: Pilar Urbano, O Homem de Villa Tevere, cap. XVII.
O verão de 1970, de novo em Premeno, é uma continuação da novena no México: falar e falar com a Virgem Maria.
Escrivá levou consigo vários livros de teologia, de patrística, de história universal e de literatura. Mas o seu trabalho, nestas semanas de agosto, consiste em estudar a fundo as conclusões do Congresso Extraordinário, realizado em Roma no ano anterior.
De Villa Gallabresi vão várias vezes a Castello di Urio, perto do Lago di Como, onde há uma casa de retiros do Opus Dei. Acompanham Escrivá, como quase sempre, Álvaro del Portillo, Javier Echevarría e Javier Cotelo, que conduz o carro. Escrivá tem várias tertúlias e conversas com as suas filhas e com os seus filhos.
Noutra ocasião, passam à Suíça, que fica a poucos quilómetros de distância. Do Ticino, olhando o horizonte, rezam pelos apostolados da Obra no país helvético. Como no verão anterior, também neste de 1970, vão a Milão. Numa dessas breves viagens, dirigem-se à catedral: uma verdadeira joia de pedra, com a sua fachada gótica, os seus cento e trinta e cinco pináculos e as suas duas mil e trezentas estátuas giganti que ornamentam as colunas exteriores.
11. 1971: Comasco (Itália).

Texto extraído de: Pilar Urbano, O Homem de Villa Tevere, cap. XVII.
Caglio é uma pequena aldeia de montanha no norte de Itália, perto do Lago de Como, a uns oitenta quilómetros do Castello di Urio. Nesse tranquilo lugar do Comasco, que nem sequer aparece nos mapas, arrendam uma casinha, Villa Sant'Agostino, para passar várias semanas entre julho e agosto de 1971. Como sempre, instalam o oratório na melhor divisão do último andar, que oferece maior segurança. No mesmo andar, os quartos. No andar de baixo, a sala de jantar, a cozinha, a sala de estar, que servirá também de lugar de trabalho em comum. Desta vez, a casa é pouco espaçosa e todos terão de limitar a sua liberdade de movimentos.
Josemaria Escrivá e Álvaro del Portillo chegam cansados, "arrasados" por um ano de trabalho muito exigente e em que determinadas "boas pessoas" do Vaticano – concretamente uma –continuaram a fomentar este clima de desconfiança, de diffidenza, contra a Obra, que já dura há demasiado tempo. Em 1971, nos momentos mais inclementes, Escrivá repete umas palavras, uma espécie de “oração de bolso”, que escreveu ao correr da pena, para deixar tudo nas mãos poderosas de Deus: «Senhor, meu Deus, nas tuas mãos abandono o passado, o presente e o futuro, o pequeno e o grande, o pouco e o muito, o temporal e o eterno».
Veio a Caglio para descansar. E descansa recolhendo-se, embrenhando-se na intimidade com Deus. Como ocupação, propôs-se estudar uma parte muito específica da Bíblia: os cinco livros do Pentateuco. […] Nesse verão, vai também visitar as suas filhas e os seus filhos italianos, que passam uma temporada de descanso e formação em Castello di Urio. Numa dessas visitas, vê Giuseppe Molteni, membro do Conselho Geral, que há vários anos convive com o Padre sob o mesmo teto, em Villa Tevere. Molteni é um apaixonado pela região lombarda e fala sempre com grande carinho de Brianza, a sua terra natal, da sua gente, da sua história, das suas paisagens… Mal o vê, o Padre abraça-o com força:
— Peppino, meu filho, aqui estamos no teu ambiente! Nos teus domínios! Vamos! Vê se organizas um passeio a Brianza e nós vamos contigo. Assim, rezamos no local por esses teus conterrâneos tão trabalhadores, tão responsáveis, tão simpáticos… E que saiam dali muitas vocações!
Outras saídas são "úteis", visitando fábricas de móveis na região de Comasco, nos arredores do Lago de Como. A localidade de Cantù é famosa pelas suas indústrias de carpintaria e marcenaria. Escrivá toma nota dos preços, dos modelos de mobiliário, dos custos de transporte, etc. Pede folhetos e cartões de visita comerciais. Tem em mente a futura instalação de Cavabianca, sede definitiva do Colégio Romano da Santa Cruz, que já está em plena construção. Passado algum tempo, quando chegar o momento de adquirir os móveis, dará a Helen G. Monfort e à equipa de instalações todos esses catálogos e endereços, para que possam “comprar qualidade, escolhendo, e a preço de fábrica”.
Os passeios a pé costumam ser pelo lungolario de Como. Quase todos os dias vão a Como, a antiga Oppidum dos Gauleses, a Bovum Comum dos Romanos. E entram sempre na catedral. Permanecem ali algum tempo. Escrivá quer acompanhar Jesus Cristo no Tabernáculo. Depois, sentam-se num banco da nave central e, quietos, sem fazer percursos turísticos pelo templo, observam as excelentes obras de arte: as tapeçarias de Ferrara, de Florença, de Antuérpia; a Sacra conversazione de Luini; a capella del Crocifisso; as Núpcias de Maria; il tempietto da pia batismal, a decoração do transepto dedicado à Assunta... De vez em quando, Escrivá detém-se num detalhe ornamental – por exemplo, o artesoado do teto – que pode servir de inspiração para decorar algum oratório da Obra. E pede a Javier Cotelo:
— Olha para estes cassettonni... Toma uma nota rápida para que depois nos lembremos desta combinação do dourado e das cores.
Certa manhã, antes de começarem a descer em direção a Como, param junto de uns vendedores de fruta. Não é um mercado. São horticultores que montam as suas bancas rústicas à beira da estrada, com umas tábuas sobre umas canastras. Escrivá repara no homem que atende atrás da banca das melancias. É rude, magro e muito moreno. Anuncia a sua mercadoria num cartaz tosco: Cocomeri, 100 lire al chilo.
— Compramos uma melancia e levamo-la às vossas irmãs? Assim evitamos que elas tenham de as ir comprar. Anda, Javi, apesar de seres "de cidade", vê se consegues comprar uma bem madura.
Os caseiros de Caglio têm três filhos. Uma manhã, passeando pelo exíguo terreno que rodeia a Villa Sant'Agostino, Escrivá vê o caseiro que manobra as ferramentas de jardinagem. Junto dele, agarrado a uma das pernas, está o filho mais novo, que deve ter pouco mais de quatro anos. Observa o miúdo: bochechas rosadas, ranho a chegar ao nariz, boquinha aberta, olhos redondos de admiração..., não perde um único movimento do pai.
Escrivá comentará mais tarde:
— Comoveu-me o olhar desse pequenino... Tive inveja da boa. E pedi ao Senhor esse sentimento de filiação para nós: que desejemos estar sempre assim, contemplando com admiração o nosso Pai Deus, persuadidos de que Ele faz tudo "divinamente" bem. E, com a sua Providência, cuida de todo o campo onde temos de atuar...
12. 1972: Lecco (Itália).

Texto extraído de: Pilar Urbano, O Homem de Villa Tevere, cap. XVII.
Nos períodos de verão de 1972 e 1973, conseguem uma casa em Civenna, uma pequena aldeia de montanha perto da cidade de Lecco. Também no norte de Itália, na região dos lagos e junto à fronteira com a Suíça.
Mil novecentos e setenta e dois. Escrivá leva muito para fazer: continuar o trabalho de revisão do Codex do Opus Dei e, além disso, preparar a edição de dois livros de homilias, que se publicarão com os títulos de Cristo que passa e Amigos de Deus. Este último, bem como Via-Sacra, Sulco e Forja, serão obras póstumas.
No dia a seguir ao da chegada, põem-se a caminho por uma estrada de terra, ladeira acima. Nem tinham percorrido cem metros, quando Escrivá faz sinal de ‘alto’!
— Com estes sapatos de cidade não podemos ir muito longe. É melhor voltarmos para casa, pegarmos no carro e irmos à localidade mais próxima comprar alpergatas ou botas de andar no campo.
— A mais próxima é Lecco, a vinte e tal quilómetros...
— Então, vamos a Lecco!
Chegados lá, Escrivá sugere que, em vez de irem a uma sapataria, passem primeiro pelo mercado:
— Com certeza que lá se vendem dessas botas, usadas pelos camponeses, e muito mais baratas do que numa loja elegante.
E assim foi. Compram um par de botas para cada um por dez mil liras.
E lá, no animado bulício do mercado, como se para ele fosse a coisa mais normal do mundo, Monsenhor Escrivá senta-se em cima de uma caixa de fruta, descalça-se, experimenta as botas, anda um pouco, pisa com força e, sorrindo para o homem da tenda, comenta:
— São exatamente do meu número. Vou levá-las calçadas!
De facto, para Escrivá economizar nas compras não é uma "sovinice" tacanha, mas uma forma natural de praticar a virtude da pobreza. Virtude com má fama – e ainda piores modos de a explicar – que não é a necessidade forçada dos indigentes, mas a generosidade voluntária de quem, possuindo, sabe ser desprendido.
Num desses dias, as encarregadas da administração resolvem pôr de parte duas camisolas interiores de Álvaro, porque estavam muito gastas e cerzidas. Andando pela cidade de Como, Escrivá vê que anunciam numa loja “quatro camisolas interiores por três mil liras”. Sem hesitar, sugere que se aproveite a ocasião.
Mas ali mesmo encarrega Javier Echevarría de comprar uns doces para as suas filhas. E quando o viu regressar da pasticceria com um pacote minúsculo, brinca com ele:
— Mas, Javi, filho...! Não te terás arruinado! As tuas irmãs vão pensar que és um grande forreta... Da próxima vez, tenta ser um pouco mais generoso.
Contudo, exceto em longas viagens por estrada, contam-se pelos dedos as ocasiões em que Escrivá e os que o acompanham tomam algum refresco num bar.
É tão invulgar que, quando acontece, como nesse verão de 1972, Javier Echevarría o anota na sua agenda. Numa manhã quente de agosto, já perto do meio-dia, depois da caminhada pelo lungolario de Lecco, veem um quiosque ao fundo da alameda onde se serve granita di caffè, um saboroso refresco de granizado de café. Javier Cotelo comenta que a irmã do Padre – a tia Carmen para todos na Obra –, quando saía para fazer compras em Roma, em dias de calor pegajoso, costumava convidar os seus "sobrinhos" ou "sobrinhas" para uma granita di caffè. Realmente, o calor apertava muito nessa manhã e a caminhada tinha-os feito transpirar. Adivinhando o apetite de todos, o Padre dirige-se a Del Portillo:
— Álvaro, não nos convidas a uma granita di caffè..., como exceção?
Essa região de Brianza é em geral fresca e húmida, com frequentes chuvas, nevoeiros e tormentas. Um dia, Giuseppe Molteni viaja de carro de Milão para Civenna. Leva consigo Carlos Cardona, que vai trabalhar com o Padre numa das homilias que pensa publicar. Cai uma chuva torrencial, forte e incessante. As trovoadas sucedem-se sem parar ao logo do trajeto, mas Giuseppe, apaixonado pela sua Brianza, não se cansa de repetir, como se fosse um publicitário:
— Eppure, Carlos, dietro le nuvole c'è il sole...
Quando chegam, Carlos Cardona conta ao Padre:
— Para que não me sentisse tão assustado, sempre que ribombava um trovão, Peppino dizia-me: “Mas, Carlos, por detrás dessas nuvens está o sol…!”. E eu respondia: “Bem, se tu o dizes, deve estar. Mas, bolas, o tipo, como se esconde!”.
Escrivá ri-se com gosto:
— Peppino, tens muita graça..., mas tens de chegar a um acordo com os teus conterrâneos, porque eles não fazem senão dizer que a chuva e o nevoeiro são a vossa riqueza... De qualquer forma, com esse elogio à tua terra, disseste uma grande verdade, que pode ser aplicada à vida espiritual: há momentos em que, talvez pela nossa falta de correspondência à graça, deixamos de ver a luz. Noutras ocasiões, o Senhor permite essa escuridão, para pôr à prova a nossa fé e a nossa lealdade. Disse há já muitos anos que, no caminho para Deus, uma vez que se viu a luz da graça, do chamamento, é preciso avançar com fé, com inteireza, deixando talvez farrapos de roupa ou mesmo de carne nas silvas do caminho. Mas temos de continuar, na certeza de que Deus é o mesmo de sempre e não pode falhar. Se lhe formos fiéis, depois da tempestade e da escuridão virá a bonança e brilhará para nós um sol maravilhoso, ainda mais brilhante… Meus filhos, depois de se ter escutado a voz de Deus, não se pode voltar atrás.
Como Civenna fica a pouco mais de quatro quilómetros da fronteira com a Suíça, e ainda menos por ar, captam-se muito bem os programas de televisão. A televisão da casa está preparada para a transmissão a cores. No primeiro dia em que a ligaram, Escrivá ficou tão surpreendido como os outros:
— Que bem que se vê! Não imaginava que se conseguisse uma imagem tão nítida e com uma cor tão natural. A cor é tão atrativa que nos mete lá dentro, no ecrã, independentemente do que estiver a dar...
Depois desta primeira impressão, com o televisor já desligado, reflete em voz alta:
— Todos estes progressos, grandes e pequenos, têm de levar-nos a dar muita glória a Deus. Todo o trabalho humano nobre, bem realizado e bem aplicado, é um instrumento prodigioso de serviço à sociedade e de santificação... Suponho que vos deve ter acontecido o mesmo que a mim: enquanto víamos televisão, era-me fácil elevar o coração ao céu, dando graças pela perfeição técnica das imagens, do colorido. E imediatamente –porque é uma ideia que está sempre na minha cabeça – pensava no bem e no mal que se pode fazer com este e com todos os meios de comunicação. Bem? Sim, porque são um veículo formidável para chegar a muitas pessoas, captando-lhes a atenção de uma forma muito atrativa. Mal? Também, porque com imagens e textos, se pode introduzir doutrina errónea, moral falseada. E as pessoas engolem esses erros e falsidades sem perceber, como se fosse ouro puro. Por isso insisto tanto que o apostolado através dos meios de comunicação terá sempre muita, muita importância. E os católicos que tiverem esta vocação profissional, os jornalistas, os comunicadores da imprensa, da rádio e da televisão, devem estar aí, presentes e bem ativos. Ausentar-se seria desertar.
13. 1973: Lecco (Itália).

Texto extraído de: Pilar Urbano, O Homem de Villa Tevere, cap. XVII.
O seu último "veraneio" será, assim, o de 1973.
A situação da Igreja é tão grave que Paulo VI resolve antecipar o Ano Santo Jubilar de 1975. Declara-o aberto em 10 de junho de 1973. Esta intempestiva mudança do calendário é um recurso urgente, quase dramático, para despertar a consciência dos católicos.
A 22 de junho, perante os cardeais da Cúria Romana, o Papa declara que «a confusão doutrinal e a indisciplina fazem empalidecer no rosto da Igreja a sua deslumbrante beleza de Esposa de Cristo».
O Papa está consternado. O Papa está triste. Tenta deter o processo de deterioração, de desvirtuamento, de anarquia... É como se a Igreja lhe escapasse das mãos.
Josemaria pensa que é o momento de ir consolar e confortar o Pai comum. A 25 desse mesmo mês de junho, vai visitá-lo. Uma audiência privada que – quebrando o protocolo do relógio – durará mais de uma hora e um quarto.
Mal o fundador do Opus Dei vê o Papa, crava os dois joelhos sobre a laje de mármore. Paulo VI comove-se com esse desusado gesto de fé e de submissão filial. Concentra vigor nos seus braços e puxa fisicamente Escrivá para cima, forçando-o a levantar-se.
Depois, já sentados, Monsenhor Escrivá tira a sua pequena agenda de bolso, onde anotou tudo o que quer relatar ao Papa: notícias boas e animadoras da perseverança fiel de milhares de homens e mulheres da Obra e dos pujantes apostolados que levam a cabo em tantos países, em tantos estratos da sociedade, em tantos cenários da atividade civil. Crise sacerdotal? Nesse ano de 1973, como em todos os anteriores desde 1944, irá ordenar-se uma nova "fornada" de profissionais leigos, com um duplo doutoramento, o universitário civil e o eclesiástico. Mais uma meia centena de sacerdotes, cuja única ambição é… ser sacerdotes.
Não foi pedir nada ao Papa. Apenas lhe quer dar alegrias, alegrias… E, mais uma vez, o coração de Roma sabe, sente, que há “uma pequena parte da Igreja” onde a mão de Pedro se pode apoiar com firmeza.
Em julho, volta à mesma casa que tinham alugado no verão anterior, em Cilena. Certa manhã, embora o dia tivesse amanhecido frio e desagradável, com alguns aguaceiros e nuvens espessas, vão a Lecco, para caminharem pelo lungolario dell'Isonzo e pelo lungolario dell'Piave.
O Padre anda durante duas horas, duas horas e meia. Álvaro caminha menos tempo e depois senta-se num banco da alameda e ali os espera. A certa altura, o Padre vai sentar-se junto dele. Nota-o pálido, com olheiras e como transido de frio.
— Álvaro, estás com má cara... Que tens?
— Passei mal a noite e agora sinto-me indisposto... Como diria a Avó, “estou pouco católico”...
—Vamo-nos embora, vamo-nos quanto antes...!
Enquanto voltam para o carro, o Padre dá indicações a Echevarría:
—Javi, logo que chegarmos a casa, podes telefonar para Castel d'Urio, para que José Luis Pastor venha ver o teu irmão? Sem o alarmar, diz-lhe que venha o mais depressa possível.
Já na estrada, de regresso a Civenna, "ralha" a Álvaro:
— Porque não me disseste nada antes de sairmos? Sofro quando me fazeis uma coisa destas! Sei que o fizeste a pensar nos outros, e todos te agradecemos, mas devias ter-me dito que te sentias mal… e tínhamos ficado em casa, com muito gosto... Alvarico, filho, não me faças mais uma coisa destas!
— Pensava que era um mal-estar momentâneo, por ter passado mal a noite... Mas não se preocupe, Padre, acho que isto não tem importância.
No entanto, Escrivá não pode despreocupar-se sem mais nem menos. Sabe que Álvaro tem, como costuma dizer, “uma má saúde de ferro”. Já lhe fizeram várias cirurgias e todas de envergadura. Trabalha em full-time e no limite das forças, com uma dupla dedicação: em Villa Tevere, para servir a Obra e no Vaticano, para servir a Santa Sé. A sua alma puxa pelo seu corpo. O problema não está no motor, mas na carroçaria. Em qualquer momento pode quebrar.
Com efeito, desta vez, o “mal-estar momentâneo” de Álvaro é mais grave. Durante várias semanas, tem febres violentíssimas que o fazem suar em bica. Ensopa os lençóis e o colchão. É preciso trocar-lhe toda a roupa de cama várias vezes, tanto de dia como de noite. O Padre e os dois Javieres revezam-se para cuidar do doente. O médico, José Luis Pastor, diagnostica uma grave doença renal e sugere que o levem a Espanha para que o Dr. Gil Vernet, de Barcelona, diga se deve ser operado.
Quando Álvaro se recompõe um pouco, decidem fazer a viagem. Mas, antes é preciso cumprir uma pequena diligência: ir ao aeroporto e vacinar-se contra a cólera. Houve em Itália um surto epidémico e é necessário o certificado sanitário de vacinação para se poder sair do país. No dia 1 de setembro, véspera da viagem, os quatro vão ao aeroporto de Milão. Nas dependências sanitárias formou-se uma longa fila de pessoas. Alguém do posto médico reconhece Monsenhor Escrivá e aproxima-se dele com um gesto amável:
— Monsignore... Mil desculpas... Acompanhe-me, por favor, e será imediatamente atendido, sem necessidade de esperar.
Escrivá nega-se:
— Não, não, muito obrigado, mas prefiro aguardar a minha vez.
Perante a insistência do funcionário, Escrivá explica:
— Agradeço-lhe, mas não quero tirar o lugar a nenhuma destas pessoas que, se estão aqui, não é por gosto... Devem ter outras coisas para fazer e talvez com mais urgência do que eu.
Quando no dia seguinte o avião descola e sobrevoa Milão e os arredores de Brianza, Escrivá "assalta" os sacrários das torres das igrejas que consegue divisar lá de cima... Despede-se daquelas minúsculas casinhas... Abençoa todas essas gentes... E, com o sabor agridoce que tem a nostalgia, intui que talvez não volte a essas paragens. Foram as suas últimas "férias". A vida já não lhe dará oportunidade de perder-se, como um uccel di bosco, como um pássaro do bosque, livre, por algum lugar escondido na campina italiana.
[1] Pilar Urbano, El Hombre de Villa Tevere, p. 376 (tradução em português do Brasil: O homem de Villa Tevere, Ed. Quadrante).
[2] Ibid.
[3] Pilar Urbano, El hombre de Villa Tevere, p. 793.
[4] Andrés Vázquez de Prada, El Fundador del Opus Dei, Tomo III, p. 528 (desta obra, a tradução portuguesa, igualmente em 3 volumes, é Josemaria Escrivá, Ed. Verbo, 42; Lisboa 2002).
[5] Ibid., p. 530.
[6] Ibid., p. 531.
[7] Ibid., p. 532.
[8] Ibid., p. 534.
[9] Andrés Vázquez de Prada, El Fundador del Opus Dei, Tomo III, p. 535.
[10] cf. St Josemaría Escrivá in Ireland 15 to 19 August 1959.
[11] Andrés Vázquez de Prada, El Fundador del Opus Dei, Tomo III, p. 537.
[12] cf. Asociación de Amigos de la Universidad de Navarra. Los orígenes de la Asociación desde 1959.
[13] Andrés Vázquez de Prada, El Fundador del Opus Dei, Tomo III, p. 535.
[14] cf. Ibid., p. 537.
[15] Pilar Urbano, El hombre de Villa Tevere, p.793.
[16] Andrés Vázquez de Prada, El Fundador del Opus Dei, Tomo III, p. 539.
[17] Ibid.
[18] Ibid., p. 540-541.
[19] Pilar Urbano, El hombre de Villa Tevere, p. 794.
[20] Andrés Vázquez de Prada, El Fundador del Opus Dei, Tomo III, p. 778-779.
[21] (N.T.) Esta expressão é retirada de um poema de Jorge Guillén, cujo sentido é equivalente a “tão real como o que se toca”, “tão certo como segunda-feira” para sublinhar o valor do quotidiano.