Os meus anos de trabalho junto ao Beato Álvaro

Em 11 de março de 1914 nasceu Álvaro del Portillo. E em 11 de março de 1954, o autor deste artigo – Pe. Iñaki Celaya – conheceu-o em Roma. O Pe. Iñaki foi reitor do Colégio Romano e depois Diretor Espiritual do Opus Dei. Agora publicamos algumas recordações dos seus anos de trabalho com o Beato Álvaro.

D. Iñaki Celaya junto ao Beato Álvaro del Portillo, no dia 21 de setembro de 1975

1. Introdução

2. A intenção especial

3. Trabalho e piedade

4. Fortaleza, alegria e bom humor

5. Fé com obras

6. Humildade sobrenatural

7. Oração pessoal, esperançada e otimista

8. Coração de amigo, de Pai... e de filho


Introdução

Conheci pessoalmente o Beato Álvaro del Portillo em 11 de março de 1954, data em que ele completou 40 anos: eu tinha chegado a Roma na noite anterior, para começar a minha estada e estudos no Colégio Romano da Santa Cruz. Quando o cumprimentei e lhe dei os parabéns – seriam 9 horas da manhã –, estava ao lado de S. Josemaria no meio de muitos andaimes, já que todos os edifícios circundantes estavam em construção.

A partir dessa data e até 1974 pude vê-lo e conversar com ele com frequência, visto que o Colégio Romano – do qual fui aluno até 1957, depois membro do conselho local; e a partir de 1963, reitor – tinha a sua sede nos mesmos edifícios de Villa Tevere (sede do Conselho Geral); e era habitual que Mons. Escrivá de Balaguer viesse estar com os alunos do Colégio Romano, quase sempre acompanhado pelo [então] Pe. Álvaro.

A partir de 1957, o meu contacto foi frequente também por motivo do trabalho de direção do Colégio Romano, que S. Josemaria acompanhou muito de perto, juntamente com Mons. Álvaro del Portillo.

Em setembro de 1974, o Colégio Romano, do qual fui reitor até 1977, mudou-se para a sua sede definitiva, situada em Cavabianca, conjunto de edifícios situado nos arredores de Roma. A frequência com que nos víamos pode ter diminuído um pouco com a distância, mas aumentou em intensidade, em função do cargo e das necessidades formativas do Colégio Romano; e, em particular, desde setembro de 75 a junho de 77 (desde que Mons. Álvaro del Portillo foi eleito Presidente-Geral do Opus Dei até eu deixar o Colégio Romano), tive muitas ocasiões me relacionar diretamente com ele, de receber as suas instruções e a sua ajuda.

De junho de 1977 até à morte de D. Álvaro, em março de 1994, vivi no centro do Conselho Geral, junto com o prelado e as pessoas que compunham este conselho: eu era então o Diretor Espiritual central. Durante este período, tive a graça de estar ainda mais próximo de D. Álvaro: por um lado, no que se refere à tarefa que me correspondia por causa do meu cargo; e, por outro lado, na medida em que a vida de família própria do centro, a fazíamos com ele: concretamente, a meditação da manhã todos os dias; os horários de tertúlia depois do almoço e do jantar; os atos habituais de piedade (Exposição com o Santíssimo Sacramento e Salve aos sábados e outros dias de festa, recoleções; etc.) Além disso participei de muitos meios de formação dados por ele: meditações frequentes, o círculo breve que dava quase todas as semanas, homilias em várias ocasiões, tertúlias e meios de formação com todo o tipo de pessoas; etc. Por fim, acrescento que tive a oportunidade de acompanhá-lo a bastantes almoços para os quais tinha convidado algumas autoridades eclesiásticas.

A primeira impressão que tive desde que o conheci foi a de me encontrar diante de uma pessoa cheia de simplicidade e naturalidade, muito serena, muito acolhedora. Esta impressão foi-se fortalecendo dia a dia: ao mesmo tempo que descobria qualidades humanas e intelectuais excecionais, parecia-me que a sua missão consistia em ajudar e estar perto de S. Josemaria, passando despercebido, cheio de delicadeza com ele (nas suas conversas, nas sugestões que lhe fazia), atento às mínimas indicações que recebia.

Desde que foi eleito Presidente-Geral (15-IX-1975), as qualidades que me impressionaram no início foram crescendo a cada dia: dotes de inteligência e de governo, sentido sobrenatural, serenidade, paz, cordialidade e grande carinho pelas pessoas.

É difícil distinguir na minha vida a influência que o Beato Álvaro del Portillo teve da do fundador da Obra enquanto vivia: acho que quase sem perceber, o que aprendi com D. Álvaro foi tentar ser um fiel filho de S. Josemaria, pelo exemplo que nos dava e que entrava pelos olhos.

Desde a sua eleição como Padre, penso que este exemplo – o de ser filho fiel do nosso fundador – foi uma constante na sua vida, devido à contínua referência ao espírito de S. Josemaria no governo. Neste contexto, o sentido da filiação divina deixou em mim uma profunda impressão e marca, o que o levou a uma grande visão sobrenatural em tudo, a uma paz inalterável – que comunicava, irradiava a todos –, o seu espírito de trabalho incansável e uma perseverança e tenacidade muito fortes para cumprir a Vontade de Deus, até ao último momento da sua vida.

Quase não tenho correspondência com ele – pois morávamos na mesma casa, não havia lugar para isso –, a não ser breves cartas de felicitação ou lembranças que recebi nalguma festa minha, se estivesse longe de Roma. Também em ocasiões semelhantes eu costumava escrever-lhe. Claro que guardo muitas notas pessoais das conversas com D. Álvaro, e das suas pregações. A partir de 1975, tive uma consciência especial de que tudo isso era um grande tesouro, e que eu tinha que preservá-lo, o que tentei fazer.

Embora a minha memória seja cada vez mais fraca e os meus dotes literários bastante limitados, pela qualidade das minhas recordações e pela sorte que tive em ser testemunha em primeira pessoa da atividade do Beato Álvaro, muitas vezes tenho sido convidado a relatar pormenores da sua vida, tanto em pequenas reuniões familiares como em contextos sérios, por exemplo, quando testemunhei no seu processo de beatificação. Já que não estou com grande fôlego, animei-me – mesmo a nós, de Bilbau, quando chegamos a nonagenários, às vezes as forças falham – a escrever estas recordações dos meus anos de trabalho com o Beato Álvaro com os quais ponho um pouco de ordem na minha memória e desejo encorajar todos aqueles que não se deram pessoalmente com ele a aprofundar no seu exemplo e recorrer à sua intercessão.

A intenção especial

A ereção do Opus Dei como Prelatura pessoal foi um dos primeiros desejos de D. Álvaro quando foi escolhido para suceder ao fundador à frente do Opus Dei: levar a cabo a intenção especial que o nosso fundador tinha deixado preparada. O processo final foi realizado desde finais de 1978 a novembro de 1982: naquela época – como se sabe – foram tomadas todas as providências necessárias, desde a solicitação prévia para que se estudasse o assunto, até à promulgação da Bula Ut sit de 28-XI-82, que foi solenemente executada canonicamente pelo Núncio Apostólico em Itália, em 19 de março de 1983, durante a Santa Missa celebrada pelo prelado, na Basílica de Santo Eugénio.

Todo este processo foi impulsionado por D. Álvaro del Portillo com uma fé, sentido sobrenatural e perseverança extraordinárias, superando os muitos obstáculos que surgiram, de vários tipos; e sempre, com rigor canónico e íntima unidade com o Santo Padre e a Sé Apostólica. Durante este tempo, acompanhei muito de perto a atividade de D. Álvaro e pude observar de perto algumas virtudes que eram especialmente evidentes. Em primeiro lugar, encorajou a redobrar a oração e a mortificação de todos os seus filhos e de muitas outras pessoas (cooperadores do Opus Dei, famílias, amigos, congregações religiosas, etc.), para obter do Senhor as graças necessárias: quase todos os dias, no final da meditação da manhã, às 8h30, quando nos preparávamos para celebrar ou assistir à Santa Missa, nos dizia diante do Sacrário: «rezai especialmente por esta gestão que se faz hoje», «por esta visita que temos de realizar», etc. A sua fé e confiança na oração manifestam-se, por exemplo, no seguinte facto: no início de 1980, enquanto eu estava com D. Álvaro no meu escritório, um sacerdote –Pe. Miguel – entrou e disse-lhe que ia com um amigo dele visitar e cuidar de alguns padres idosos que estavam numa residência sacerdotal em Monte Mario. Muitos destes sacerdotes tinham grande devoção a S. Josemaria e pediam-lhe inúmeros favores. No caso a que me refiro – contou o Pe. Miguel – encontraram um sacerdote que, com a estampa para a devoção privada na mão, dizia-lhes – como se lho atirasse à cara – que non mi concede la grazia che le chiedo, não lhe concedia a graça que pedia. Era um padre de 87 anos que pedia a intercessão de Mons. Escrivá de Balaguer para voltar a ser professor no Seminário...

D. Álvaro achou graça, mas depois disse ao Pe. Miguel: «Na próxima vez que o vires, diz-lhe, da minha parte, que o nosso Padre está a conceder-lhe um favor muito maior, e é que o está a fazer perseverante na oração». E prosseguiu «e isso acontece-nos a nós com a intenção especial: enquanto a pedirmos com fé, está-nos a conceder um favor ainda maior, que é fazer-nos perseverantes na oração, mais unidos ao Padre e uns aos outros, mais vibrantes apostolicamente». E terminava dizendo: «o Senhor pode querer continuar a conceder-nos este favor por muitos anos».

Alguns dias depois, disse-nos: «Acabei de dizer ao Senhor que se quiser que continuemos a pedir mais 20 anos, até que no-la conceda: fiat voluntas tua (seja feita a tua vontade)». Deixou-nos, logicamente, muito impressionados com a sua fé, com o seu sentido sobrenatural. Pouco tempo depois, enviou esta jaculatória a todos os membros da Obra, para que a rezassem constantemente: fiat voluntas tua.

Este sentido sobrenatural de fé e abandono em Deus, e segurança na força da oração, manifestou-se nas suas palavras – em junho de 1980 – com as quais respondeu a uma pergunta sobre o andamento da intenção especial: «Vai muito bem, meu filho, porque o Senhor é o melhor dos pais e um bom pai sempre ouve os pedidos dos seus filhos. Desde o primeiro momento recebeu as nossas orações; mas o que vale muito custa muito. Se Deus, às vezes, quer retardar a realização concreta do que já nos concedeu, fá-lo para tentar fortalecer a nossa fé, a nossa esperança e o nosso amor, para acrisolar a nossa humildade, fortalecer o nosso espírito. Na oração exercitam-se as três virtudes teologais: a fé, porque pedimos convictos de que o Senhor nos ouve; a esperança, porque sabemos que o nosso Pai Deus nos concederá o que Lhe pedirmos; e a caridade, porque pedir é uma manifestação de amor e de confiança filial. A oração põe em marcha e potencia a vida interior: quanto mais rezamos, mais nos aproximamos de Deus, e isso é muito bom... A intenção especial vai muito bem; estamos a rezar muito. Se o Senhor atrasa a sua concessão, ótimo, porque nos aproximamos d'Ele, e todos à uma. Entretanto, que essa oração unânime continue a subir ao céu».

Junto a esta oração e mortificação, cheias de fé e perseverança, D. Álvaro trabalhou e fez trabalhar incansavelmente: tanto na preparação dos diversos estudos e documentos, como na organização dos vários encontros que se realizaram na Santa Sé; e fazendo visitas (algumas com longas viagens), para explicar aos cardeais e bispos a natureza da Obra, a solução que se buscava, etc.

Trabalho e piedade

Muitas vezes o acompanhei em cerimónias litúrgicas, como as cerimónias do Tríduo Pascal que ele presidia; a muitas concelebrações por ocasião de solenidades, aniversários, etc.; a exposições e bênçãos com o Santíssimo Sacramento, etc. Sempre me impressionou – e ouvi comentar a muitos – a sua profunda piedade e recolhimento, a sua plena obediência às rubricas litúrgicas, tal como o mestre de cerimónias sugeria. Posso dar um exemplo particular disso em relação ao canto litúrgico, que eu costumava organizar nessas cerimónias. D. Álvaro não tinha bom ouvido, era-lhe difícil reter as melodias e podia enganar-se facilmente, e de facto enganava-se. Pois, apesar disso, todas as vezes que eu lhe sugeria que convinha que cantasse (as orações, o prefácio, a bênção da missa, etc.), ele chamava-me para ensaiar na véspera da cerimónia: passávamos um bom tempo com as partituras, estudando-as e cantando juntos; depois pedia-me para lhe deixar a gravação, para que pudesse rever à noite, por exemplo, antes de se deitar. E quando chegava a cerimónia, tentava cantar tudo, sem a menor preocupação de ficar mal ou pior: mais de uma vez, se enganou no tom ou na melodia, e depois pediu-me desculpa – como se fosse culpa sua – por não tê-lo feito bem. Guardo como relíquia a última partitura que lhe dei para esses ensaios.

Trabalhava horas diárias, muito intensas, na presença de Deus, rezando por tudo o que tinha para estudar: usava modos humanos que o ajudassem a lembrar que tinha que santificar o trabalho: o crucifixo, um quadro da Virgem. Durante mais de um ano mariano – comemorámos três seguidos a partir de 1 de janeiro de 1978 –, verifiquei que todos os papéis que ele assinou vinham com a data e o ano sublinhados a vermelho. Perguntei-lhe por esse sublinhado e respondeu com simplicidade que era um pormenor que tinha acrescentado pelo ano da Virgem; e havia milhares de assuntos que despachou.

Vi-o diariamente, durante anos, chegar à meditação da manhã, que ele fazia com o Conselho Geral, meia hora antes; celebrar a Santa Missa com grande intensidade. Também acompanhei – entre outras coisas, porque trabalhava numa sala muito próxima da dele – como vivia outras práticas de piedade com pontualidade e seriedade: a meditação da tarde, a recitação do breviário acompanhada por D. Javier Echevarría e por Mons. Joaquin Alonso – os dois sacerdotes Custodes do Padre de 75 a 94, encarregados de acompanhá-lo e atendê-lo material e espiritualmente –, os momentos de leitura espiritual, a recitação do rosário, etc. Durante anos vi-o rezar diariamente com todo o Conselho Geral as preces da Obra, assistir a todos os atos de piedade previstos sem deixar nenhum (por exemplo, nos dias em que havia exposição com o Santíssimo: todos os sábados e muitos dias de festa). Vivia uma generosidade superabundante na piedade com o Senhor e com Nossa Senhora. Por exemplo, quando todos rezávamos o terço juntos, ele levantava-se, mesmo cansado – algo comum nos seus últimos anos – para não adormecer.

Em janeiro de 1994 (dois meses antes da sua morte), a Universidade de Navarra concedeu doutoramentos honoris causa. Mons. del Portillo, como Magno Chanceler fez a viagem e assistiu às cerimónias, longas e extenuantes para ele, que estava muito limitado de forças físicas. Após o seu falecimento, tivemos a oportunidade de ver um vídeo das cerimónias: nos primeiros planos pudemos ver que estava exausto, mal conseguindo levantar os braços e sempre com um sorriso cativante. Ficámos tão impressionados com o visionamento do vídeo que D. Javier Echevarría, que lhe sucedeu como prelado, falando em voz alta em nome de todos, disse: «peço perdão porque vejo que exigimos mais de D. Álvaro do que ele podia fisicamente, e não nos dávamos conta».

A sua generosidade na tarefa de educar e orientar os seus filhos crescia, sempre de acordo com as instruções dadas pelos seus Custodes, até ao fim da sua vida não se eximiu de dar pessoalmente todos os meios de formação que pôde: círculos breves todas as semanas, meditações, tertúlias e meios de formação, etc. E sempre, sem dar a menor impressão do seu cansaço, da sua idade. De facto, no Congresso Geral de setembro de 1992 – em que já tinha 78 anos –, fez uma simples alusão ao facto de que seria o seu último Congresso, e acrescentou com a mesma simplicidade, diante de todos, que até o último momento, «non recuso laborem» (não rejeito o trabalho) como de facto todos nós verificámos. Manteve uma profunda humildade diante de Deus, sentindo-se instrumento e procurando sempre a Sua graça; e diante dos homens: humildade para ouvir e agradecer; por exemplo, sempre agradecia a pregação dos seus filhos, a que ia quando lhe correspondia; humildade para aprender, para retificar.

El beato Álvaro del Portillo, san Josemaría y don Iñaki Celaya (Roma, 7 de junio de 1975)
O Beato Álvaro del Portillo, S. Josemaria e o Pe. Iñaki Celaya (Roma, 7 de junho de 1975)

Fortaleza, alegria e bom humor

Gostaria também de destacar a sua fortaleza para empreender e perseverar; a sua fortaleza física e moral perante a dor e a doença. Na sua história clínica, há uma sucessão de doenças, cirurgias, etc. – algumas conheci-as de perto: com alguma frequência, fortes cólicas hepáticas; uma pneumonia dupla em abril de 1989; estenose renal, operada no início da década de 1990; operação às cataratas em 1993; implante de um pacemaker nessa mesma altura... –, suportava-as com um sorriso, pouco lhes dando importância. Posso dizer que, sendo um homem de constituição forte e desportista, as agruras da vida, por exemplo, os anos difíceis da guerra espanhola e os anos do pós-guerra, as dificuldades económicas e as condições de vida em Roma, durante anos, e as doenças, foram-no desgastando até espremê-lo como um limão, na expressão de S. Josemaria, como demonstra o episódio que já contei, em Navarra. Nunca percebi a menor queixa, levava tudo com uma firmeza cheia de naturalidade – por exemplo, quando lhe perguntaram, contava o que tinha visto no monitor durante alguma intervenção médica, como se fosse outra pessoa –, sempre com um sorriso e alegria. Os últimos anos da sua vida, especialmente os anos de 92 a 94, foram muito difíceis para ele, deste ponto de vista: notou-se um cansaço que lhe dificultava até mesmo andar; numa ocasião – no início de 1992 – vi-o interromper uma reunião porque não se aguentava em pé: e em todo esse tempo continuou a fazer uma vida normal com todos, fez várias viagens apostólicas a diversos países e continuou com o ritmo de trabalho previsto. Posso assegurar que não conheci outra pessoa que tenha vivido a fortaleza e a resiliência nestes aspetos como Mons. del Portillo. Quanto à sua saúde, para além dos incidentes médicos que acabo de referir, vi-o em muitos momentos de acontecimentos adversos ou difíceis: por exemplo, nos anos 78-82 em que se estudava a transformação da Obra em Prelatura, pelas calúnias, emaranhados e obstáculos que alguns quiseram colocar. A mesma coisa, e isso foi um grande sofrimento para D. Álvaro, aconteceu em 1991, antes da beatificação do nosso Fundador, em que se espalharam calúnias e difamações contra S. Josemaria. Em todas essas situações, como noutras mais habituais e correntes, a sua serenidade e a sua alegria não se perturbavam minimamente: eram momentos para rezar mais, para estar mais unidos, para se entregar mais, para fazer mais apostolado. E assim o incutiu aos que estávamos ao seu redor e em todos os fiéis da Prelatura, que testemunham este espírito sobrenatural e humano de Mons. Álvaro del Portillo: «Não temos o direito de ficar tristes, seria uma ofensa ao nosso Pai Deus», repetia praticamente todas as semanas, quando nos dirigia o círculo breve.

A sua alegria e a sua paz eram as de quem repetia – e vivia – todos os dias um ato de abandono a Deus, que aprendera de Mons. Escrivá de Balaguer e que o ouvi dizer muitas vezes: «Senhor, meu Deus, nas Tuas mãos abandono o passado e o presente e o futuro, o pequeno e o grande, o pouco e o muito, o temporal e o eterno».

Muitas vezes, especialmente nos últimos anos da sua vida, ouvi-o contar – numa tertúlia qualquer, por ocasião da notícia de um falecimento, etc. – que dizia ao Senhor todas as noites que aceitava morrer: «quando quiseres, onde quiseres e como quiseres». Em várias ocasiões costumava acrescentar que, depois de dizer essa oração «fico um pouco assustado», e que lhe passava acrescentando «desde que esteja nas Tuas mãos». Também nos disse muitas vezes que desejava que lhe administrassem os últimos sacramentos, quando chegasse a hora certa, mesmo que não tivesse a oportunidade de solicitá-los.

Acho que a mortificação mais constante – e difícil, sobretudo nos últimos anos – foi o cumprimento do horário, do trabalho, do despacho de assuntos de governo, atenção às visitas – de famílias, de eclesiásticos para almoçar, etc. – porque nos parecia (assim o notávamos os que estávamos mais próximos) fisicamente consumido e exausto: chegava aos momentos de tertúlia muito cansado, quase arrastando-se, embora sempre a sorrir, cheio de paz e bom humor. Quase nunca o víamos eximir-se da menor das obrigações: por exemplo, nunca deixava de se levantar à hora marcada para ir à meditação com todos. Lembro-me apenas de uma exceção: nos dias que se seguiram à beatificação do nosso fundador, os Custodes obrigaram-no a ficar na cama, porque estava verdadeiramente exausto.

Em 22 de maio de 1992, após a beatificação do nosso fundador, os seus restos sagrados foram trasladados para o altar da igreja prelatícia. A partir desse momento, o túmulo da cripta ficou vazio, mas a laje que o cobriu permaneceu, com a inscrição que lembrava o nosso fundador. D. Álvaro pensou – de acordo com o Conselho Geral – que os seus restos mortais poderiam repousar naquele mesmo lugar quando chegasse a hora, mas que essa laje era uma relíquia, que muitas pessoas a tinham beijado, e que seria conveniente deixá-la intacta e preparar algum texto que explicasse essa situação. No final de 1992, preparámos um texto possível, para aprovação de D. Álvaro: lembrava-se que o nosso fundador tinha estado enterrado naquela cripta em tais datas; que tinha sido um destino de peregrinação para multidões de pessoas; e que se tinha deixado ali como recordação. D. Álvaro aprovou o texto da inscrição com as devidas correções, e quando no-lo entregou aprovado, disse-nos – com o seu humor e simplicidade característicos, de modo castiço –: «e quando eu morrer, podem acrescentar: e agora jaz aqui uma pessoa qualquer». E assim se fez, mas não com a fórmula castiça, mas com a que tinha sido aprovada.

Fé com obras

O Beato Álvaro del Portillo sentiu muito a sua responsabilidade como pastor que deve zelar pela integridade da fé dos seus filhos e de todas as almas. Na sua pregação, nas suas conversas pessoais e nas medidas que tomou para preservar a fé dos membros do Opus Dei, notou-se esta sua responsabilidade enquanto esteve à frente da Obra. Deu a conhecer imediatamente as encíclicas que o Romano Pontífice escreveu, em particular as Redemptor hominis (1979), Dives in misericordia (1980), Laborem exercens (1981), Dominum et vivificantem (1986), Redemptoris Mater (1987), Sollicitudo rei socialis (1987) Centesimus annus (1991) e Veritatis splendor (1993): fez com que fossem estudadas e explicadas em todos os centros da prelatura; e que os fiéis da Obra organizassem simpósios, conferências e publicações para difundir a doutrina.

Posso dizer o mesmo de outros documentos, como o da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a teologia da libertação. Em particular, teve grande preocupação para que a fé na Sagrada Eucaristia fosse mantida viva e operativa. Na década de 1980, contaram-lhe um episódio sobre uma pessoa, supranumerária do Opus Dei: esta senhora tinha visto na sua paróquia que um padre tratava o Santíssimo Sacramento com pouca dignidade: permitia que os fiéis recebessem a comunhão diretamente e abandonava o cálice numa mesinha para que os fiéis daí bebessem. A pessoa em questão advertiu simpaticamente o padre, que a princípio não prestou atenção; depois fez-lhe ver que a toalha da mesinha estava salpicada de gotas do Sanguis e ofereceu-se para limpá-la e trocá-la. O padre concordou. A senhora teve a ideia de desagravar pelos factos, colocando a toalha numa moldura na melhor sala da sua casa, com a inscrição do Adoro Te Devote: cuius una stilla salvum facere totum mundum quit ab omni scelere (do qual uma só gota pode salvar do pecado todo o mundo). D. Álvaro comoveu-se durante vários dias com a fé e a devoção eucarística daquela pessoa: e em várias visitas de bispos que recebeu, contou-lhes isso, dizendo-lhes nalguns casos – ouvi-o expressamente –: «Senhor Bispo, se não tratamos bem a Sagrada Eucaristia, não temos o direito de ser bem tratados pelo Senhor». Acrescento que D. Álvaro ficou muito feliz ao saber que o padre em questão tinha mudado de atitude em relação ao Santíssimo Sacramento.

A sua fé na presença do Senhor na Eucaristia era tão viva, conatural à sua pessoa, que se traduzia e se manifestava espontaneamente, com força e clareza convincentes e contagiantes. Muitas vezes o ouvi dirigir-se ao Senhor no sacrário com as palavras concretas: «Creio, Senhor, que estás aqui com o Teu Corpo, o Teu Sangue, a Tua Alma e a Tua Divindade».

Um pormenor que notei: fazia sempre as genuflexões ao centro, olhando para o sacrário, e devagar. Via-se que fazia um ato de adoração. Numa temporada do ano de 1980, D. Álvaro viu-me chegar de manhã ao oratório, com certa pressa: e indicou-me delicadamente, mas claramente, que eu não podia ajoelhar-me na diagonal e tão depressa, para ir ao lugar onde me dirigia. Impressionou-me; e vi como ele o fazia, mesmo quando já estava a chegar aos 80 anos e a dificuldade física com que se ajoelhava era visivelmente percetível. Da mesma forma, naquele ano letivo de 1980-81, D. Álvaro assistiu a uma Missa que eu celebrei (talvez tenha sido uma Missa de sufrágio pelos fiéis defuntos, a que só ele assistia). Com carinho também, disse-me que eu deveria pronunciar as palavras da consagração mais devagar, percebendo o que estava a dizer e manifestando mais claramente que é o momento da transubstanciação.

O seu amor pela Sagrada Eucaristia estava incorporado na sua vida, como demonstra também este episódio: nos anos 80, um sacerdote búlgaro, que tinha conhecido o Opus Dei e lido os escritos de S. Josemaria, chegou a Roma com o desejo de rezar perante os seus restos mortais. Era um sacerdote que tinha sofrido uma dura perseguição e estava particularmente emocionado em Roma. Pediu para conhecer Mons. del Portillo, que o recebeu com grande prazer; o sacerdote quis ter um pormenor com ele, dando-lhe alguns frascos de essência de rosa, feitos à mão, que eram típicos da sua terra. D. Álvaro agradeceu o pormenor e chamou o diretor para que fossem passados para a Administração que cuidava dos oratórios, indicando que todos os sábados, quando se renovasse o Santíssimo Sacramento, retirassem a essência, para deitarem uma gota nos corporais novos que se usavam. Pormenores desse género indicam como o seu coração estava ligado ao sacrário.

Também me lembro da sua devoção aos Santos Anjos, em particular, aos Santos Anjos da Guarda: no início e no fim dos momentos de oração diária, fazia uma invocação ao seu Anjo da Guarda. Nas bênçãos de viagem que nos dava, que de vez em quando, quando saíamos de Roma, terminava com a invocação aos Anjos da Guarda: et Angeli eius committentur tecum (e que os seus anjos te acompanhem). Muitas vezes, ao cumprimentá-lo, dava-me um abraço ou fazia-me a cruz na testa, e costumava dizer-me que me confiava ao meu Anjo da Guarda. Nalguma ocasião, cumprimentando-me ou dando-me a bênção, pôs as mãos sobre a minha cabeça, dizendo-me que – além de confiar-me ao meu Anjo da Guarda – me confiava ao Anjo da Guarda da minha mãe, «porque – explicou – vem-me à memória a operação que acabam de fazer à cabeça da tua mãe». Também costumava confiar aos seus Anjos da Guarda as pessoas que recebia ou via: disse-me isso em mais de uma ocasião, e eu percebia-o de cada vez que o encontrava ou o cumprimentava.

Leu e meditou muitas biografias de santos e muitos de seus escritos espirituais: posso afirmar, por exemplo, que conhecia muito bem Santa Teresa de Jesus, S. João da Cruz, S. Francisco de Sales, Santa Catarina de Sena, S. João de Ávila etc., e naturalmente S. Tomás de Aquino. Como detalhes significativos, lembro-me também que fazia com que invocássemos o seu santo, o Beato Álvaro de Córdoba, na ladainha; e que quis celebrar a sua Missa Nova no dia 28 de junho, pela sua devoção a Sto. Ireneu, por ser um «nome de paz».

Pessoalmente, posso dizer que me ficou especialmente gravada a pregação de 8 de setembro de 1985, na qual nos falou sobre o nunc coepi (agora começo), sobre a necessidade de começar e recomeçar na luta ascética, com renovado espírito desportivo e apoiado na graça de Deus: haec mutatio dexterae Excelsi (a mudança que é obra da mão direita de Deus), acrescentava. Vi todas estas ideias, que aprendera com o nosso fundador e repetiria muitas vezes, transformadas na sua vida dia após dia: cada jornada, desde o início da manhã, com um renovado entusiasmo de se entregar a Deus para cumprir a Sua vontade em coisas pequenas e quotidianas, com vontade de servir, com amor cada vez mais jovem, sendo e fazendo o Opus Dei. E tudo isso com um sorriso, com uma paz e uma alegria que convidavam a segui-lo. Transmitia esta mesma impressão de esperança serena, de luta para alcançar a santidade, em todos os meios de formação que dava em Roma e nos numerosos encontros que teve pelo mundo: esse ardor que produzia nas almas vinha de uma pessoa que estava muito perto de Deus. Recordando, talvez, a sua formação como engenheiro, repetia muitas vezes uma ideia para a luta interior e para o apostolado, que anotei em maio de 1989: «quanto maior a dificuldade, mais graça de Deus. O quociente desta divisão é a boa vontade. Essa, sim, temos que a dar inteira».

Frase de Álvaro del Portillo
O Pe. Iñaki guarda algumas lembranças, como este papel em que o bem-aventurado Álvaro lhe pede para falar sobre um assunto com ele.

Humildade sobrenatural

Quanto à delicadeza com que compatibilizava a sua humildade com a firmeza para dirigir a Obra, presenciei o seguinte acontecimento: D. Álvaro sempre enviava os seus escritos ao gabinete de direção espiritual, para que fossem revistos, caso houvesse algo a explicar, mudar etc. Em 1980 recebi um texto da sua pregação oral, que ia ser publicado. Sem pensar muito, propus suprimir uma frase em que dava uma indicação litúrgica sobre a celebração da Santa Missa: especificamente a conveniência de ler os textos, sem se limitar a recitá-los de cor. Quando D. Álvaro leu isso, ele, que geralmente aceitava tudo o que lhe sugeríamos sem reservas, fez-nos ver com firmeza que isso não estava bem, porque aquela frase era uma ideia do nosso fundador. Tinha toda a razão e imediatamente percebemos a nossa ligeireza. Naquela mesma tarde, D. Álvaro deu-nos o círculo e, em determinado momento, diante de todos, pediu perdão, porque se zangou ao fazer aquela advertência, dizendo – com uma humildade cheia de naturalidade – que era muito soberbo.

Enchia o seu trabalho com atos de amor a Deus, com jaculatórias. Rezava pelas pessoas que havia por trás dos papéis. Usava vários truques que serviam de lembrete para manter a presença de Deus, que variavam de acordo com os tempos litúrgicos, as datas comemoradas etc. Uma jaculatória muito sua, que ouvimos – glosada – na meditação de 7 de julho de 1978, foi «Senhor, obrigado, perdão, ajuda-me mais» que de algum modo resumia a sua relação com o Senhor e constitui o centro da mensagem que o Papa Francisco enviou para leitura durante a cerimónia de beatificação de D. Álvaro em 2014.

À noite, antes de descer para a tertúlia, que era às 21h30m, terminava o trabalho que estava a fazer e, de joelhos, rezava uma pagela com a oração a S. Josemaria, com Pai-nosso, Ave-maria e Glória. Rezei com ele muitas vezes quando, por alguma razão, eu estava a trabalhar ou despachar com ele naquele momento.

Nos momentos de tertúlia que tínhamos com ele, depois do almoço e depois do jantar, víamo-lo – e cada vez mais nos últimos anos – imerso em Deus, recolhido, sem deixar de prestar atenção à conversa e às pessoas: sempre que lhe contavam algum facto de apostolado, ouvíamos repetir em voz baixa: “graças a Deus!” E quando lhe falavam de favores concedidos por intercessão do fundador do Opus Dei, no meio de uma alegria que ele não sabia reprimir, repetia, também em tom de voz baixa, rezando e ajudando-nos a fazê-lo: «Como o nosso Padre está ativo! E eu? Que faço?».

A sua única ambição era servir a Igreja, buscar a glória de Deus e o bem das almas. Todas as semanas, comentando uma pergunta do exame de consciência que é feito dentro do círculo, costumava fazer um comentário específico, deste tipo: «que loucura buscar a glória humana! Depois de deixar tudo, seria loucura que nos procurássemos a nós mesmos».

D. Álvaro não se importava nem um pouco com a glória dos homens, nem com as ambições da terra. Não se deixava influenciar pelo juízo dos homens, nem com a possibilidade de ficar bem ou mal diante deles, quando se tratava de cumprir a vontade de Deus. Lembro-me de alguns detalhes que confirmam o que digo. Durante anos foi consultor da Congregação para a Doutrina da Fé: sei que recebia muitas e difíceis tarefas e que todas as segundas-feiras ia à Congregação, apesar do grande trabalho que tinha. Nunca o ouvi falar do seu abundante trabalho (devem ser muitas páginas de pareceres, votos etc.), nem do prestígio que tinha, nem dos possíveis resultados do seu trabalho (sem dúvida colaborou significativamente nalguns documentos da Santa Sé). Como se sabe, depois de muitos anos de trabalho para a Santa Sé (desde 1948, quando chegou a Roma, em diferentes cargos: Congregação para os Religiosos, consultor da Congregação para a Doutrina da Fé, secretário de uma das Comissões do Concílio Vaticano, etc.), não recebeu nenhuma honra, distinção ou nomeação: nem mesmo como Prelado de Honra. Pois eu nunca lhe ouvi o menor comentário sobre este assunto. Não deu a mínima importância a isso. Após a sua nomeação como Prelado do Opus Dei, em 28 de novembro de 1982, passou a usar as vestes e insígnias que correspondiam à sua condição. Um eclesiástico que talvez não compreendesse bem a figura do prelado, fez algum comentário surpreso. D. Álvaro, sem se sentir nem um pouco magoado ou humilhado, fez a consulta pertinente e seguiu a indicação recebida.

A partir de 1983, todos os anos no mês de junho, o Santo Padre João Paulo II conferia o sacramento da Ordem a um numeroso grupo de diáconos. Por sua indicação, um bom número de fiéis da prelatura uniu-se a essas ordenações. D. Álvaro assistia a estas ordenações, com as vestes prelatícias, mas entre os sacerdotes: com plena alegria e simplicidade, ia com os outros sacerdotes para impor as mãos aos ordinandos. Muitas pessoas me comentaram como era surpreendente que o prelado somente fosse mais um entre eles, e consideraram isso uma humilhação para ele. No entanto, D. Álvaro nunca considerou dessa forma, nem fez a menor menção ao assunto: pelo contrário, comentou sobre a alegria que sentiu ao poder colocar as mãos sobre os novos sacerdotes, depois do Romano Pontífice.

Considerava-se apenas um instrumento do Senhor, não buscando a glória pessoal. Pedia constantemente orações pela sua pessoa, sentindo a responsabilidade da sua tarefa e pelos dons que recebera de Deus, em particular os anos junto ao fundador, e com a convicção de que não retribuía o suficiente ao Senhor: estava muito consciente do “redde rationem villicationis tuae (dá-me contas da tua administração)” do Evangelho, que o fazia viver um espírito de contrição e ao mesmo tempo um empenho pessoal constantes. Isso traduzia-se em qualquer momento da sua conversa: quando surgia um assunto sobre a ação da graça nas almas, sobre favores concedidos por intercessão do nosso Padre etc., era instintivo que ele se perguntasse em voz baixa: «E eu que faço?», examinando a sua menor correspondência com os dons de Deus.

Quando recebeu a ordenação episcopal em 1991, com quase 77 anos, recebeu a nomeação com alegria, porque sabia que não era um reconhecimento de si mesmo, mas do prelado do Opus Dei.

Oração pessoal, esperançada e otimista

Ouvi muitas vezes a sua pregação: era uma oração pessoal, dialogada com o Senhor. Frequentemente dirigia-se à Santíssima Virgem. Fazia-o da cátedra do oratório de Pentecostes, na sede do Opus Dei em Roma, olhando o sacrário e o retábulo com a cena da vinda do Espírito Santo. A meia hora que durava consistia em abrir o seu coração em constante diálogo com o Senhor, instando-nos a seguir a pauta que nos marcava, cada um procurando também dialogar com o Senhor. Naqueles momentos, via-se claramente o amor de Deus que abrigava no seu coração, o que o levava a buscar a união com Ele ao longo do dia, a cumprir amorosamente a Sua vontade, a dar-se cada vez mais ao serviço da Igreja, dos seus filhos e de todas as almas. Era assistir a um diálogo de um apaixonado, que se espraiava com o seu Amor.

«Faz-me muito bem – disse-nos certa vez –, e procuro levá-lo à oração todos os dias, pensar nos milagres que o Senhor realizava: como a multidão se amontoava para tocar pelo menos as Suas vestes: só com isso ficavam curados das suas doenças. Mais tarde, o mesmo aconteceu com S. Pedro: o povo amontoava-se para que, pelo menos – lemos nos Atos dos Apóstolos – a sombra do apóstolo passasse diante deles, e assim curasse as suas doenças».

Numa reunião nos anos 80, falando sobre assuntos atuais, alguém comentou – como notícia na imprensa – que o Banco Mundial havia negado créditos a certos países, porque estavam insolventes... e quem contou acrescentou que via isso como lógico. Muito naturalmente, D. Álvaro passou para outro nível: «Bem, se Deus fizesse isso connosco, coitados de nós, que somos tão devedores e insolventes».

Nas muitas conversas breves, de vários tipos, que pude ter com ele, com a sua simplicidade e naturalidade, colocava o interlocutor diante de Deus, do amor de Deus, da vida sobrenatural. Sei que as suas conversas com muitas pessoas – alunos do Colégio Romano, pessoas que vinham vê-lo, etc. – deixavam uma marca profunda do amor de Deus. Tenho testemunhos abundantes de pessoas que, mesmo depois de muitos anos, conservam na memória e no coração as palavras e o efeito que uma conversa com D. Álvaro teve sobre elas.

Um facto a que se referiu ao regressar da sua viagem a Częstochowa em agosto de 1979 reflete a naturalidade e a simplicidade com que qualquer detalhe quotidiano o conduzia a Nossa Senhora. Referiu-se à conversa dos seus filhos para recuperar as passagens aéreas como lembrança da viagem: pediu-as à funcionária do aeroporto, argumentando que aquelas passagens tinham um valor histórico. Então a senhora que o atendeu pensou que havia assinado um acordo comercial ou algo semelhante. «Se é uma coisa histórica – comentou ela – deve ter sido um contrato muito importante». E D. Álvaro acrescentou: «Penso que é verdade: fizemos um contrato com a Santíssima Virgem. Fomos estar com ela e dizer-lhe: todo o Opus Dei é para ti, e cada um de nós também, totus tuus!, para ti as nossas orações, as nossas mortificações, o nosso trabalho, para que o apresentes a Deus. Ela, em troca, põe-nos sob o seu manto, protege-nos, ilumina-nos e leva-nos para a frente».

D. Álvaro sentia uma predileção especial pelos doentes, fracos e necessitados: todos os anos, por exemplo, quando ia a Pamplona por algum motivo (académico, médico...), visitava os doentes que se encontravam na Clínica Universidad de Navarra, principalmente as crianças. Levava-lhes um grande consolo, paz e sentido sobrenatural. Posso confirmar isso, muito concretamente, por causa da visita que fez em setembro de 1990 a uma das minhas irmãs, hospitalizada por uma doença grave, da qual viria a falecer dois meses depois. Da mesma forma em 1981, a minha mãe passou por uma difícil operação cirúrgica: muitas vezes me perguntou por ela, pela sua saúde etc.; e de cada vez que me via, interessava-se por ela. Já disse acima que, quando me deu a sua bênção, colocando as mãos sobre a minha cabeça, acrescentou que se lembrava dela, que tinha sido operada a um tumor no cérebro, e do seu Anjo da Guarda.

D. Iñaki despide a don Álvaro, el 21 de septiembre de 1975
D. Iñaki junto a D. Álvaro, no dia 21 de setembro de 1975

Coração de amigo, de Pai... e de filho

Nunca o ouvi criticar ou falar mal de ninguém. Em muitas ocasiões conheceu pessoas ou situações cujo comportamento não era correto – de conhecimento público, ou tinham caluniado ou sido injustas: se essas questões surgiam numa conversa, D. Álvaro sempre desviava o assunto, desculpava e terminava dizendo que tínhamos que rezar mais, e aí acabava a conversa.

No dia em que o meu pai morreu (12-II-1982), ligou-me imediatamente, incentivou-me com as suas palavras sobrenaturais e afetuosas, e planeou as coisas para que eu pudesse viajar para Espanha para assistir ao velório e ao funeral. Da mesma forma, em novembro de 1990, faleceu essa minha irmã que ele tinha visitado na Clínica em setembro. D. Álvaro estava ausente naquele dia. Ao regressar, dois dias depois, deu-me os pêsames e garantiu-me as suas orações, repreendendo-me afetuosamente por não lhe ter telefonado no dia da sua morte.

Os fiéis da Prelatura escrevem frequentemente ao prelado, e nessas cartas manifestam disposições, problemas etc. Em muitas dessas cartas, D. Álvaro sublinhava a vermelho, na margem, algum parágrafo mais significativo, escrevendo: «rezo por isso» ou «escrevam-lhe em meu nome», para lhe dizer isto ou aquilo.

Tinha muitos amigos com que se relacionou ao longo da sua vida: amigos da juventude, companheiros de profissão... era comum que viessem visitá-lo quando estavam em Roma. Pessoas de todas as condições – eclesiásticos e civis – que conhecia pelo seu trabalho ou outras circunstâncias; em particular, muitos cardeais, bispos e prelados da Cúria Romana. Escrevia a todos eles, por ocasião do Natal, dos seus aniversários..., com autêntico carinho, que se traduzia na oração por eles e um cordialíssimo relacionamento. Sei, por exemplo, que numa viagem à Polónia escreveu de lá 156 postais manifestando a sua lembrança e oração.

Considero que Mons. del Portillo era muito estimado pela sua prudência e pelas suas capacidades de aconselhamento, entre os muitos amigos e conhecidos com que se relacionou, especialmente pelo seu trabalho na Santa Sé. Posso afirmar que todos os bispos ou prelados que acompanhei para visitar D. Álvaro – que os convidava para almoçar – me contaram isso de alguma forma. A maioria ficava uns momentos a sós com ele, no final da refeição, para consultá-lo sobre algo ou simplesmente conversar.

No ano de 1980, recebeu uma carta em que se criticava de maneira um tanto destemperada a maneira de realizar certas tarefas apostólicas. D. Álvaro mandou-me estudá-la, e insisti que o tom do escrito desautorizava o seu conteúdo. Lembro-me que me corrigiu esse ponto de vista, dizendo que, ainda que tivesse um tom inadequado, tudo o que foi escrito tinha que ser levado em conta, caso algo precisasse ser mudado ou corrigido na nossa atuação.

A partir do ano 1982, quando foi nomeado prelado, passou a usar um anel pastoral. Desde 1983 usava um que S. João Paulo II lhe deu. Percebi que, muitas vezes, durante as reuniões, encontros etc., tocava o anel, olhava para ele. Logo descobri porquê, quando o ouvi contar o seguinte episódio da sua audiência com o Papa em 7 de julho de 1984, antes de uma viagem que faria fora de Roma: «Eu disse ao Papa: Santo Padre, antes de ir, quero-lhe pedir um favor: que coloque este anel por um momento. Eu passei-lho, e o Papa colocou-o no seu dedo. Quando me devolveu, expliquei-lhe: este anel dá-me muita presença de Deus, porque é o símbolo da minha união com o Opus Dei. Significa que sou um escravo, um servo da Obra por amor à Igreja e ao Papa. E agora, que o Santo Padre o colocou, também me dará muita presença do Papa. E assim é, filhos: antes constantemente rezava por ele, e agora esse constantemente foi multiplicado por muito».

Na última homilia que lhe ouvi, em 11 de março de 1994, quando fez 80 anos, ouvi estas palavras de agradecimento e piedade: «Agradeço a Deus pelo dom da vida e por me fazer nascer no seio de uma família cristã, em que aprendi a amar Nossa Senhora como minha Mãe e a Deus como meu Pai. Agradeço-Lhe também a formação que recebi dos meus pais – verdadeira piedade, sem pieguice –, que foi a preparação para o encontro providencial com o nosso amadíssimo fundador, que encaminharia o rumo da minha existência. Eu tinha então vinte e um anos. Desde aquele dia de julho de 1935, recebi tantos sinais da bondade de Deus! A vocação à Obra, a formação pelas mãos de nosso Padre; mais tarde, naqueles meses, durante a guerra civil – anos muito duros, em que, por um desígnio divino particular, o Senhor me deu o dom de viver muito perto do nosso fundador, de ser testemunha da sua santidade, da sua união com Deus... Depois, por tanto tempo, tanto, sempre a seu lado, como a sombra que não se separa do corpo. E a ordenação sacerdotal, há quase cinquenta anos».

Vi-o rezar e pedir orações por Espanha, em períodos mais difíceis para a vida cristã, pela paz. Tornou-se italiano com os italianos durante os seus muitos anos em Itália: nas décadas de 1940 e 1950, percorreu muitas cidades italianas (foi Conselheiro de Itália até 1950). Também o ouvi falar carinhosamente sobre o México, inclusive recuperando o sotaque mexicano que ouvia da sua mãe, com um enorme amor. Em todos os países que visitou, disse – e pôde-se comprovar – que se sentia totalmente em casa: via as suas virtudes, as suas qualidades etc., e quando necessário, com a mesma naturalidade e amor fazia ver os possíveis defeitos, sem aceção de pessoas ou nações. Pessoalmente, devo acrescentar que em muitas ocasiões me mostrou a sua afeição pelo País Basco: lembrou-se de alguns dos seus ancestrais, os Diez de Sollano, como nativos de Zalla (Vizcaya), brincava com algumas palavras que conhecia em basco (concretamente, contava até dez em basco; usava o termo ganorabako, que ouvira de uma avó, para significar pessoa desatenta), etc.

Nas vezes que o acompanhei a almoços com convidados, sei que vivia uma dieta e regime alimentar muito rígidos, como os médicos lhe haviam aconselhado. Bebia vinho apenas em raras ocasiões e em quantidades mínimas. Nunca – na época em que o conheci – bebia licores e não comia nenhum tipo de chocolate ou doce. Enquanto acompanhava S. Josemaria, D. Álvaro fumava discretamente. Quando foi eleito Presidente-Geral, abandonou completamente o fumo: seguindo o que ele mesmo às vezes se lembrava de ter ouvido o nosso fundador dizer meio a brincar: que fumar dedecet de munere Patris (destoa da função do Padre). Guardo como relíquia o isqueiro que usava, que ele me deu.

Quase todas as semanas, comentando um ponto do exame de consciência previsto no círculo, lembrava-nos que se preocupava muito com os possíveis gastos supérfluos. Dizia-o, lembrando que no seu tempo se contavam os cêntimos e que agora, ao lidar com grandes quantias, temia que não se tivessem em conta os pormenores, as pequenas quantias, as despesas mínimas.

Ao longo da década de 1950 e início da década de 1960, D. Álvaro teve que dar vários passos para pedir ajuda financeira para a construção dos edifícios de Villa Tevere, sede do Opus Dei: teve que pedir esmolas, como dizia o nosso fundador. Eu sei que, como sempre, muitas vezes teve recusas secas: nunca o ouvi dizer nada a esse respeito. Além disso, anos mais tarde, dir-nos-ia, sem se referir a nada específico sobre ele, que pedir ajuda financeira às pessoas era um apostolado que sempre dava frutos: «às vezes a ajuda sai, outras vezes batem-nos com a porta na cara, e isso é um grande fruto porque oferecemos ao Senhor essa contrariedade».

Um 15 de setembro depois da sua eleição (talvez fosse o ano 1980, embora não me lembre exatamente), o sacerdote que dirigia a meditação mencionou a gratidão que devíamos a D. Álvaro pela sua fidelidade etc. Alguns segundos depois, D. Álvaro – que assistia com todos – interrompeu delicadamente o pregador, dizendo-lhe que não continuasse. Acrescentou que não tínhamos que lhe dar nenhum agradecimento. Continuou a meditação, e falou-nos de gratidão a Deus, a S. Josemaria e da filiação que lhe devíamos etc.

Da mesma forma, no Congresso Geral de setembro de 1983, a assembleia aprovou uma moção de agradecimento a D. Álvaro e não teve outro remédio senão aceitar. Quando chegou o momento de comunicar esta moção do Congresso a todas as Regiões, em novembro, preparou-se uma breve nota com as ideias aprovadas. A nota obviamente passou para a aprovação de D. Álvaro. Era um dever de justiça e filiação por parte de todos. Surpreendentemente para mim, D. Álvaro aprovou o texto sem a menor correção. E anotou na margem com humor e sentido sobrenatural: «Rezai para que o que dizem seja verdade. E que Deus vos perdoe!».