"O dia em que conheci Mário Pacheco"

Em maio de 1992, Maria do Rosário Homem viajou a Roma para ver S. João Paulo II beatificar aquele que viria a ser chamado S. Josemaria. Quando se comemoram 75 anos do Opus Dei em Portugal, recorda uma breve história com o primeiro português.

Conheci o Mário Pacheco num avião com destino a Roma, em maio de 1992. Tratava-se de uma viagem organizada por uma agência e a maioria dos passageiros daquele voo ia assistir à cerimónia de beatificação do Padre, que teve lugar a 17 desse mês.

Sentámo-nos, a minha mãe e eu na última fila, porque nessa altura era possível fumar nos aviões, desde que nos últimos assentos e a minha mãe era uma fumadora inveterada. Por coincidência, sentámo-nos ao lado de um senhor, que tomava o lugar da janela. Era de meia idade, um pouco mais velho do que a minha mãe, de óculos, magro, muito bem vestido, discreto. Viemos a descobrir que tinha muito sentido de humor. Tinha o ar de ser um grande pensador e de facto, o era: tratava-se do Prof. Doutor Mário Pacheco, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Mário Pacheco (à direita) acompanhado de S. Josemaria (ao centro) e Nuno Girão (à esquerda) em 1948

Imediatamente se estabeleceu uma cumplicidade entre o senhor, na altura desconhecido, e a minha mãe, que se sentou ao seu lado enquanto eu tomei o assento do corredor. A conversa entre os dois começou com uma gargalhada comum quando ambos se encolheram ao convite dos organizadores da viagem, que nos queriam nos lugares mais à frente, por razões logísticas, diziam. O professor recusou e disse baixinho à minha mãe "eu só quero que me deixem ficar aqui para fumar”, ao que a minha mãe deu o seu profundo assentimento, pois essa era também a razão de ter escolhido ficar sentada nos últimos assentos do avião. Formaram, desde logo, uma equipa disposta a lutar pelos seus direitos. A organização não insistiu mais com o convite.

Desde esse momento, o senhor desconhecido e a minha mãe começaram uma conversa que durou toda a viagem. Além do bom humor, o professor mostrou-se um conversador exímio, qualquer que fosse o tema, tinha resposta pronta e sempre mostrava interesse por cada tópico levantado, criando cumplicidade com o interlocutor. E assim se passaram as meias horas da viagem.

A conversa fluiu com os “fait divers” da vida. Num certo momento, a minha mãe iniciou uma conversa, a meu ver, embaraçosa, sobre as razões que a motivaram a vir a Roma, assistir à beatificação do fundador do Opus Dei. Gostava muito dele e dos fundamentos da Obra, mas havia gente que não lhe agradava e aproveitou um par de ouvidos atentos para iniciar o seu rol de queixas, de amarguras, de ditas incompreensões. Este senhor ia a ouvir, mostrando interesse, compreensão pelo que ela dizia, tomando de alguma forma, sobre si as dores da minha mãe e sem lhe dar respostas moralistas. Limitou-se a dizer-lhe à laia de desabafo "sabe, na vida temos de ter muita paciência”. E a conversa sobre este tema pouco amigável morreu ali, sem ofensas, e recomeçou o colóquio com a boa disposição e a vivacidade de duas pessoas que pareciam amigos desde sempre.

Mário Pacheco num centro do Opus Dei em Lisboa em 1972
Num momento dado, o senhor perguntou-me o que fazia. Disse-lhe que tinha acabado a Universidade e trabalhava no jornal O Independente. Mostrou-se muito interessado pela minha atividade profissional e senti-me, nesse momento, com o à vontade para lhe perguntar o seu nome e o que fazia. A resposta veio e dou-me conta com espanto que falava com um personagem histórico, o distinto professor Mário Pacheco também o primeiro numerário português da Obra e que tinha sido apresentado ao nosso padre, pelo bispo D. António Antunes, meu primo avô do lado paterno. No entanto, como a minha mãe estava presente, não continuei a conversa com este tema histórico, que teria sido muito útil. Preferi falar-lhe da sua irmã, a Maria Sofia, a quem recentemente tinha feito uma entrevista, com um colega do Independente, por ser a primeria numerária do Opus Dei. Referiu-me que tinha duas irmãs, mas que a Sofia nunca tinha tempo para estar com ele. “Sempre que eu lhe ligo está muito ocupada”, desabafou . Lembro-me de ter feito este comentário, tempos depois à Maria Sofia, que retirou importância à queixa dizendo: "o meu irmão é um sentimental". Troquei com o Mário Pacheco algumas opiniões sobre o jornalismo, ele chegou a responder-me, mais tarde, a uma carta que lhe enviei, mas, infelizmente, não consegui recuperar a mesma.

Nesta alegre cavaqueira a viagem chegava ao fim. A minha mãe perguntou a Mário Pacheco em que hotel iria pernoitar. Respondeu que já estava muito velho para ficar em hotéis e, como tal, lhe tinham oferecido alojamento num Centro da Obra, em Roma. Finda a viagem, saímos do avião na companhia deste simpático senhor, que nunca nos deixou sozinhas. Percorreu os corredores do aeroporto connosco, acompanhou-nos até à recolha das malas, ajudou-nos a retirá-las da passadeira rolante, certificou-se que estávamos bem, que alguém nos levaria a porto seguro. Só nessa altura se foi embora, com os seus amigos que o esperavam há já algum tempo, sorrindo, despedindo-se e agradecendo a fantástica viagem quetínhamos feito juntos..

"Percorreu os corredores do aeroporto connosco, acompanhou-nos até à recolha das malas, ajudou-nos a retirá-las da passadeira rolante" (Photo by Tanathip Rattanatum from Pexels)

Mário Pacheco não era uma figura angélica, mas sim um verdadeiro gentleman. Deixou-nos a impressão de um homem de enorme elegância masculina, com muito charme, educação e bom humor. O meu pai não teria cuidado de nós de melhor forma. Sentimos que tínhamos conhecido alguém fora do comum, dessa rara casta de pessoas que nos inspiram a sair de nós mesmos, a querermos ser seres fantásticos. Mário Pacheco foi alguém que deixou rasto e permanece vivo na minha memória apesar de já se terem passados quase trinta anos desde esta incrível experiência.


Apontamentos sobre Mário Pacheco no livro
“O Fundador do Opus Dei em Portugal” de Hugo de Azevedo (2021)

Por isso – e pela graça de Deus – ainda antes de se abrir a Residência, como apontei acima, pediu a admissão na Obra, em 23 de junho, Mário Vieira do Carmo Pacheco, cursando então Histórico-Filosóficas, e que viria a ser Professor de Filosofia na Universidade Clássica de Lisboa.

Natural do Porto e excelente aluno, tivera inquietações vocacionais após um retiro e confiara-as ao seu diretor espiritual, o notável botânico e piedoso cónego Póvoa dos Reis, que dele falou ao Senhor Bispo de Coimbra, D. António Antunes. Não seria uma vocação para o Seminário?

Para já, não; mas que fosse falar com ele. E assim fez o Mário, obtendo a mesma resposta: que terminasse o curso; e depois se veria; o que certamente aliviou o estudante, apaixonado pelo seu curso académico e sem gosto pela vida monástica ou eclesiástica. E o Senhor Bispo recomendou ao cónego Póvoa Reis que o pusesse em contacto com o Francisco Martínez.

Mário Pacheco já vira aquele «inglês» no CADC (Centro Académico da Democracia Cristã). Imagine-se a sua estranheza quando Francisco Martínez – espanhol, afinal – se apresentou no seu Lar de estudantes, ao Penedo da Saudade, com um cartão de apresentação do seu diretor espiritual! Algo inaudito no ambiente coimbrão!

Mário, cortês como sempre, mas sem perceber nada do que lhe dizia o visitante, com ele conversou, supondo que o tal senhor era da Acção Católica e viera estabelecer contactos com o CADC, enquanto o outro lhe falava de não sei que residências universitárias!

Devia ser um «cristão-novo» da Espanha franquista... Talvez viesse organizar uma frente anticomunista! E, além disso, estranhou aquele apuro no vestir e o cabelo tão bem penteado, algo estranho num homem piedoso...


Fotos: Arquivo da Prelatura em Portugal