O carisma do Opus Dei e a fidelidade de S. Josemaria

Publicamos uma reflexão do Professor Giulio Maspero sobre o carisma desta “família bonita” da Igreja.

Em 22 de julho de 2022 foi tornada pública a Carta Apostólica em forma de Motu proprio do Papa Francisco Ad charisma tuendum. Esta Carta Apostólica saiu depois da reforma da Cúria Romana, decorrente da Constituição Apostólica Praedicate Evangelium de 19 de março, que transferiu a dependência das prelaturas pessoais da Congregação para os Bispos ao Dicastério para o Clero.

O desejo do Papa Francisco é o de favorecer um governo fundamentado no carisma e não só na hierarquia, de acordo com a coessencialidade e correlatividade dos dons hierárquicos e dons carismáticos anteriormente postos em evidência pela Carta da Congregação para a Doutrina da Fé Iuvenescit Ecclesia [1], de 15 de maio de 2016.

O DESEJO DO PAPA FRANCISCO É O DE FAVORECER UM GOVERNO FUNDAMENTADO NO CARISMA E NÃO SÓ NA HIERARQUIA

O Prelado do Opus Dei, Mons. Fernando Ocáriz escreveu imediatamente a todas as pessoas do Opus Dei, manifestando obediência filial: «Gostaria que este convite do Santo Padre tivesse uma forte ressonância em cada um de nós. É uma oportunidade para aprofundar no espírito que o Senhor infundiu no nosso fundador e de o compartilhar com muitas pessoas no ambiente familiar, laboral e social». Mas como aproveitar esta ocasião? Que significa que dons hierárquicos e carismáticos estão relacionados? Porque é importante a missão do Opus Dei?

As pessoas da Obra no ano anterior tinham rezado especificamente pelo projeto de «melhora do impulso e coordenação dos trabalhos apostólicos» e o Motu proprio pode ser lido como resposta a essas orações. De facto, tem como finalidade ajudar os que pertencem à Prelatura a concentrar-se mais sobre o próprio carisma que sobre a estrutura, para «promover a ação evangelizadora que os seus membros levam a cabo no mundo».

AS PAREDES DE UMA CASA NÃO SÃO A FAMÍLIA. É NORMAL MUDAR AS DIVISÕES AO LONGO DO TEMPO

Há duas imagens que podem ajudar. A primeira é a da família. Esta tem necessidade de uma casa, de um lugar onde habitar, onde dormir, onde as crianças cresçam. Mas esse edifício não é a família, que é antes formada por essas pessoas que se amam, se querem bem, ou, pelo menos procuram fazê-lo. Têm necessidade das paredes que protegem este espaço que é o espaço vital, mas as paredes não são a família. É normal mudar as divisões ao longo do tempo, até porque a família cresce. É claro que a casa é importante, que nos define. Quando se vai ter com alguém, a casa diz muito da família que lá mora, por isso S. Josemaria falava de lares luminosos e alegres. Em inglês, por exemplo, distingue-se house de home: este é o lar formado pela família na casa, e não simplesmente o edifício, que é fundamental, mas não é tudo. Ora o carisma constituiu a família, enquanto que a estrutura hierárquica é análoga ao edifício.

A VOCAÇÃO PARA O OPUS DEI É UM CARISMA QUE RECEBEMOS DA NASCENTE DIVINA GRAÇAS À FIDELIDADE DE S. JOSEMARIA

O outro exemplo, muito querido por S. Josemaria, é o do rio, que tal como o anterior, tem um fundamento teológico. O Senhor é Vida, é Pai, Filho e Espírito Santo, que é o Amor mútuo, a própria Vida do Pai e do Filho. E este Amor, esta Vida transbordam no dom, transbordam porque Deus se quer entregar. Poderemos dizer que a Trindade não fica dentro do Amor e da Vida que tem e que é. O mundo, diz Agostinho, é o transbordar da vida íntima de Deus (cf. De Trinitate, VI, 10, 11): o mundo, a história, nós somos amor de Deus que já não está mais dentro e se doa para fora de si, para estar fora de si pelo amor. O nosso Deus é loco de amor, louco de amor. Portanto, este amor, esta vida, como um rio, “como um rio de paz” (Is 66, 12) diz Isaías, desce até nós. É um curso de água que fecunda, transforma, de tal maneira que nas suas margens crescem árvores verdejantes (Sl 1). Mas isto acontece porque há um leito, um espaço que acolhe essa vida, evitando que se desperdice. Não há rio sem nascente, nem rio sem leito.

Assim, a vocação para o Opus Dei é um carisma que recebemos da nascente divina graças à fidelidade de S. Josemaria ao carisma fundacional, compartilhado em parte com os primeiros que o seguiram, que chamava cofundadores. Mas cada membro do Opus Dei tem uma vocação divina que remete para o leito de um rio hierárquico. E o carisma tem precedência relativamente à forma jurídica. Pensemos que antes de ser prelatura, já havia o Opus Dei e era o mesmíssimo no longo itinerário jurídico que caracterizou a sua existência. Deste modo, os sacerdotes da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz pertencem plenamente a esta “família bonita”, como gostava de a chamar o Fundador[2], mesmo sem terem um vínculo hierárquico com ela, mas só associativo. A vocação é única, também para quem acaba de pedir a admissão, e, portanto, do ponto de vista jurídico, ainda não pertence à Prelatura.

O MOTU PROPRIO PODE SE LIDO COMO IMPULSO PARA REDESCOBRIR A VOCAÇÃO PESSOAL, QUE É JUSTAMENTE UM CARISMA

Assim, o Motu proprio pode ser lido como impulso para a redescobrir a vocação pessoal, que é justamente um carisma, como nascente de inspiração da ação apostólica orientada para mudar o mundo. A Obra, em primeiro lugar, é família e rio de vida. O batizado não tem necessidade de pedir licença a ninguém para anunciar Cristo, exatamente porque está identificado com Ele. Por isto S. Josemaria dizia que no Opus Dei à «espontaneidade apostólica da pessoa» se dá «uma importância primária e fundamental». Deste modo, não se pode esperar que qualquer estrutura se encarregue daquilo que só o batizado pode fazer. Trata-se, então, de aprofundar sobre a dimensão laical e secular da vocação para o Opus Dei, em conjunto com o seu conteúdo teologal, confiando cada vez mais na ação da Trindade na história e na própria vida, na esteira de Maria.


Giulio Maspero, italiano, sacerdote da Prelatura do Opus Dei, é professor de Teologia Dogmática na Universidade Pontifícia da Santa Cruz (Roma).

    [1] O documento Iuvenescit Ecclesia ainda não tem tradução portuguesa em www.vatican.va, pelo que se remete para o texto em espanhol.

    [2] N. T.: S. Josemaria Escrivá, nos anos em que residiu em Roma, referiu-se ao Opus Dei com certa frequência com a expressão italiana “una bella famigliola”, que o autor do artigo usa no original.

    Giulio Maspero