A naturalidade é uma virtude que brilha especialmente nos primeiros cristãos. Cidadãos comuns antes de conhecerem o Evangelho, continuavam a sê-lo ao abraçar a fé. A luz de Cristo que se havia acendido em seus corações levava-os a santificar as suas atividades, não a abandoná-las nem a mudá-las. «Não deixamos de frequentar o foro –escreve Tertuliano em finais do século II–, o mercado, os banhos, as lojas, os escritórios, as hospedarias e feiras; não deixamos de relacionar-nos, de conviver convosco neste mundo. Convosco navegamos, vamos à milícia, trabalhamos a terra e de seu fruto fazemos comércio. E vendemos na cidade para vosso uso os produtos de nossos afazeres e fadigas»[1]. «Os cristãos –lê-se noutro documento do século II– não se distinguem dos outros homens, nem pela sua terra, nem por língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam uma língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. [...] Vivendo em cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se quanto ao modo de vestir, ao alimento e ao restante modo de vida aos usos e costumes de cada país, testemunham um teor de comportamento admirável e, segundo todos confessam, surpreendente»[2]. São do mundo sem ser mundanos: vivem com naturalidade cristã.
Nessa vida corrente procuravam difundir a sua fé para realizar a missão apostólica. Faziam-no com tal decisão que o filósofo pagão Celso os acusava de se aproveitarem das suas profissões –sapateiros, professores, lavadeiros, etc.– para semear nas casas e em toda a sociedade a semente do Evangelho[3]. Eram, em suma, cristãos que procuravam plasmar a doutrina de Cristo com os seus afazeres quotidianos e propagá-la nos ambientes que frequentavam, com o seu exemplo e palavra, seguindo o ensinamento do Senhor: «Brilhe a vossa luz diante os homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai, que está nos céus»[4]. As “boas obras”, e não distintivos externos especiais, davam testemunho da sua fé. Atuavam como a levedura que fermenta a massa com naturalidade, sem sair do seu lugar, sem atitudes estranhas que os afastassem dos outros cidadãos honestos e tornassem, assim, ineficaz o seu empenho apostólico.
Este espírito de santificação e de apostolado no meio do mundo é o precedente mais claro da mensagem de S. Josemaria. «Se pretende fazer alguma comparação, a maneira mais fácil de entender o Opus Dei é pensar na vida dos primeiros cristãos. Eles viviam a sua vocação cristã em profundidade, procurando seriamente a perfeição a que eram chamados pelo facto, ao mesmo tempo simples e sublime, de serem batizados. Não se distinguiam exteriormente dos demais cidadãos»[5]. Da mesma forma, quem segue o caminho de santidade que S. Josemaria ensina «são pessoas comuns; têm um trabalho vulgar; vivem no meio do mundo como aquilo que são: cidadãos cristãos que querem corresponder integralmente às exigências da sua fé»[6]. Daí a importância que S. Josemaria atribui à “naturalidade”[7].
Com a normalidade de Jesus em Nazaré
Dum modo geral, a naturalidade cristã é uma virtude que leva a viver coerentemente a fé, comportando-se, nas relações com os outros, cada um de acordo com o que é. Neste sentido, faz parte da humildade.
As suas manifestações externas podem ser diversas, segundo o estado e condição de cada um. Há uma naturalidade própria dos sacerdotes, que os leva a agir de acordo com o seu ministério sagrado, que é um ministério público; há uma naturalidade própria dos fiéis leigos, que consiste em viver coerentemente a fé no seu ambiente profissional e social, dando desse modo testemunho de Cristo, mas não como quem ostenta um ofício público da Igreja, mas conforme a sua condição de cidadãos e de profissionais como os outros.
Quando S. Josemaria fala de naturalidade, refere-se sobretudo a esta última, a dos fiéis leigos. Afirma que «não é necessário, para demonstrar que se é cristão, adornar-se com um punhado de distintivos, porque o cristianismo manifestar-se-á com simplicidade na vida dos que conhecem a sua fé e lutam por pô-la em prática, no esforço por portar-se bem, na alegria com que tratam as coisas de Deus, no entusiasmo com que vivem a caridade»[8]. Como modelo remete para a conduta do Senhor durante os anos de vida em Nazaré: «Comportando-nos com normalidade –como os nossos iguais– e com sentido sobrenatural, não fazemos mais do que seguir o exemplo de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Reparai que toda a sua vida está cheia de naturalidade. Passa seis lustros oculto, sem chamar a atenção, como outro trabalhador qualquer, e na aldeia é conhecido como o filho do carpinteiro»[9].
Quando a naturalidade “choca”
Para compreender bem esta doutrina é preciso ter em conta que o “natural” ou o “normal” para um cristão não é sempre e por princípio “fazer o que todos fazem”, “não chamar a atenção”, “acomodar-se aos costumes dominantes” ... O natural para um fiel corrente é viver integramente a sua fé, sem ostentações impróprias da condição de vida em que Deus o chamou à santidade e ao apostolado. «Naturalidade. – Que a vossa vida de cavalheiros cristãos, de mulheres cristãs –o vosso sal e a vossa luz–, flua espontaneamente, sem esquisitices nem pieguices; levai sempre convosco o nosso espírito de simplicidade»[10]. O cristão não tem que procurar ser “igual aos outros”, se os outros não agem bem; pelo contrário, tem que comportar-se de modo congruente com a sua fé “como os seus iguais”[11] na vida profissional e social, quer dizer, como qualquer cidadão normal que quer ser um cristão coerente.
É lógico que os que se relacionarem com um cristão que busca a santidade no seu trabalho, na sua vida, notem o seu esforço por cultivar as virtudes, advirtam que pratica a fé –participando também no culto público, sem escondê-lo–, e recebam a influência do seu apostolado, embora tudo isto contraste visivelmente com o ambiente que o rodeia. «E num ambiente paganizado ou pagão, quando esse ambiente chocar com a minha vida, não parecerá postiça a minha naturalidade?, perguntas-me. E respondo-te: – Chocará, sem dúvida, a tua vida com a deles. E esse contraste, porque confirma com as tuas obras a tua fé, é precisamente a naturalidade que eu te peço»[12].
Fiéis correntes
Os membros do Opus Dei hão de viver esta virtude como o que são, fiéis correntes ou –mutatis mutandis, sacerdotes seculares–, porque a chamada ao Opus Dei não implica uma mudança no estado e condição de cada um, e não tem, neste sentido, transcendência pública, na vida social ou profissional. A sua entrega a Deus exclui, pelo facto de ser do Opus Dei (não em razão de seu cargo, por exemplo, na sociedade civil –medalhas de mérito, etc.,– ou na militar), manifestações formais e externas como uniformes ou insígnias. «Deves vestir-te de acordo com o tom da tua condição, do teu ambiente, da tua família, do teu trabalho..., como os teus colegas, mas por Deus, com a preocupação de oferecer uma imagem autêntica e atrativa da verdadeira vida cristã. Com naturalidade, sem extravagâncias»[13]. O facto espiritual e teológico da sua chamada a santificar-se no mundo pede a naturalidade: o que seria estranho em qualquer outro fiel comum seria igualmente estranho neles.
O QUE SERIA ESTRANHO EM QUALQUER OUTRO FIEL CRISTÃO COMUM SERIA IGUALMENTE ESTRANHO EM UMA PESSOA DO OPUS DEI.
Daí o critério que S. Josemaria indica: «Tens de viver, como os outros que te rodeiam, com naturalidade, mas sobrenaturalizando cada instante do teu dia»[14]. Os fiéis do Opus Dei, explica em outro momento, vivem «com naturalidade, como qualquer cristão consciente, sem mentalidade de seletos, fundidos na massa de seus colegas, enquanto procuram detetar a luz divina que reverbera nas realidades mais vulgares»[15]. Cada um viverá a naturalidade que lhe corresponde, sem que o ter recebido essa chamada se manifeste mediante sinais artificiais que o diferenciem de seus iguais. Jesus Cristo, sendo o Verbo encarnado, a Segunda Pessoa da Trindade, passou habitualmente despercebido entre seus iguais durante trinta anos. Como S. Josemaria explicava, não há necessidade de que os outros saibam que somos almas entregues a Deus, empenhados em imitar Cristo. Basta que com a nossa conduta coerente e sincera se sintam interpelados a levar uma vida de trabalho e de relações sociais mais de acordo com a sua fé.
Direito à intimidade
Como a chamada ao Opus Dei não implica qualquer mudança de posição ou de status na sociedade, a naturalidade, neste caso, leva também a exigir, quando se apresenta a ocasião, o respeito devido à própria consciência e à intimidade do lar cristão que é o Opus Dei. Parafraseando S. Josemaria, a intimidade da vida não é algo para ir apregoando pela rua: a simplicidade deve ir unida à prudência. É lógico que existam coisas da própria família de que não se fala com estranhos, porque o que é íntimo e querido para uns poderia ser motivo de risos ou de troça para outros. É uma norma de comportamento ditada pelo senso comum, como acontece –ou deveria acontecer– em qualquer família de qualquer sociedade: não se divulga a intimidade da família; o contrário tende para o exibicionismo.
Estas exigências da naturalidade nada têm nada que ver com segredo. «Discrição não é mistério nem segredo. É, simplesmente, naturalidade»[16]. Precisamente porque os fiéis do Opus Dei procuram fazer apostolado em seu próprio ambiente, não ocultam a sua vinculação à Obra. Nas suas relações públicas não se apresentam como fiéis da Prelatura, porque não é um título que diga respeito a essas relações, mas é normal que os seus amigos e colegas a conheçam. A norma de conduta de S. Josemaria é clara: «O segredo repugna-me. Não admito mais que o segredo da Confissão e os que me são estritamente ensinados pela teologia moral, porque têm uma razão de ser»[17].
Enfrenta energicamente as confusões entre a naturalidade e o segredo. Afirma que «a discreta reserva –nunca segredo– que vos inculco, não é senão o antídoto contra a fanfarronice; é a defesa de uma humildade que Deus quer que seja também coletiva»[18]. Seria erróneo interpretar como segredo a naturalidade ou a humildade coletiva. É fácil dispor de abundante informação sobre o Opus Dei e sua história, os nomes dos Diretores e os domicílios e atividades das obras de apostolado, etc., que aparecem na internet[19] e em numerosas publicações, como Romana, o Boletim oficial da Prelatura[20].
O mesmo respeito à intimidade que se tem o direito de pedir, deve ser reservado às consciências dos outros. Certamente, no apostolado é preciso entrar na vida dos amigos –como Cristo entrou na nossa–, mas sempre com delicado respeito à sua liberdade e guardando com lealdade as suas confidências, como também eles devem guardar as nossas.
O silêncio de ofício é um dever de prudência natural e, em muitos casos, de justiça, que não tem motivo para diminuir a simplicidade no relacionamento com as outras pessoas.
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Bibliografia básica
S. Josemaria, Caminho, n. 376-380; Sulco, n. 554-566; Forja, n. 140 e 508; Entrevistas a S. Josemaria, n. 30; Cristo que passa, n. 53 e 148; Amigos de Deus, n. 89-91
Pedro Rodríguez, “Caminho” edição comentada, Quadrante, São Paulo, 2014, comentários aos números 376, 379 e 641.
Ernst Burkhart - Javier López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de San Josemaría. Estudio de Teología espiritual, 3 vols., Rialp, Madrid 2010, Vol. II, Cap. 6, apartados 3.2.2 e 3.2.4.
[1] Tertuliano, Apologeticum, c. 42, 1-3.
[2] Ep. Ad Diognetum, c. V, 1 ss.
[3] cf. Orígenes, Contra Celsum, 3, 55.
[4] Mt 5, 16.
[5] S. Josemaria, Entrevistas a S. Josemaria, n. 24.
[6] Ibid.
[7] cf. S. Josemaria, Caminho, n. 376 ss.; Sulco, n. 555 ss.; Forja, n. 140, 508; Entrevistas a S. Josemaria, n. 119; Cristo que passa, n. 53, 148; Amigos de Deus, n. 89-90; etc. Nas obras publicadas até 2002 fala mais de 40 vezes da naturalidade.
[8] S. Josemaria, em Ernst Burkhart - Javier López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de San Josemaría. Estudio de Teología espiritual, 3 vols., Rialp, Madrid 2010, vol. II, cap. VI, apartado 3.2.2.
[9] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 121. Parece claro que, nestas palavras, “normalidade” equivale a “naturalidade”. Cf. também Caminho, n. 840.
[10] S. Josemaria, Caminho, n. 379.
[11] cf. S. Josemaria, Cristo que Passa, n. 21, 111-112; Amigos de Deus, n. 121.
[12] S. Josemaria, Caminho, n. 380.
[13] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 122.
[14] S. Josemaria, Forja, n. 508.
[15] S. Josemaria, Entrevistas a S. Josemaria, n. 119.
[16] S. Josemaria, Caminho, n. 641. Neste ponto de Caminho e, em geral, no ensinamento de S. Josemaria, a discrição situa-se “na vida dos cristãos comuns, de cidadãos iguais aos outros, que se esforçam por santificar o seu trabalho e por dar testemunho inequívoco da sua fé católica, mas sem ‘publicidade’ e procurando viver secularmente uma ‘vida escondida com Cristo em Deus’ (cf. Col 3, 3)” (Pedro Rodríguez, “Caminho”. Edição comentada, São Paulo, 2014, comentário ao ponto 641). Mais tarde, S. Josemaria decidiu retirar a palavra “discrição” da sua linguagem, para que não fosse mal compreendida (cf. Ibid.).
[17] S. Josemaria, em Ernst Burkhart - Javier López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de San Josemaría. Estudio de Teología espiritual, 3 vols., Rialp, Madrid 2010, vol. II, cap. VI, apartado 3.2.4.
[18] S. Josemaria, em Ernst Burkhart - Javier López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de San Josemaría. Estudio de Teología espiritual, 3 vols., Rialp, Madrid 2010, vol. II, cap.VI, apartado 3.2.4.
[19] cf. www.opusdei.org e www.isje.org (Instituto Histórico S. Josemaria Escrivá).
[20] Em Entrevistas a S. Josemaria, n. 30, o fundador do Opus Dei responde aos que sugeriram que, com a desculpa da humildade coletiva, pretende encobrir segredos. Essa calúnia –assim a qualifica– tem sua origem na dificuldade que alguns encontram para compreender que os membros do Opus Dei são fiéis correntes e que sua incorporação à Prelatura não muda sua condição na Igreja e na sociedade civil. Por isso não se apresentam oficialmente com o título de membros da Obra, nem utilizam distintivos particulares, nem a Obra publica dados e estatísticas acerca de sua vida profissional, familiar o social, dados de que, não dispõe. Nisto não há segredo, apenas adequação à realidade das coisas: respeito ao que representa a vinculação ao Opus Dei. No seu próprio ambiente, com os colegas de profissão ou no círculo familiar e de amizades –quer dizer, onde pode ter relevância para os demais o próprio modo de viver coerentemente a fé cristã–, os fiéis do Opus Dei manifestam com naturalidade sua vinculação à Prelatura (cf. também Entrevistas a S. Josemaria, n. 34 e 41).