Espero tanto de Portugal!

Vivemos nestes dias o 50º aniversário da última visita de S. Josemaria a Portugal. Recordamos as palavras que dirigiu aos seus filhos portugueses nas tertúlias no Clube Xénon em novembro de 1972.

50 anos de S. Josemaria no Clube Xénon

A moradia do Campo Grande 193 não passa totalmente inadvertida. Por fora, pela sua elegância. Por dentro, pelo ambiente familiar num edifício já antigo e exíguo para a atividade que recebe. Um “pavilhão” antigo, velho mesmo, pré-fabricado, faz parte deste espaço. Provisório, diz-se.

No Campo Grande 193 funciona há muitos anos um centro do Opus Dei: o Clube Xénon. Um ponto de apoio para as famílias que desejam para os seus filhos dos 10 aos 18 anos um espaço de estudo, desenvolvimento e diversão, que os ajude a serem melhores pessoas. A orientação cristã e a formação católica que se possibilita aos que o desejam está a cargo do Opus Dei.

Quatro anos após o começo do Clube em 1968, terminaram as primeiras obras de adaptação da sede definitiva e atual. Foi nesse ano, em 1972, que este espaço recebeu várias visitas em dias consecutivos do próprio fundador do Opus Dei: S. Josemaria Escrivá.

De 30 de Outubro a 6 de Novembro de 1972, S. Josemaria esteve em Portugal pela última vez. Completam-se agora 50 anos[1].

O Padre (pai) – como se trata familiarmente a S. Josemaria na Obra – passou por vários pontos do país e esteve em múltiplos encontros com os seus filhos e várias outras pessoas. Mulheres e homens. Leigos na sua maioria, e muitos casais. Pessoas de todo o tipo e feitio. De várias gerações, profissões e condições sociais.

Naquela época, o fundador peregrinava a vários santuários marianos. O próprio comentaria num encontro: «Eu vou muito a Fátima e a outros Santuários marianos da Europa e da América, porque tenho a alegria de amar a Santa Maria e a esta terra de Santa Maria, que é Portugal»[2]. Em destaque estava sempre a petição intensa pela Igreja, que por aquela época atravessava momentos especialmente duros. S. Josemaria pedia, com confiança e constantemente, a intercessão de Nossa Senhora.

– «Padre, posso fazer-lhe uma pergunta impertinente?», perguntara-lhe uma senhora durante uma das tertúlias de Enxomil[3]. – «Todas as que quiseres, minha filha». – «Qual é a jaculatória[4] que o Padre está a dizer ultimamente com mais frequência?».

«Desde antes de sair de Roma… Saí no dia 3 de outubro, e passei por França; depois estive em Espanha, e agora aqui, e não saí da mesma jaculatória. Vou-ta dizer só a ti», responde-lhe, bem-humorado. «Os outros não a ouvem, porque eles não são tão impertinentes. Olha, minha filha: repito à Virgem muitas vezes ao dia, em diferentes tons – uns, de pedido de ajuda; outros, de agradecimento; sempre de amor – “Mãe, minha Mãe!”. Digo-o a Nossa Senhora de Fátima»[5].

No dia 2 de Novembro (depois de passar por Coimbra para estar com a Irmã Lúcia), S. Josemaria esteve em Fátima. Acompanharam-no na sua oração muitas pessoas que se foram aglomerando à sua volta.

Em Lisboa, no Campo Grande 193

No final do dia 2, chegou a Lisboa, onde esteve até dia 6. Várias vezes foi ao Campo Grande, 193. Uma agenda apertada que compaginava com encontros mais pequenos e com visitas às autoridades eclesiásticas.

No dia 4, consagrou o altar do Oratório do Xénon, que estava a ser instalado. Nos dias 3, 4 e 5 decorreram os encontros familiares mais numerosos. Mas que nem por isso deixam de ser tertúlias íntimas em que o pai desta partezinha da Igreja conversa com os seus filhos e os amigos dos seus filhos. Do que eles quiserem. Do que os preocupe, inquiete, alegre ou anime. O Padre ouve e intervém com agilidade; acolhe e anima, compreende e corrige, ri e põem-se sério, recorda e sonha. Com os pés na terra e o coração no Céu. Sim, naquele pavilhão antigo, velho, pré-fabricado. Provisório, mas que ainda lá está. Na altura, novo e a estrear, sem dúvida em melhores condições.

Logo no dia 3 de Novembro, a primeira tertúlia para casais. Tocam-se vários temas relacionados com o casamento, os filhos, a vida profissional, a crise de fé… e um rasgado elogio a Lisboa!

«É um tempo de deslealdade! É um tempo também de santos. Há muitas almas santas no mundo. Seguramente também aqui, e não o sabeis (…). Sim, é certo que é um tempo de falta de fé, e também é tempo de muita fé (…). Se rezarmos (…) o Senhor nos dará a sua graça e passará esta noite escura, esta noite tremenda. Virá a alva, a manhã cheia de sol. Como estes dias de Lisboa, que são uma maravilha! Que cidade, Lisboa! É a capital mais bonita da Europa e, além disso, tendes um sol que concorda com a terra. Assim acontecerá na vida espiritual, se tu e eu rezarmos»[6].

Respondendo a uma rapariga que lhe contava de uma amiga sua, que agradecia à Obra e ao Padre o respeito que manifestavam à sua liberdade pessoal, aproveitou para falar de um tema que lhe era muito caro: «Não podemos agradar a Deus, se não nos sentimos livres. Por isso no Opus Dei amamos tanto a liberdade pessoal. (…) Minha filha, amamos muito a liberdade, muito! Abominamos a coação. Portanto, a única coação que podes fazer é a de rezar por essa criatura, oferecer pequenas mortificações que sejam muito gratas ao Senhor, e Ele derramará tanta graça, que (…) a estarás a ajudar muito. Amai a liberdade! No sobrenatural, o Senhor concedeu-nos um dom soberano: a graça, que nos levanta por cima das misérias da terra. E no humano, não há nada melhor que a liberdade, com responsabilidade pessoal. Porque liberdade sem responsabilidade pessoal é uma liberdade enferma. Eu a chamo libertinagem»[7].

De tarde, encontro com sacerdotes de todo o país. O próprio Padre, canonizado 30 anos depois, ao terminar umas das tertúlias, “pedincha” orações pela sua lealdade pessoal: «meus filhos, peço-vos pelo amor de Jesus Cristo que rezeis por mim. Sou um pobre homem, capaz de cometer todos os horrores e erros da pessoa mais vil. Ajudai-me (…) Rezai por mim, para que faça um bom papel no final da minha vida; não por mim, mas para dar gosto a Jesus e à sua Mãe, Nossa Senhora de Fátima. Rezai por mim, para que seja bom e fiel nestes momentos de deslealdade»[8].

Já na tertúlia com os sacerdotes, anima-os:

«Nunca conheci um sacerdote mau, e devo dizer-vos (…) que houve uma época em que dei retiros a mais de mil sacerdotes, de modo que me conheço e conheço o pano, e não sei de nenhum mau sacerdote, porque lhes tocava o coração a sós, e sempre me respondeu um som de ouro puro, de ouro limpo»[9].

Numa atitude inusitada, mas frequente nele, recebeu de joelhos a bênção dos sacerdotes presentes, e deu-lhes depois a sua.

4 de Novembro: nova tertúlia para casais logo de manhã. Às 5 da tarde, numa cerimónia breve, com unção e piedade, S. Josemaria faz a Consagração do altar do Oratório do Xénon. O único em Portugal consagrado pelo santo fundador. Completam-se agora 50 anos, e nesse local venera-se com especial carinho essa “relíquia”.

«Hoje, dia 4 do mês de Novembro do ano da graça 1972, eu, infraescrito Josemaria Escrivá de Balaguer, consagrei solenemente este altar – onde muitas vezes se renovará de modo incruento o Santo Sacrifício do Calvário – em honra de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos escolheu antes da constituição do mundo para que sejamos santos e imaculados na sua presença, e para que, oportuna e inoportunamente, chamemos a outros à nossa formosíssima batalha de caridade. (…) Enquanto procedia a esta função sagrada, dando graças por todos os seus benefícios, inclusive os desconhecidos, roguei ao Senhor e à Santa Mãe de Deus pela perseverança de todos os fiéis na sinceridade e na verdade, e pela exaltação da Santa Mãe Igreja»[10]

Antes de se dirigir ao nosso pavilhão, onde o aguardam vários rapazes jovens e adolescentes, ainda tem uma brevíssima conversa com alguns membros da Obra na sala de estar. Quanto à tertúlia com os mais novos (alguns deles são os primeiros sócios do Clube Xénon), voltamos ao testemunho do Pe. Hugo de Azevedo.

A tertúlia dos rapazes começou com a pergunta de uma criança que ali se enfiara: - «Padre, eu posso ler o Caminho?» «E quantos anos tens?» «Oito!» Gargalhada geral. «Bravo! Bravo!», animou-o o Padre.

– «Padre, qual é o principal meio para fortalecer a fé?» Como na ginástica: repetindo exercícios, atos de fé… – «Padre, é verdade que há endemoninhados?». Há sim, e de que modo atuam para destruir as almas, as famílias, as nações!... – «Padre, que importância tem a cultura religiosa para os universitários?». Um universitário não se deve conformar com a formação religiosa de outra pessoa que não cultiva a inteligência; precisa de ler livros mais profundos e seguros.

- «Fale-nos da alegria!» - «Não pode estar alegre quem tenha no coração algumas coisas que o envergonhem (…) Um remédio estupendo: a Confissão!» - «Padre, que nos diz da Confissão?» […] E recorda-lhes que Nosso Senhor é um juiz que perdoa sempre os delitos a quem os confessa.

– «Como se pode viver a simplicidade?...» – «Queria perguntar-lhe como podemos ajudar os nossos amigos a terem direção espiritual…» – E como viver a pobreza? – Como ter paz? – Como posso viver a pureza?... – «O que é mais importante para a vida interior de uma pessoa que quer ser da Obra, mas não a deixam?».

– «Quantos anos tens?» – «Treze». Risos. – «Pois é justo que não te deixem! Enche-te de esperança, brinca, diverte-te, reza, sê obediente aos teus pais… e espera. Tens Deus no teu coração; estás inquieto, sentes o amor de Deus (…). Espera, espera, que lá chegarás!».

– «Qual é a diferença entre a verdadeira vocação e um entusiasmo passageiro?» – «Tu mesmo o disseste (…). O entusiasmo é algo fugaz (…). Quando se trata da luz de Deus, não se apaga; há luta, hesitações, mas no fundo do coração fica um remorso, se se quer atraiçoar a chamada. Estás a entender?».

Com o maior à-vontade, os rapazes prosseguiam: «fale-nos do trabalho, fale-nos da amizade, dos respeitos humanos, do apostolado, da liberdade…». A tudo o Padre responde e remata com um apelo à responsabilidade dos estudantes: – «A Nação portuguesa espera que no dia de amanhã presteis os vossos serviços como engenheiros, arquitetos, médicos, advogados… Se vocês não estudaram, que serviço ides prestar? Estais a enganar a todos, e em primeiro lugar a vós mesmos (…). De modo que não é justo deixar de estudar. Causais um dano ao país, a vós mesmos e às vossas famílias. E, no dia de amanhã, a todos os cidadãos»[11].

Ainda nesse encontro, a um que lhe pergunta como deve ser a oração de um cristão universitário, responde: «a mesma que a de um pai de família ou a de um menino de cinco anos. Fala com Deus com toda a tranquilidade, com toda a serenidade. Diz as orações que te ensinou a tua mãe em pequeno, as que ouviste em tua casa, pela noite e pela manhã. Mas quando fores falar com o Senhor no Sacrário, ou quando O recebes na Sagrada Comunhão, diz-lhe coisas tuas. A mim perguntaste-me algo que não está escrito em nenhum livro: saiu-te da alma, do coração. Perguntas pensando: O Padre responder-me-á com carinho, e acertaste. Pois fala assim com o Senhor: sem vergonha, sem procurar as palavras, com naturalidade. Quando estás com um amigo, procuras as frases que sejam mais bonitas? Não, pois não? Expões as coisas simplesmente, como as explicavas há uns momentos. Pois assim, com simplicidade, fala com o Senhor, e farás a oração mais bonita do mundo»[12].

No dia 5, Domingo, com o pavilhão a abarrotar, a última tertúlia com casais. De novo uma enxurrada de perguntas sobre todo o tipo de temas. Oração e fé, Eucaristia, o valor do trabalho, a dor, o amor, o espírito de pobreza, as crises dos filhos adolescentes e mais velhos (e também dos pais!), a direção espiritual, a vocação dos filhos, o papel das avós…

A um que perguntava sobre o que recebem da Obra os que se aproximam dela e os seus membros, dizia: «Recebem formação espiritual, e nada mais. O que venha procurar algo distinto… estaria bem arranjado! (…) Não encontrará outra coisa, e além disso vamos pedir-lhe até a camisa[13], para dá-la aos pobres e servir a Deus… Isto está claro?»[14].

Outro tema recorrente nas suas tertúlias: luta interior. Começar e recomeçar. Com espírito desportivo. O santo não é o que nunca cai, mas o que sempre se levanta, contrito, mais apoiado na fortaleza de Deus. A uma que lhe perguntava como evitar esses altos e baixos, dizia: «com humildade, minha filha. Não temos mais remédio que ir ao Senhor e dizer: Senhor, não sou nada, não valho nada, não posso nada – Acrescenta mais um conjunto de considerações e remata –: Tu vais-te preocupar pelos altos e baixos? Sê humilde. Porque quando te encontres em baixo, dirás: isto é o próprio de mim, Senhor; vá, dá-me o que é próprio de Ti!»[15].

Naturalmente, não é possível reportar aqui todas as respostas e comentários do Padre. Incisivas, bem-humoradas, e cheias de sentido humano e sobrenatural.

Ao terminar, está algum tempo com numerários mais jovens e alguns agregados. Dia 6 ainda passa uma última vez pelo Xénon e está com um grupo da Residência das Avenidas e outros.

* * *

Ao completarem-se os 50 anos da passagem de S. Josemaria pelo Xénon, e ao recordar com gratidão esses dias que inspiraram tantas vidas, a sua passagem por Portugal e os seus ensinamentos inspiram também o futuro.

Um futuro que se constrói hoje e agora, cada dia, e que S. Josemaria ajudará desde o Céu a concretizar. Até o futuro daquele pavilhão antigo, velho, pré-fabricado. Provisório, mas que ainda lá está. Mais tarde ou mais cedo, o pavilhão passará! Os ensinamentos do Padre, esses continuarão a ajudar tantas pessoas que, com equívocos, erros e fraquezas, mas com a ajuda poderosa de Santa Maria e o desejo sincero de melhorar, queremos ser semeadores de paz e de alegria em Portugal e desde Portugal.

«Espero que esta terra de Santa Maria seja o reduto de Deus. Tendes uma história maravilhosa! Portugal foi sempre grande; aqui houve almas extraordinárias, pessoas de uma cabeça imponente, cristãos cabais. Espero tanto de Portugal! E não venho louvar-vos nem lisonjear-vos… (…) Não, não venho a isso. Venho dizer-vos a verdade. E a verdade é esta: tendes a predileção de Nossa Senhora. Já éreis a terra de Santa Maria, mas Ela quis manifestar-se aqui recentemente, porque vos ama de um modo particular. Amo-vos muito, e espero muito, muito, de vós, porque Deus espera muito de Portugal»[16].


[1] Para uma descrição mais completa desta viagem, pode ver-se Hugo de Azevedo, O Fundador do Opus Dei em Portugal – um testemunho pessoal, Lucerna 2021 (capítulo XII).

[2] trad. de uma publicação familiar: Dos meses de catequesis, I, pág. 359.

[3] Casa perto do Porto utilizada para atividades de formação do Opus Dei.

[4] Orações muito breves que se podem ir repetindo com frequência ao longo do dia.

[5] Hugo de Azevedo, O Fundador do Opus Dei em Portugal – um testemunho pessoal, pág. 159, Lucerna 2021 (as notas de rodapé são próprias).

[6] Ibid., pág. 163.

[7] trad. de uma publicação familiar: Dos meses de catequesis, I, pág. 363.

[8] Ibid.

[9] Hugo de Azevedo, O Fundador do Opus Dei em Portugal – um testemunho pessoal, pág. 165, Lucerna 2021.

[10] trad. da Ata da Consagração do altar, que se encontra em Dos meses de catequesis, I, pág. 325.

[11] Hugo de Azevedo, O Fundador do Opus Dei em Portugal – um testemunho pessoal, págs. 168-170, Lucerna 2021.

[12] trad. de uma publicação familiar: Dos meses de catequesis, I, pág. 333.

[13] Alusão gráfica à entrega livre que procuram viver os fiéis da Obra; e à generosidade com que os Cooperadores e outros amigos ajudam as necessidades da Obra.

[14] trad. de uma publicação familiar: Dos meses de catequesis, I, pág. 345.

[15] Ibid., pág. 353 (traduzido do castelhano).

[16] trad. de uma publicação familiar: Dos meses de catequesis, I, pág. 242, palavras num encontro em Enxomil.

D. C.