Entrevista médica nigeriana que recebeu prémio para promoção e igualdade da Mulher Africana 2019

Esta médica nigeriana, que trabalha como voluntária na ONG Komati Foundation em Alexandra, visitou Valladolid para dar a conhecer a estudantes e organizações de mulheres a sua atividade solidária na Africa do Sul. Acaba de receber o Prémio à Promoção e Igualdade da Mulher Africana 2019, atribuído por Harambee.

Recorda-se, por exemplo, de Lerato, uma jovem que diz que lhe roubou o coração. «Cresceu com uma mãe que não existia, que nunca estava, que saía de casa sem saber quando ia voltar. A mãe era prostituta. Lerato tinha irmãos de outros pais e não tinha nenhuma referência em casa». Ou talvez sim. Havia uma. Lerato sabia o que não queria para a sua vida. Sabia que a mãe não era o exemplo que queria seguir. Por isso, empenhou-se na sua educação. Por isso, aproximou-se do projecto 'Art of Living' (A arte de viver). E também por isso, tenta melhorar as notas para conseguir a bolsa que hoje lhe recusam.

«É, sem dúvida, uma das histórias que mais me tocou. Porque é um exemplo claro da razão do nosso projeto», conta Ozó Ibeziako, médica nigeriana que trabalha como voluntária na ONG Komati Foundation em Alexandra, um dos bairros mais degradados de Joanesburgo (Africa do Sul).

«Há aí muitas raparigas que nem sequer sonham em ter uma vida melhor. A sua existência parece destinada à prostituição, à droga, ao crime. No melhor dos casos, a não fazer nada. E as que têm pretensões, deparam-se com sonhos que talvez nunca consigam realizar. A partir da ONG convidamo-las a sonhar, oferecemos ajuda para que os seus objetivos sejam possíveis. Damos-lhes ferramentas para que comecem a mudar o seu modo de ver a vida».

– A sensibilização pelos problemas sociais nasceu quando vivia na Nigéria. Eu tive sorte. O meu pai, que agora tem 91 anos, era médico de família. A minha mãe (78) era professora, diretora de um colégio, trabalhou no Ministério da Educação. Os meus pais inculcaram em mim o poder da formação académica e a paixão pela medicina.

A 16 de dezembro de 1999, Ozó chegou à Africa do Sul. Havia só cinco anos que Nelson Mandela tinha ganho as eleições. Cinco anos em que a profunda ferida do 'apartheid' tinha começado a cicatrizar. O bairro de Alexandra (com cerca de 700 000 habitantes) sofreu nas ruas as consequências terríveis do racismo. «Fica situado exatamente ao lado de um bairro rico, de brancos, onde os negros não podiam entrar durante a política do 'apartheid'. As pessoas que lá vivem tinham vindo das aldeias, de um meio rural em que lhes tinham tirado as terras. Eram forçados a emigrar. Eles, para trabalhar nas minas de ouro. Elas, no serviço doméstico». Milhares de pessoas chegaram a um aglomerado urbano «que não tinha serviços, nem infraestruturas. Não havia água, nem electricidade, nem saneamento. O 'apartheid' só semeou medo e desconfiança».

- É aí que trabalham com a sua ONG.

– Durante estes anos trabalhámos com cerca de quinhentas jovens. Todos os sábados, oferecemos um espaço de acompanhamento com reforço escolar, acampamentos, trabalhos em equipa, programas de voluntariado em lares de idosos. Costumam começar aos nove anos. Estão a meio do caminho escolar, a entrar na adolescência. É um momento crítico em que se costuma produzir o abandono escolar. E é importante acompanhá-las para que não deixem de estudar.

– Porquê?

– A educação é a ferramenta mais poderosa que existe para dignificar a pessoa. É a via para sair da marginalidade. É certo o que se diz que não se deve dar um peixe, mas ensinar a pescar. A educação, a formação, é o melhor caminho para escapar à pobreza.

– E por quê com meninas?

– Educar uma mulher é educar toda a casa... e também a nação. As mulheres, as mães, estão no centro da educação dos filhos. E uma mulher consciente disso tem um grande impacto no futuro de seus filhos. O 'apartheid' provocou, entre outros, danos graves nas estruturas familiares da África do Sul. Ao ser expulsas de suas terras, ao chegar sem nada às cidades, ao ser recluídas em bairros- gueto, muitas famílias ficaram destroçadas. Muitos pais tiveram de abandonar os filhos e os menores foram criados com as suas avós. As meninas pequenas não viam de perto modelos, não tinham referências de mulheres que tivessem escapado desse círculo para conseguir converter-se no que queriam ser.

– Fala de raparigas inspiradoras como Lerato...

– Ou como Rithavile, que cresceu com a avó, na mais pura miséria. Quando se metia na cama à noite, tinha mais fome do que sono. Mas dedicou-se a estudar Medicina. Conseguiu quatro distinções no fim do Secundário. Obteve uma bolsa do Governo. É um exemplo fantástico do que se pode conseguir. Ou Silvia, que começou a estudar Gestão. Ou Unati, que também chegou à Universidade. São casos que nos dão muita satisfação. Exemplos de que as raparigas, se são acompanhadas e apoiadas, podem pretender mais do que a vida lhes parecia ter reservado. É a forma de fazer com que, nuns bairros com delinquência, droga e prostituição, muitas mulheres não percam a sua auto-estima nem os seus sonhos.