Trabalhar bem, trabalhar por amor (5): Trabalho de Deus

"Não vos digo: abandonai a cidade e afastai-vos dos negócios dos cidadãos. Não. Permanecei onde estais, mas praticai a virtude". Dizia-o um santo do século IV e repetia-o S. Josemaria, ao proclamar que na vida corrente, feita de trabalho, nos espera Deus.

S. Josemaria costumava falar da novidade velha da mensagem que recebeu de Deus: velho como o Evangelho e como o Evangelho novo[1]. Velho, pois o espírito do Opus Dei é o que viveram os primeiros cristãos, que se sabiam chamados à santidade e ao apostolado sem sair do mundo, nas suas ocupações e tarefas diárias. Por isso, a maneira mais fácil de entender o Opus Dei é pensar na vida dos primeiros cristãos. Eles viviam profundamente a sua vocação cristã; procuravam seriamente a perfeição a que eram chamados, pelo facto, simples e sublime, do Batismo[2].

O Fundador do Opus Dei enchia-se de alegria ao encontrar nos escritos dos antigos Padres da Igreja traços desta mensagem. As palavras que São João Crisóstomo dirige aos fiéis no século IV são bem claras a este respeito: «Não vos digo: abandonai a cidade e afastai-vos dos negócios dos cidadãos. Não. Permanecei onde estais, mas praticai a virtude. Para dizer a verdade, gostaria mais que brilhassem pela sua virtude os que vivem nas cidades, do que os que foram viver para os montes. Porque disso resultaria um bem imenso, já que ninguém acende uma luz e a põe debaixo do alqueire... E não me digas que: tenho filhos, tenho mulher, tenho que atender a casa e não posso cumprir o que me dizes. Se não tivesses nada disso e fosses tíbio, tudo estava perdido; apesar de tudo isso que te rodeia, se és fervoroso, praticarás a virtude. Só se requer uma coisa: uma disposição generosa. Se existe, nem a idade, nem a pobreza, nem a riqueza, nem os negócios, nem qualquer outra coisa pode constituir obstáculo à virtude. E, de verdade, velhos e jovens; casados e pais de família; artesãos e soldados, cumpriram já quanto foi mandado pelo Senhor. Jovem era David; José, escravo; Áquila exercia uma profissão manual; a vendedora de púrpura estava á frente de uma oficina; outro era guarda de uma prisão; outro centurião, como Cornélio; outro estava doente, como Timóteo; outro era um escravo fugitivo, como Onésimo, e, no entanto, nada disso foi obstáculo para nenhum deles, e todos brilharam pela sua virtude: homens e mulheres, jovens e velhos, escravos e livres, soldados e civis»[3].

«O Senhor quer entrar em comunhão de amor com cada um dos seus filhos, na trama das ocupações de cada dia, no contexto habitual em que se desenvolve a existência» (João Paulo II).

As circunstâncias da vida corrente não são obstáculo, mas sim matéria e caminho de santificação. Com as debilidades defeitos próprios de cada um, somos, como aqueles primeiros discípulos, cidadãos cristãos que querem responder inteiramente às exigências da sua fé[4]. O espírito do Opus Dei dirige-se a cristãos que não necessitam de sair do seu próprio lugar para encontrar e amar a Deus, precisamente porque — como recordou João Paulo II glosando os ensinamentos de São Josemaria — «o Senhor quer entrar em comunhão de amor com cada um dos seus filhos, na trama das ocupações de cada dia, no contexto habitual em que se desenvolve a existência»[5].

Por isso, exclamava o nosso Padre: Ao suscitar nestes anos a Sua Obra, o Senhor quis que nunca mais se desconheça ou se esqueça a verdade de que todos se devem santificar e de que à maioria dos cristãos corresponde santificarem-se no mundo, no trabalho habitual. Por isso, enquanto houver homens na terra, existirá a Obra. Sempre se produzirá este fenómeno: que haja pessoas de todas as profissões e ofícios, que procurem a santidade no seu estado, nessa profissão ou nesse seu ofício, sendo almas contemplativas no meio da rua[6].

Os ensinamentos que São Josemaria transmitiu com a sua palavra e os seus escritos, juntamente com o seu exemplo, constituem um espírito com traços característicos, como o sentido da filiação divina, a contemplação na vida corrente, a fusão de alma sacerdotal e mentalidade laical, o amor à liberdade e a alegria dos filhos de Deus... Estes e todos os outros aspectos dos ensinamentos do Fundador do Opus Dei não são elementos simplesmente justapostos, mas chispas de um único espírito capaz de informar e penetrar todos os momentos e circunstâncias da vida.

Do mesmo modo que uma porta roda com naturalidade à em torno do seu eixo, assim também o espírito da Obra se apoia, como no seu gonzo, no trabalho corrente, no trabalho profissional exercido no meio do mundo[7]. O gonzo não é mais importante do que a porta, mas um elemento que ocupa uma posição singular. Assim como não serviria para nada um gonzo sozinho, sem porta, do mesmo modo não teria sentido — por muito que brilhasse — um trabalho profissional isolado do conjunto, convertido no fim de si mesmo: um trabalho que não fosse eixo da santificação de toda a vida corrente, familiar e social. Mas ao mesmo tempo, o que seria da porta sem o eixo? Para nós, o trabalho profissional e os deveres familiares e sociais são elementos inseparáveis da unidade de vida, imprescindível para nos santificarmos e santificar o mundo a partir de dentro, configurando a sociedade humana segundo o querer de Deus[8].

O nosso trabalho profissional pode ser, efectivamente, trabalho de Deus, operatio Dei, porque somos filhos adoptivos de Deus e formamos uma só coisa com Cristo. O Filho Unigénito fez-se Homem para nos unirmos a Si — como os membros de um corpo estão unidos à cabeça — e agir através de nós. Verdadeiramente, somos de Cristo como Cristo é de Deus[9]. Ele vive e age no cristão através da graça.

São Josemaria pregou incansavelmente que qualquer trabalho honesto se pode santificar — fazer-se santo — converter-se em obra de Deus. E que o trabalho assim santificado nos identifica com Cristo — perfeito Deus e perfeito Homem —santifica-nos e aperfeiçoa-nos, fazendo-nos imagem Sua. É hora de nós, os cristãos dizermos bem alto que o trabalho é um dom de Deus[10]; não um castigo ou maldição, mas uma realidade querida e abençoada pelo Criador antes do pecado original[11], uma realidade que o Filho de Deus encarnado assumiu em Nazaré, onde levou uma vida de longos anos de trabalho quotidiano em companhia de Santa Maria e de São José, sem brilho humano mas com esplendor divino. Nas mãos de Jesus, o trabalho – e um trabalho profissional, semelhante ao que milhões de homens realizam, em todo o mundo – converte-se em tarefa divina, em actividade redentora, em caminho de salvação[12]. O próprio esforço que o trabalho exige foi elevado por Cristo a instrumento de libertação do pecado, de redenção e santificação[13]. Não existe trabalho humano limpo que não possa «transformar-se e âmbito e matéria de santificação, em terreno de exercício das virtudes e em diálogo de amor»[14].

Nas nossas mãos, como nas de Cristo, o trabalho há-de converter-se em oração a Deus e em serviço aos homens para corredenção da humanidade inteira. O Criador tinha formado o homem do barro da terra e tinha-o feito participante do seu poder criador para que aperfeiçoasse a criação, transformando-a com o seu engenho[15]. No entanto, depois do pecado, em vez de elevar as realidades desta terra à glória de Deus por meio do trabalho, o homem frequentemente fica cego e degrada-se. Mas Jesus converteu o barro em colírio para curar a nossa cegueira, de modo semelhante ao que fez com o cego de nascimento[16]. Quando descobrimos que é possível santificar o trabalho, tudo se ilumina com um novo sentido e começamos a ver e a amar a Deus — a ser contemplativos — nas situações que antes pareciam monótonas e vulgares ou se reaslizavam num horizonte apenas terreno, sem alcance eterno e sobrenatural.

Apresenta-se diante de nós um esplêndido panorama: santificar o trabalho, santificar-se no trabalho, santificar com o trabalho[17]. Somos protagonistas do desígnio divino de pôr Cristo no cume de todas as actividades humanas. Desígnio que Deus quis que o nosso Padre compreendesse com uma visão clarividente que o levava a escrever, cheio de fé na graça e de confiança na nossa correspondência: Contemplo já, ao longo dos tempos, até ao último dos meus filhos — porque somos filhos de Deus, repito — actuar profissionalmente, com sabedoria de artista, com felicidade de poeta, com segurança de professor e com um pudor mais persuasivo do que a eloquência, procurando — ao procurar a perfeição cristã na sua profissão e no seu estado no mundo — o bem de toda a humanidade[18].

Oh Deus, quão preciosa é a Tua misericórdia! Por isso os filhos dos homens à sombra das Tuas asas se acolhem (...). Em Ti está a fonte da vida e na Tua luz veremos a Luz[19]. A Santíssima Trindade concedeu ao nosso Padre a Sua luz para que contemplasse profundamente o mistério de Jesus Cristo, luz dos homens[20]; outorgou-lhe «uma vivíssima contemplação do mistério do Verbo Encarnado, graças à qual compreendeu com profundidade que o enredado das realidades humanas se compenetra intimamente, no coração do homem renascido em Cristo, com a economia da vida sobrenatural, convertendo-se assim em lugar e meio de santificação»[21]. O espírito da Obra já iluminou a vida de uma multidão de homens e mulheres das mais diversas condições e culturas, que empreenderam a aventura de ser santos na naturalidade da vida corrente. Uma aventura de amor a Deus, abnegado e forte, que enche a alma de felicidade e semeia no mundo a paz de Cristo[22].

João Paulo II convidou a seguir fielmente o exemplo de São Josemaria. «Seguindo as pegadas do vosso Fundador, prossegui com zelo e fidelidade a vossa missão. Mostrai com o vosso esforço diário que o amor de Cristo pode animar todo o arco da existência»[23]. Contamos sobretudo com a intercessão da Nossa Mãe. Pedimos-lhe a Ela que nos prepare diariamente o caminho e no-lo conserve sempre. Cor Mariae dulcissimum, iter para tutum!, iter serva tutum!


[1] S. Josemaria Escrivá, Temas Actuais do Cristianismo, n. 24.

[2] Ibid.

[3] S. João Crisóstomo, In Matth. hom., XLIII, 5.

[4] S. Josemaria Escrivá, Temas Actuais do Cristianismo, n. 24.

[5] João Paulo II, Alocução na Audiência aos participantes no Congresso "A grandeza da vida corrente", 12-I-2002, n. 2.

[6] S. Josemaria Escrivá, Carta 9-I-1932

[7] S. Josemaria Escrivá, Cristo que passa, n. 45.

[8] Cfr. Conc. Vaticano II, Cons. dogm. Lumen gentium, n. 33.

[9] Cfr. Jo 6, 56-57; XVII, 23; 1 Co 3, 23; Col 1, 26-29; Gal 2, 20; Rm 8, 10-11.

[10] S. Josemaria Escrivá, Cristo que passa, n. 47.

[11] Cfr. Gn 2I, 15.

[12] S. Josemaria Escrivá, Temas Actuais do Cristianismo, n. 55.

[13] Cfr. 1 Cor 6, 11.

[14] João Paulo II, Alocução na Audiência aos participantes no Congresso "A grandeza da vida corrente", 12-I-2002, n. 2.

[15] Cfr. Gn 2, 7, 15.

[16] Cfr. Jo 7, 7.

[17] S. Josemaria Escrivá, Cristo que passa, n. 44.

[18] S. Josemaria Escrivá,, Carta 9-I-1932, n. 4.

[19] Sal 35, 8, 10.

[20] Jo 1, 4.

[21] Congregação para as Causas dos Santos, Decreto sobre o exercício heróico das virtudes do Servo de Deus Josemaría Escrivá de Balaguer, Fundador do Opus Dei, 9-IV-1990, §3.

[22] Cfr. Ef 1, 10.

[23] João Paulo II, Alocução na Audiência aos participantes no Congresso "A grandeza da vida corrente", 12-I-2002, n. 4.

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J. López