Cardeal Tolentino: "Alguém meteu na mão do meu Pai o Caminho" (vídeo e áudio)

"Uma das mais belas memórias que tenho é de ver o meu Pai, recolhido, no seu quarto, a rezar, a ler o Evangelho e os conselhos escritos de S. Josemaria neste livro. E fazia isto dia após dia", afirmou também o cardeal português na apresentação de "Caminho".

Aqui pode ouvir a intervenção do Cardeal Tolentino Mendonça:

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O cardeal português D. José Tolentino de Mendonça disse esta quinta-feira que o ‘Caminho’, de São Josemaria Escrivá, fundador do Opus Dei, é um livro que continua a falar aos leitores, quase 80 anos depois de ter sido escrito.

Em declarações aos jornalistas, na sessão de apresentação da 24ª edição da obra, em Portugal, o arquivista e bibliotecário da Santa Sé afirmou que esta publicação é um livro “clássico” da espiritualidade cristã moderna, mantendo atualidade para os leitores contemporâneos, “cristãos ou não”, em diversos âmbitos.

“Clássico é aquele livro que ainda não nos disse tudo o que tem para dizer”, precisou.

O cardeal madeirense elogiou o carisma próprio do Opus Dei, com “uma espiritualidade muito viva, muito marcante”, destacando o “grande testemunho” que homens e mulheres de vários países dão ao “encontrar Cristo na vida profissional, com uma espiritualidade ligada à vida dos leigos, do mundo”

A nova edição foi apresentada na Universidade Católica Portuguesa (UCP) por D. José Tolentino Mendonça e pela atriz Sofia Alves, a qual disse à Agência ECCLESIA que encontrou no livro de São Josemaria Escrivá ensinamentos e reflexões que fazem parte do seu quotidiano e ajudam a criar “um caminho muito mais seguro”.

Apresentação de Caminho com D. Tolentino e Sofia Alves

O vigário regional de Portugal do Opus Dei, monsenhor José Rafael Espírito Santo, falou à Agência ECCLESIA sobre “um livro que interpela todas as pessoas, porque é fruto de uma vida experimentada, vida de fé”.

O responsável destaca a proposta espiritual de “santificação na vida corrente”, para todas as pessoas, desafiadas a fazer “todo o bem que puderem, contando sempre com Deus”.

“O Caminho é um livro que espelha essa mensagem, interpelando ao diálogo com Deus”, sublinhou.

O sacerdote relatou que recebeu a obra há 50 anos, como oferta dos seus pais, com uma dedicatória: “Para que o Caminho te ajude a encontrar o teu caminho”.

“E ajudou mesmo”, concluiu.

Maria Cardoso, numerária auxiliar do Opus Dei, de 24 anos, destacou, por sua vez, a proposta de santificação “no quotidiano”.

“É muito inspirador para qualquer jovem”, com reflexões que “ajudam a estar em ligação com Deus” e a refletir sobre a missão de cada um, acrescentou.


Pode adquirir "Caminho" online na página de editora Lucerna. Também é possível comprar nas livrarias FNAC, Bertrand e Almedina.

Caminho, fruto do trabalho sacerdotal que S. Josemaria Escrivá tinha iniciado em 1925, aparece pela primeira vez em 1934 (em Cuenca, Espanha) com o título de "Consideraciones Espirituales". Na edição seguinte – realizada em Valência em1939 –, o livro, notavelmente ampliado, recebe já o seu título definitivo. Desde então difundiu-se com um ritmo contínuo e progressivo. Atualmente, publicaram-se de Caminho cerca de 4.500.000 exemplares em 43 idiomas.

Caminho tem um estilo direto, de diálogo sereno, em que o leitor se encontra frente às exigências divinas num ambiente de confiança e amizade. Quando se publicou em Itália, L'Osservatore Romano comentou: «S. Josemaria escreveu mais que uma obra mestra, escreveu inspirando-se diretamente no coração, e ao coração chegam diretamente, um a um, os parágrafos que formam Caminho».


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«CAMINHO», SÃO JOSEMARIA ESCRIVÁ

Partilho, há anos, com São Josemaria Escrivá um afeto do qual ele tem sido também para mim um mestre: o afeto pela figura do burro. Esse que nos seus Ensaios, Michel de Montaigne chamava «animal contemplativo» e em quem Meister Eckhart via uma privilegiada vizinhança com os «pobres de espírito», de evangélica memória, foi, como é sabido, estimadíssimo por São Josemaria, como exemplo para a vida espiritual. No Caminho, ele dedica ao burro dois ensinamentos particularmente tocantes: O número 606: «Olha como é humilde o nosso Jesus: um burrico foi o seu trono em Jerusalém!...» e, mais extenso, o número 998, quase a encerrar o volume: «Bendita perseverança a do burrico de nora! – Sempre ao mesmo passo. Sempre as mesmas voltas. – Um dia e outro; todos iguais. Sem isso, não haveria maturidade nos frutos, nem louçania na horta, nem o jardim teria aromas». São palavras consoladoras sempre, mas em especial naqueles momentos da nossa vida em que nós próprios nos sentimos «ut iumentum», «como um jumento».

Nesta assembleia não falta quem tenha deste precioso texto de espiritualidade cristã que hoje apresentamos um conhecimento, uma familiaridade maturada e uma competência de análise bem superior a quanto eu possa dizer. E que, mesmo assim, tenham tido a benevolência de me convidar para tomar a palavra neste contexto, faz-me repetir interiormente a oração que São Josemaria recomenda noutra obra sua, Forja: «Fizeste de mim o teu burro: não me largues».

Feita esta ressalva, queria agradecer o convite para estar nesta sessão e deixar aqui uma saudação muito cordial à Reitora da UCP, cujo espaço nos acolhe; ao vigário regional do Opus Dei, Mons.Mons. José Rafael Espírito Santo, e na sua pessoa a quantos organizam e participam deste encontro; à atriz Sofia Alves, grato pelo seu tocante testemunho; e à Editorial Lucerna, a quem apresento os parabéns por esta edição, em tradução de Manuel Rosas da Silva, deste clássico moderno da vida cristã, dado à estampa pela primeira vez em Valência, em 1939.

Na minha intervenção, gostaria de me deter muito despretensiosamente sobre cinco pontos. O primeiro prende-se com a génese da obra. Diz muito sobre o que foi o século XX, que algumas das obras filosóficas ou de espiritualidade mais marcantes tenham sido produzidas não numa situação descontraída, que nós pensaríamos indispensável ao desenvolvimento da vida do espírito, mas, pelo contrário, tenham brotado em condições extremas, de sofrimento, de dura perseguição, de escassez e de perigo. Não podemos esquecer aquilo que São João Paulo II rebateu com tanta verdade: o século XX foi um século de martírio. «No século XX, talvez ainda mais do que no primeiro período do cristianismo, muitíssimos foram os que testemunharam a fé com sofrimentos não raro heroicos» (Homilia, 07 de Maio 2000). E assim foi em geral, para a atividade espiritual que é o pensamento e a escrita. Penso em alguns dos textos marcantes do século XX: «A Estrela da redenção», a obra-prima de Franz Rosenzweig, escrita em cartões postais nas impiedosas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, que o filósofo conseguia desse modo expedir à mãe. «A Espera de Deus», considerada uma súmula do pensamento de Simone Weil. A obra não foi organizada por Simone, mas pelo padre dominicano Joseph-Marie Perrin, sete anos passados da morte da autora. Nesse volume que se tornou emblemático, ele reúne alguns ensaios dispersos de Simone e seis longas cartas que esta lhe escreveu, nos primeiros meses de 1942, desde Marselha, pouco antes de partir para o exílio. De facto, a 14 de Maio ela embarcaria para Casablanca, onde esteve com outros 900 passageiros, num campo de refugiados à espera de partir para a América. Tal aconteceria a 7 de Junho, a bordo do transatlântico português Serpa Pinto, que nesses anos ficou conhecido como “o navio do destino”, pois funcionava como a derradeira ponte de esperança para os milhares de perseguidos que tinham de deixar a Europa. É esta a história de «A Espera de Deus». Pensamos ainda no «Diário» de Etty Hillesum, que reúne as anotações do seu processo espiritual no campo de concentração de Westerbork, no norte da Holanda, onde esteve como enfermeira voluntária e depois como prisioneira, antes de ter sido transferida para Auschwitz, em Novembro de 1943. De facto, tantos são os livros do século XX nascidos assim: como uma grande esperança forjada na fornalha de uma imensa dor. O «Caminho» compartilha uma génese equivalente. O livro foi escrito em plena guerra civil espanhola, e São Josemaria vivia primeiro como refugiado no Consulado das Honduras, evadindo-se depois através dos Pirenéus para fora da zona dominada pelos republicanos. O livro seria concluído em Burgos, mas nas condições mais do que precárias oferecidas por pensões modestas e de quartos alugados: a Pensão na Rua de Santa Clara, o Hotel Sabadell e outra Pensão na Rua de Concepción, 9. As fichas com os textos de o «Caminho» eram ordenadas em cima das camas de São José Maria e dos seus companheiros. O santo terá então confidenciado que o seu sonho era poder «dispor de uma mesa tão grande como três camas». Mas não teve então essa mesa. A 28 de Março de 1939, por exemplo, regressaria a Madrid, levando consigo o manuscrito de «Caminho», numa viagem feita num camião. Penso que é útil recordar esta história, porque lembrar as condições de produção destes textos ajuda-nos a interpretá-los e porventura a amá-los melhor. Todos estes livros, e também o «Caminho», têm aquilo que poderíamos chamar um estilo radical. Radical não no sentido de fanático ou caprichosamente intransigente. Radical no sentido que tudo aquilo que vem dito ao leitor foi antes vivido, foi tocado com a mão, provado a fogo.

O segundo ponto prende-se com o processo de redação do volume, que evidencia desde logo uma firme intenção pastoral. De facto, quem lê o «Caminho» apercebe-se imediatamente que ele está estruturado como um conjunto de conselhos dirigidos a um «tu», que está sempre presente. Isso mesmo é assegurado no prólogo programático que abre o volume e que lhe dá o tom: «Lê devagar estes conselhos. Medita pausadamente nestas considerações. São coisas que te digo ao ouvido, em confidência de amigo, de irmão, de pai. E estas confidências são ouvidas por Deus. Não te contarei nada de novo. Vou reavivar as tuas recordações, para que se eleve algum pensamento que te fira, e assim melhores a tua vida e entres por caminhos de oração e de Amor. E acabes por ser alma de critério». Os textos autorrepresentam-se, assim, como conselhos afetuosos, coisas segredadas ao ouvido, confidências que reavivam recordações, mas com uma finalidade pastoral definida: o bem e a maturação cristã deste leitor em relação ao qual o autor se apresenta como amigo, irmão e pai. Ora, a própria história da redação do volume é muito significativa. Os 999 conselhos que compõem a atual versão desta obra não foram escritos de um jato, mas por etapas, num processo que poderíamos definir de sedimentação progressiva. A atual versão é aquela de 1939, mas o seu começo data mais rigorosamente de 1932, com os cadernos de anotações pessoais, que não sendo propriamente um diário estavam recheados de apontamentos do quotidiano apostólico que constituiu o húmus de tudo. «No começo tudo estava nos cadernos», como escreve Pedro Rodríguez na detalhada edição comentada do «Caminho». Surgiram depois os fascículos datilografados «numa máquina de má qualidade» e dos quais se fizeram cópias mimeografadas. O primeiro continha 246 considerações numeradas e tinha por título «Considerações espirituais». Em 1933 surge um outro fascículo com 87 novas considerações. Em 1934 estes fascículos meio improvisados são vertidos em letra de forma num volume editado na antiga tipografia do Seminário de Cuenca. O número de considerações torna aí a crescer. Outras se juntarão em seguida no período que São José Maria viveu como refugiado no Consulado das Honduras, onde se chega ao número de 550 fichas. Muitas delas são extratos de cartas, homilias, encontros e situações primeiro partilhadas em missão apostólica com os universitários que acompanhava espiritualmente, o que confere à nossa obra um forte cunho existencial que nos dá a impressão que a vida está a ser lida por dentro. E efetivamente está. Depois vem a estação de Burgos e o plano de chegar às 999 considerações, uma cifra que é todo um jogo teológico em torno ao número três, o número da Trindade Divina. Este processo editorial paciente, gradual, ao ritmo da história, acompanhando a ação de um pastor, tentando continuamente captar a vontade de Deus e as Suas luzes, recolhendo não raro da oração e da experiência apostólica citação direta descreve bem a natureza desta obra e explica também o impacto vivo, o colorido realista e espiritualmente eficaz que ela tem no leitor, chamado aqui a ser, ou melhor, a tornar-se «alma de critério».

O terceiro aspeto que gostaria de salientar tem a ver com a forma literária. Esta assembleia de leitores ou re-leitores do «Caminho» sabe que o fio da obra não é sistemático, que não nos faz explorar propriamente uma sequência, um plano. Dispõe, sim, os assuntos diferentes do crescimento espiritual numa linguagem franca, existencial, inequívoca e prática, pois pretende ser uma ajuda à maturação interior. A escrita tem um carater fragmentário próprio dos aforismas, das máximas, das pequenas orações, dos ditos, dos apontamentos testemunhais, dos apotegmas. Mas entenda-se bem: fragmentário não quer dizer lacónico, flutuante ou sem norte, como se fossem apenas ociosas peças soltas. «Para que quero eu as peças soltas de um relógio, mesmo que sejam primorosas, se me não dizem as horas?» - escreve São Josemaria. E, de facto, o objetivo do «Caminho» é dizer as horas sempre que nos sentimos «um relógio desarranjado». Por exemplo, o conhecido tópico do «minuto heroico» fala de um ato ascético, de «uma mortificação que fortalece a vontade», mas ao mesmo tempo prepara-nos para realizar um ato profundamente teológico, porque o que está verdadeiramente em causa na gestão que fazemos do tempo é o confronto da nossa liberdade com o juízo último de Deus, nossa hora derradeira. «Então, o homem pecador tem a sua hora? – Sim... E Deus, a sua eternidade!» - escreve o autor. É porque o tempo, cada parcela do tempo, cada unidade mínima do tempo será julgada pela eternidade, que temos de vivê-lo bem.

O «Caminho» é um livro de fragmentos. O fragmento tem uma longa história na literatura (Novalis), na filosofia (de Heraclito e Anaximandro a Pascal e Cioran), na espiritualidade (dos Padres do Deserto a místicos como Angelus Silesius e o Tomas Kempis da Imitação de Cristo). Como explica Roland Barthes no seu «Fragmentos de um discurso amoroso» o fragmento documenta dois movimentos interiores: por um lado, dá-nos a consciência do indizível da experiência do amor, por outro, a impossibilidade de não dizer. Com mais razão tal se aplica ao amor a Deus. É verdade que o fragmento deixa sempre tanto por dizer, mas em São Josemaria ele pretende sobretudo ativar uma moção interior, uma conversa, um itinerário. Como o título «Caminho» indica pretende-se construir um itinerário prático que conduza a nossa existência a Jesus. «Que procures Cristo. Que encontres Cristo. Que ames Cristo. – São três etapas claríssimas» - diz São Josemaria. É verdade que a estrutura em fragmentos (ou conselhos ou pensamentos, como lhe chamemos nós) permite uma extraordinária amplidão temática. E isso constata-se à saciedade nesta obra que é uma iniciação à vida ascética, mas também uma mistagogia, também um devocionário, também uma explanação sobre as virtudes, também um tratado sobre a oração, também uma introdução à liturgia, também uma meditação sobre a infância espiritual, também um filial e emocionado tributo a Nossa Senhora, também uma catequese sobre o chamamento, também um exame de consciência, também um curso de direção espiritual, também uma proposta missionária de apostolado. Mas a obra, bem como a vida de São Josemaria parte desse desejo de nos focar num centro sapiencial bem marcado. O Papa Francisco recordou-o quando anunciou a beatificação do então Servo de Deus Álvaro del Portillo. Com São Josemaria Escrivá, refere o Papa Francisco, «aprendeu a enamorar-se de Cristo sempre mais em cada dia. Sim, enamorar-se de Cristo. Este é o caminho de santidade que deve percorrer todo o cristão» (Junho, 2014). É essa experiência que faz o leitor.

O quarto ponto prende-se com os destinatários desta obra. E queria aqui citar uma passagem de uma entrevista do seu autor ao jornal francês Figaro. Declara São Josemaria: «Não é um livro somente para os sócios do Opus Dei; é para todos, mesmo para os não cristãos». E lembrava então que «entre as pessoas que o traduziram por iniciativa própria, há ortodoxos, protestantes e não cristãos». Parece-me um aspeto mais denso do que possamos supor esta capacidade de falar aos de dentro e aos de fora, transversalmente, esta competência para tocar a todos. É um tópico sobre o qual muito se poderia discorrer. Fico-me apenas pelo seguinte elemento: nós intelectualizamos demasiado a fé. Construímos muitas vezes admiráveis castelos de abstrações. Não é por acaso que a teologia dos últimos séculos tenha ocupado tanto espaço a debater as questões levantadas pelo iluminismo; preocupando-se mais com a credibilidade racional da experiência da fé do que com a sua credibilidade existencial, antropológica e afetiva. Deixámos muitas vezes para trás o ser humano concreto. Esquecemos o que significa ser mestres de humanidade, ser sal da terra, ser luz do mundo. Quem escreveu este livro sabe o que é um ser humano, o paradoxo e a sede que o habitam. Conhece o humano, o demasiado humano e, ao mesmo tempo, o milagre que Deus pode realizar com a nossa humanidade. E sabe que a alavanca é a confiança, esse outro nome para dizer a Fé: «Confia sempre no teu Deus - Ele não perde batalhas».

Percebe-se que aquilo que São Josemaria afirma a propósito do «Caminho» é para levar a sério. Segundo ele, «este livro só seria útil para quem quisesse ter vida interior». «Recolhe-te. – Procura Deus em ti e escuta-O», diz a dada altura. Sim, o «Caminho» não é uma vitrine de curiosidades, ou uma oficina de tiques beatos, ou uma cantilena de esconde-esconde. E o leitor não vem ao engano, pois é bem prevenido: «Santarrão está para santo como beato para piedoso: é a sua caricatura... Não pensemos que vale alguma coisa a nossa aparente virtude de santos, se não estiver unida às comuns virtudes de cristãos». Aqui não se especula, nem se exibe. Escolhe-se antes ativar e por em prática, com um realismo espiritual que não suporta o mortiço, o complacente, o faz de conta. «Dizes-me que sim, que queres. – Está bem. Mas queres como um avaro quer ao seu ouro, como uma mãe quer ao seu filho, como um ambicioso quer às honras, ou como um pobrezito sensual ao seu prazer? – Não? – Então, não queres». Veja-se nesta linha a forma como os capítulos sobre a humildade ou sobre a pobreza são serrotes que serram em nós o politicamente correto ou o postiço. Sobre a pobreza esclarece-se: «Não amas a pobreza se não amas o que a pobreza traz consigo». E sobre a humildade não se discorre teoricamente, prazenteiramente: verga-se o leitor a humilha-se. Não há outra forma de perceber o que a humildade é. Palavras fora de coro? Palavras loucas? Sim, certamente. Mas palavras que nos desnudam sem concessões; palavras que nos expõem na verdade, mas na verdade de Deus, de quem somos filhos amados; palavras que nos mergulham intensamente na escuta do Evangelho, nos ensopam de Evangelho; palavras que não são apenas vento, mas são como dizia São Josemaria «gaitas», «gaiticas», pois soltam o som: o som inconfundível do amor. A última frase de o «Caminho» é justamente: «Enamora-te, e não O deixarás». Lê bem o «Caminho» quem se enamorar de Cristo.

E, para concluir, um quinto ponto mais pessoal. Para um bibliotecário de missão como eu sou, o «Caminho» tem ensinamentos importantes. Diz por exemplo: «A leitura tem feito muito santos». É verdade. E sabemos que há maneiras diferentes de amar um livro e até de o abrir, de o compreender. Podemos amá-lo diretamente, por ele mesmo. Ou podemos descobrir a sua importância por entreposta pessoa, por aquilo que vimos acontecer na vida dos seus leitores. Queria dizer-vos que comigo aconteceu uma graça assim.

Apesar de São Josemaria dar este conselho muito santo, «Acostuma-te a dizer que não», quando o Pedro Gil telefonou para Roma a convidar-me para esta sessão eu disse que sim. E disse que sim, confesso, porque a primeira imagem que me veio ao pensamento, na verdade que o inundou, foi a do meu pai. Era um homem do mar, leu poucos livros, mas os que leu leu-os bem. Lembro-me na história da vida cristã do meu pai a revolução que foi a participação nos Cursilhos de Cristandade. A partir daí ele viveu efetivamente transformado pelo encontro com Cristo. Não sei nesse contexto quem ou porquê lhe meteu na mão uma edição do «Caminho». Mas isso aconteceu. E ele passou a lê-lo todos os dias da sua vida, tinha-o em casa sempre na mesa de cabeceira, levou-o consigo sempre que acontecia uma hospitalização, mesmo que por poucos dias, conservava-o sempre perto de si. Uma das mais belas memórias que tenho é de ver o meu pai recolhido no seu quarto a rezar, a ler o Evangelho e os conselhos escritos por São Josemaria neste livro. Dia após dia. Numa fidelidade quotidiana, repetida, como se nada fosse. «A leitura tem feito muito santos». É verdade. E neste «santo da porta ao lado», que na minha vida foi o meu pai, sem nenhum alarde, sem nunca termos falado disso, o «Caminho» teve um impacto estrondoso. Por isso, é também em nome dele, em nome do meu pai, que vim festejar este livro. E hoje dizer obrigado.

Card. José Tolentino de Mendonça

Fonte: Agência Ecclesia