D. Manuel Clemente: "Com apreço e gratidão - 75 anos do Opus Dei em Portugal"

Palavras do Cardeal Patriarca de Lisboa a propósito do 75 º aniversário do Opus Dei em Portugal, publicadas a 24 de junho no site do Patriarcado.

Associo-me com apreço e gratidão a este momento comemorativo dos 75 anos da presença do Opus Dei em Portugal. Além da amizade que me une a muitos de vós, sacerdotes e leigos, faço-o por razões respeitantes à relação Igreja – Mundo, ao apostolado e ao sacerdócio.
Nestes três pontos podemos considerar São Josemaria (1902-1975) como um dos percursores da eclesiologia dogmática e pastoral presente nas constituições e decretos do Concílio Vaticano II, em cuja receção convictamente prosseguimos.
Numa breve contextualização, resumamos que o modo de compreender e viver a Igreja militante na primeira metade do século passado era de clara predominância clerical e hierárquica, não só na vida espiritual e interna mas também no apostolado social. Embora o “movimento católico” do século XIX tivesse contado com leigos de grande envergadura e influência, mesmo junto de Papas e Bispos, ainda teríamos de esperar muito para que o entendimento do cristão não ordenado ganhasse a consistência e a autonomia que hoje felizmente lhe são reconhecidas.
É neste ponto que releva e muito o pensamento e a ação do Fundador do Opus Dei, quer quanto ao entendimento da vida cristã em geral, quer quanto à identidade específica e à mútua relação entre sacerdócio ministerial e condição laical.
Para ilustrar o que digo dou a palavra a ele mesmo nalguns trechos seus. Podem parecer-nos normais, hoje em dia. Não estou certo de que já o sejam, tanto como deviam ser.

Refere-se o primeiro à condição cristã, comum a todos os batizados, como base e como destino. Oiçamos São Josemaria, num passo já similar ao que o Papa Francisco escreveu décadas depois, na exortação apostólica Gaudete et Exsultate, sobre o chamamento à santidade no mundo atual (19 de março de 2018). Disse São Josemaria: «Uma única é a condição de fiéis cristãos nos sacerdotes e leigos, porque Deus Nosso Senhor nos chamou a todos à plenitude da caridade, à santidade […]. Não há santidade de segunda categoria […]. O Senhor convida todos, para que cada um se santifique no seu próprio estado. […] A santidade não depende do estado – solteiro, casado, viúvo, sacerdote -, mas sim da correspondência pessoal à graça, que a todos é concedida, para aprendermos a afastar de nós as obras das trevas e para nos revestirmos das armas da luz, da serenidade, da paz, do serviço sacrificado e alegre à humanidade inteira» (1).
Estas afirmações de São Josemaria evocam trechos neotestamentários e da melhor tradição eclesial, como a Introdução à vida devota, de São Francisco de Sales, por exemplo. Mas reforçaram a sua atualidade e reproduziram-se na vida daqueles a quem se dirigia.
Assim também noutras palavras suas, tão próximas daquelas que o Concílio tinha dedicado pouco antes ao lugar da Igreja no mundo contemporâneo e ao apostolado dos leigos. Oiçamo-lo, antes de mais sobre a santidade reencontrada nas realidades comuns da vida laical: «Deveis compreender agora – com uma nova clareza – que Deus vos chama a servi-Lo em e a partir das ocupações civis, materiais, seculares, da vida humana. Deus espera-nos todos os dias: no laboratório, na sala de operações, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no lar, e em todo o imenso panorama do trabalho. Ficai a sabê-lo: escondido nas situações mais comuns, há algo de santo, de divino, que vos cabe a cada um de vós descobrir» (2).
Mais à frente, disse ainda, sobre a responsabilidade de cada fiel leigo e a respetiva concretização na sociedade, aliás de modo plural e não unívoco: «Tendes de difundir por toda a parte uma verdadeira mentalidade laical, que há de levar os cristãos a três consequências: a serem suficientemente honrados para arcarem com a sua responsabilidade pessoal; a serem suficientemente cristãos para respeitarem aqueles dos seus irmãos na fé que proponham – em matérias discutíveis – soluções diversas das suas; a serem suficientemente católicos para não se servirem da nossa Mãe, a Igreja, misturando-a com partidarismos humanos. […] E essa cristã mentalidade laical permitir-vos-á afastar-vos de toda a intolerância, de todo o fanatismo. Di-lo-ei de um modo positivo: far-vos-á conviver em paz com todos os vossos concidadãos e fomentar também a convivência nos diversos setores da vida social» (3).
Finalmente, a referência aos sacerdotes, tão identificativa como imprescindível, para acompanharem, com o que lhes é próprio, a vida dos outros fiéis. Relidas meio século depois, as suas palavras parecem-nos bem claras e proféticas no respeitante ao que entretanto sucedeu. Oiçamo-lo ainda uma vez: «Não compreendo o empenho de alguns sacerdotes em se confundirem com os outros cristãos, esquecendo ou descuidando a sua missão específica na Igreja, para a qual foram ordenados. Pensam que os cristãos desejam ver no sacerdote um homem mais. Não é verdade. No sacerdote querem admirar as virtudes próprias de qualquer cristão e de qualquer homem honrado […]. Mas, juntamente com isto, os fiéis pretendem que se destaque claramente o caráter sacerdotal […]. Numa palavra: pede-se ao sacerdote que aprenda a não estorvar a presença de Cristo nele, especialmente no momento em que realiza o Sacrifício do Corpo e Sangue e quando, em nome de Deus, na Confissão auricular e secreta, perdoa os pecados. A administração destes dois Sacramentos é tão capital na missão do sacerdote, que tudo o mais deve girar à sua volta. As outras tarefas sacerdotais - a pregação e a instrução na fé – careceriam de base, se não estivessem dirigidas a ensinar a ter intimidade com Cristo, a encontrar-se com Ele no tribunal amoroso da Penitência e na renovação incruenta do Sacrifício do Calvário, na Santa Missa» (4).
Na altura em que estas palavras foram ditas, era grande o apelo à presença sacerdotal no mundo, não faltando muita generosidade nesse sentido. Aconteceu porém que, por vezes, tal presença pôde diluir a ação dos ministros ordenados e secundarizar aquilo que lhes é próprio. Não faltaram, naturalmente as “crises de identidade” e os abandonos do ministério.
Entretanto, o espaço crescente do apostolado laical, em formas renovadas ou emergentes do seu exercício, bem como o desenvolvimento do ministério ordenado, com a recuperação do diaconado permanente, ou o dos serviços e ministérios laicais, como agora se pretende com o leitorado, o acolitado ou o de catequista – tudo isto dá grande oportunidade e realismo às palavras de São Josemaria, acentuando o que é específico e indispensável no sacerdócio ministerial, centrado na presidência eucarística e na reconciliação sacramental.
Como São Paulo - que também se dedicou à ação caritativa, recolhendo fundos para a comunidade de Jerusalém, e exerceu outros trabalhos, quando precisou de se sustentar a si mesmo -, o padre tudo orientará no sentido sacerdotal, elevando a cada um para Deus. É essa a sua missão e também a sua graça, como disse o grande Apóstolo, escrevendo aos romanos: «Faço-o em virtude da graça que me foi dada: ser para os gentios um ministro de Cristo Jesus, que administra o Evangelho de Deus como um sacerdote, a fim de que a oferenda dos gentios, santificada pelo Espírito Santo, lhe seja agradável» (Rm 15, 15-16). Só assim servirá a Igreja no seu conjunto e a missão no seu todo.
Verifico e agradeço o que o Opus Dei nos tem dado para que tal aconteça, quer pelo lugar próprio que reconhece aos leigos, quer pelo apoio ao ministério sacerdotal, mutuamente complementares e em prol da santificação de cada fiel e do mundo em geral. Creio ser este, sobretudo, o grande contributo que a Obra nos tem dado em Portugal, estando certo de que assim continuará a ser. - Parabéns e obrigado!

Fonte: https://www.patriarcado-lisboa.pt/site/index.php?i...


(1) (ESCRIVÁ, Josemaría - «Sacerdote para a eternidade», homilia pronunciada em 13 de abril de 1973, in Amar a Igreja, Lisboa, Edições Prumo, 1990, p. 70-71
(2) «Amar o mundo apaixonadamente», homilia pronunciada no campus da Universidade de Navarra, em 8 de outubro de 1967», in ibidem, p. 89
(3) Ibidem, p. 93-94
(4) «Sacerdote para a eternidade», homilia pronunciada a 13 de abril de 1973, in ibidem, p. 75-76