A porta do nosso Céu

Estão identificados 50 mil portugueses com perturbações do espectro do autismo, aguardando confirmação de que este número possa já vir a ser superior. A Organização das Nações Unidas (ONU) determinou em 2007 que no dia 2 de abril de cada ano se celebrasse o Dia Mundial da Consciencialização do Autismo. Apresentamos o testemunho de um casal brasileiro, com um filho autista.

Dani, José Álvaro e Marcos

Casámos em 2011, e durante quatro anos vivemos na expetativa da chegada de um filho. No ano de 2014, fomos à Beatificação de D. Álvaro del Portillo, primeiro sucessor de São Josemaria Escrivá. Numa exposição sobre a vida de D. Álvaro, havia um local para colocarmos cartas pedindo a sua intercessão. Pedimos por várias coisas, pessoas e principalmente pela graça de um filho.

José Álvaro chegou em 2015. Unimos a graça alcançada por essa intercessão e a descoberta da gravidez no dia de São José. Foi uma gestação repleta de cuidados, devido a um sangramento logo no início, até ao dia 7 de outubro, dia de Nossa Senhora do Rosário. Durante um exame, nesse mesmo dia, para escutar o coração do bebé, o médico percebeu algo de errado, entrou em contacto com a obstetra e seguimos diretamente para o hospital. José Álvaro estava em sofrimento fetal. Com 34 semanas e cinco dias, nasceu, foi reanimado na sala de partos e foi para a UCI. Foi batizado pelo pai, e na segunda noite de vida, teve sete paragens cardíacas, uma após outra. Naquela noite, ficámos em oração pelo nosso pequeno.

Nessa época o WhatsApp era uma novidade e um grupo de supranumerárias do Rio de Janeiro rezava intensamente, mandando a todo momento estampas de D. Álvaro, mensagens de carinho, de confiança, de conforto. Uma amiga, ao longo de quase dois meses de internamento, dizia-me umas palavras que ajudaram tanto e até hoje são relembradas em diversas ocasiões: “Senhor, estamos nas Tuas mãos e não há melhores mãos para estar”.

Após vários exames realizados e com o quadro mais estabilizado, os médicos da UCI deram-lhe alta e, entre algumas das indicações, pediram que ele fosse estimulado imediatamente, para não ficar com sequelas motoras.

Tudo decorria bem, quando com aproximadamente um ano e meio, a fisioterapeuta que o atendia, pediu para avaliar junto do neurologista um possível quadro de autismo. Ficámos sem chão. Vivemos um luto dos nossos sonhos e expetativas em relação ao seu futuro. Começámos a psicomotricidade, fonoaudiologia, terapia ocupacional, musicoterapia, etc. Hoje sabemos que José Álvaro tem uma paralisia cerebral leve e um autismo secundário.

O horizonte é amplo, cansativo, as lutas são grandes, desafiantes, mas não nos sentimos sós. Deus dá-nos a graça necessária para seguir em frente, para começar e recomeçar.

Temos a certeza de que José Álvaro é a porta do nosso céu. Faz-nos de certeza ser pessoas melhores. É uma criança feliz, inteligente, sensível e tem uma característica marcante que é a de cativar a todos, desde parentes a porteiros, amigos, professores, empregadas, pessoas que frequentam a Missa, pessoas que encontramos na rua, ninguém passa indiferente ao seu lado. Onde está o José? Não veio hoje? Faz falta. Essas palavras fazem parte do nosso quotidiano.

José Álvaro
José Álvaro

Um padre falava numa meditação esta semana sobre a misericórdia. Falava das flores, algo belo, que preenche o ambiente onde estão, mas que não parece funcional, seria um “algo mais” que Deus colocou no mundo. Façamos um paralelo das flores com as crianças ditas atípicas em três aspetos: a sua beleza, fragilidade e sensibilidade. Podemos e devemos explorar e descobrir as belezas, os detalhes que existem numa criança atípica, porque elas existem, e isso automaticamente despertará em nós os melhores sentimentos, sobretudo o da esperança. Vemos a sua fragilidade, porque muitas vezes não tem noção das suas ações e consequências. Isso gera um desejo de auxiliar, de acolher como algo precioso. Vemos a sensibilidade quando a criança é exposta às mesmas circunstâncias de uma criança típica, da sua idade, e sentimos como é preciso respeitar seu tempo, a sua forma de perceber a realidade, pois eles têm um tempo e um olhar para o mundo diferente do “politicamente correto”. É preciso ligar-se, entrar em sintonia com o seu mundo para compreendê-lo. É preciso muita paciência, perseverança e amor.

Num mundo veloz, competitivo e individualista, aprendemos a ver quanto os outros podem ser úteis, valorizando aqueles que são capazes de trazer algo como: dinheiro, prestígio, prazer, etc. Estas crianças são trigo, mesmo que muitos as encarem como joio. Precisam de ser respeitadas e amadas. Talvez seja uma grande oportunidade que Deus nos dá para nos tornarmos melhores, mais humanos, mais misericordiosos, acolhendo os seus desígnios e deixando-nos transformar por Ele.

Agradecemos a Deus o dom da vida de José Álvaro e, só podemos dizer que vale a pena. O fator determinante no desenvolvimento dessas crianças é o afeto que recebem. Isso fará com que se sintam seguros e amados, certos de que serão apoiados na busca pelo seu lugar no mundo e na missão que Deus reservou para cada um deles. Isso pode ser uma senda no caminho da reabilitação.