ÍNDICE
- Chamamento universal à santidade, no meio do mundo, em todos os âmbitos sociais
- Unidade de vida
- Formação na Doutrina Social da Igreja
- Sentido de responsabilidade
- Amor à liberdade, pluralismo
- Capacidade de diálogo
- Espírito de serviço. Governar é servir
- Compaixão e ação
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PDF ►A mensagem e o legado social de São Josemaria 50 anos depois da sua passagem pela América.
1. Chamamento universal à santidade, no meio do mundo, em todos os âmbitos sociais
A mensagem que São Josemaria recebeu de Deus no dia 2 de outubro de 1928 centrou-se no apelo à santidade no meio do mundo através do trabalho profissional e das circunstâncias habituais do cristão. Todos os cristãos são chamados à santidade em virtude do batismo, e para a grande maioria dos homens não é necessário “sair do lugar” para tender para ela. O mundo – a vida quotidiana, com as suas esferas características de trabalho profissional, família e deveres do Estado na sociedade civil – é o habitat onde o cristão se identifica com Cristo. A santificação da vida quotidiana requer a ajuda da graça e um relacionamento pessoal com Deus. Ao mesmo tempo, a própria vida espiritual está necessariamente inserida e refere-se às circunstâncias normais de existir no meio do mundo.
O Senhor espera que nos santifiquemos e realizemos um apostolado na nossa família, no nosso local de trabalho, nos círculos de amigos, nas iniciativas sociais em que estamos envolvidos, na nossa vila, cidade, região e país. Sempre com uma visão universal, católica, que nos faz ver com os olhos da fé que a influência que podemos exercer sobre o nosso ambiente pode chegar aos confins do mundo. Mas temos de começar com o que temos entre mãos. Se não aproveitarmos as nossas circunstâncias imediatas, cairemos em visões imaginárias que impediriam toda a fecundidade apostólica.
Peguemos num exemplo literário. Em Bleak House, um dos melhores romances da pena de Charles Dickens, há uma personagem grotesca: Mrs. Jellyby. Esta senhora representa aquelas pessoas que estão obcecadas em ajudar a todos – quanto mais longe das suas circunstâncias vitais esse mundo estiver, melhor – mas esquecem que têm pessoas necessitadas ao seu lado, muitas vezes na sua própria casa, na sua vizinhança, comunidade ou na sua própria cidade.
Mrs. Jellyby dedica todas as horas do dia a escrever cartas, a responder, a organizar reuniões para ajudar uma missão em África: Borrioboola-Gha. É mãe de uma família numerosa, mas os seus filhos vivem no meio da desordem e sujidade. Ninguém cuida deles e, quando exigem a atenção da mãe, repreende-os por “não se interessarem pelos grandes problemas do mundo”. No fundo, segundo Mrs. Jellyby, os seus filhos são egoístas. O marido também é vítima de preocupação pela missão africana da sua esposa. Vive isolado, no meio de terríveis problemas financeiros, sem que ninguém se importe com ele. Mrs. Jellyby ignora os problemas familiares, porque a sua preocupação reside nos pobres africanos que têm tantas necessidades materiais e espirituais. A preocupação, por outro lado, é ingénua, pois dedica-se a fazer casacos de lã, que pouco serviriam no calor tropical de África[1].
Na realidade, a egoísta é ela: o seu zelo por África é uma escapatória diante dos problemas e necessidades comuns de cada dia: preparar a comida, limpar a casa, manter a ordem no seio de uma família numerosa, cuidar de um filho doente, confortar alguém que está triste, encorajar uma filha que está com dificuldades emocionais, apoiar o marido em momentos de crise económica, melhorar a convivência com os vizinhos, etc.
O Senhor chama-nos a santificar a vida quotidiana, incluindo todos os aspetos da vida social, com um saudável realismo sobrenatural. Queremos mudar o mundo, mas temos de começar por mudar os nossos próprios corações e o ambiente que nos rodeia. Para esta obra de santificação há duas condições necessárias: que sejamos coerentes nas nossas ações com a fé que professamos, e que nos formemos suficientemente para sermos regidos pelos princípios do Evangelho, que tanto iluminam os caminhos para alcançar o bem comum da sociedade. Vamos analisar essas duas condições.
Em circunstâncias normais, temos certamente visto – nas nossas vidas ou nas dos nossos familiares, amigos ou vizinhos – inconsistências entre a moralidade natural ou a doutrina cristã e as ações na vida social de muitos católicos. Pessoas que não respeitam as leis de trânsito, que mentem na declaração de impostos, que se fazem eco de calúnias infundadas ou que simplesmente tratam com desprezo quem ocupa um lugar mais humilde na escala social. Tudo isto representa um obstáculo evidente à procura do bem comum com sentido cristão.
Há muitos anos, escrevia o santo aragonês: «De facto, é frequente, mesmo entre católicos que parecem responsáveis e piedosos, o erro de pensarem que só são obrigados a cumprir os seus deveres familiares e religiosos, e dificilmente querem ouvir falar de deveres cívicos. Não se trata de egoísmo, mas simplesmente de uma falta de formação, porque nunca lhes foi dito claramente que a virtude da piedade – uma parte da virtude cardeal da justiça – e o sentido da solidariedade cristã se concretizam também neste estar presente, neste conhecer e contribuir para a resolução dos problemas que dizem respeito a toda a comunidade»[2].
O apelo à santidade no meio do mundo leva, como uma das suas consequências mais importantes, a encarnar o que São Josemaria chamava “unidade de vida”. As pessoas que são inconsistentes nas suas ações com a sua fé podem ser descritas como homens ou mulheres com dupla personalidade ou, usando uma palavra frequentemente citada nos Evangelhos, pessoas com duplicidade e engano.
São Josemaria conclui: «É, pois, necessário imitar Jesus Cristo para O dar a conhecer com a nossa vida. Sabemos que Cristo se fez homem para introduzir todos os homens na vida divina, para que – unindo-nos a Ele – vivêssemos individual e socialmente a vida de Deus»[3]. Note-se que se fala de viver “socialmente” a vida de Deus.
3. Formação na Doutrina Social da Igreja
Acabamos de ver como São Josemaria destacou que a ignorância é um dos fatores que explicam a falta de compromisso social dos católicos. Junto com a unidade da vida, outra implicação do chamamento à santidade no meio das relações sociais é o conhecimento da Doutrina Social da Igreja. Citemos textualmente o santo aragonês: «A este respeito, digo-vos qual é o meu grande desejo: gostaria que, no catecismo da doutrina cristã para crianças se ensinasse claramente quais são esses pontos firmes em que não se pode ceder, ao agir de uma forma ou de outra na vida pública; e que, ao mesmo tempo, se afirmasse o dever de atuar, de não se abster, de dar a sua colaboração no serviço do bem comum, com lealdade e com liberdade pessoal. Este é um grande desejo meu, porque vejo que, dessa forma, os católicos aprenderiam estas verdades desde crianças, e saberiam praticá-las quando fossem adultos»[4]. Graças a Deus, isso já é uma realidade no Catecismo da Igreja Católica e no Compêndio de Doutrina Social da Igreja.
O Papa Francisco também se faz eco desta mesma preocupação. Na encíclica Fratelli tutti expressa a sua tristeza pela confusão que muitos cristãos têm em questões sociais, como aqueles que apoiam os nacionalismos fechados, a xenofobia e o desprezo pelos que são diferentes. O remédio é a formação: «A fé, com o humanismo que contém, deve manter vivo o sentido crítico face a estas tendências e ajudar a reagir rapidamente quando elas começam a insinuar-se. Para isso, é importante que a catequese e a pregação incluam de forma mais direta e clara o sentido social da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a dignidade inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a todos»[5].
Quem quiser impregnar as estruturas terrenas com o espírito de Cristo deve necessariamente formar-se para não enveredar pelo caminho errado. O Evangelho ilumina intensamente a compreensão do projeto de Deus sobre a organização social, a família, a economia e a cultura. Bento XVI falou frequentemente dos “princípios inegociáveis” que o cristão coerente deve defender para aproximar este mundo o mais possível do plano divino sobre ele mesmo. Mas se existem princípios “inegociáveis”, há também muitas coisas que são negociáveis, objeto de conversações, de diálogo, de busca de consenso, etc. Distinguir as coisas essencialmente ligadas à fé das coisas discutíveis é essencial para contribuir para a construção de uma sociedade cada vez mais alinhada com os planos de Deus. E para distinguir corretamente é preciso formar-se bem.
São Josemaria não pretendia que todos os cidadãos fossem profissionais da política ou das ciências sociais, mas encorajou todos a terem «um mínimo de conhecimento dos aspetos concretos e específicos para o bem comum da sociedade em que cada um vive, em determinadas circunstâncias históricas; também se pode exigir um mínimo de compreensão da técnica – das possibilidades reais e limitadas – da administração pública e do governo da sociedade, porque sem este entendimento não pode haver crítica serena e construtiva, nem opiniões sensatas»[6].
Em Itália, há um ditado popular que diz assim: Piove. Governo ladro!! (Chove. Governo ladrão!). A crítica fácil, o protesto gratuito, as exigências exorbitantes, que tanto estão na ordem do dia na vida política, na opinião pública e nas redes sociais, em nada contribuem para a procura do bem comum. Seguir o conselho de São Josemaria de nos formarmos bem e tentarmos compreender com empatia o mundo que nos rodeia criaria um ambiente de paz, justiça e compreensão que ajudaria o bem social da comunidade.
4. Sentido de responsabilidade
No Evangelho são numerosos os apelos que o Senhor dirige aos seus discípulos para que tomem consciência da responsabilidade que lhes corresponde no mundo. O cristão deve ser sal e luz, fermento na massa. A parábola dos talentos, na qual o Senhor nos pede para fazermos frutificar as nossas capacidades no serviço aos irmãos, está entre as mais comentadas pela tradição da Igreja, pois é sempre um despertador para evitar a passividade e a indolência. Lemo-lo no capítulo 25 de São Mateus, onde também se encontra a descrição do Juízo Universal: o Senhor pedirá contas exatas de como fomos responsáveis pelo nosso próximo, especialmente pelos mais necessitados.
A parábola do Bom Samaritano é outro despertador da nossa responsabilidade para com todos. O Papa Francisco comenta que «esta parábola é um ícone iluminador, capaz de manifestar a opção fundamental que precisamos de tomar para reconstruir este mundo que nos dói. Diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano. Qualquer outra opção deixa-nos ou com os salteadores ou com os que passam ao largo, sem se compadecer com o sofrimento do ferido na estrada. A parábola mostra-nos as iniciativas com que se pode refazer uma comunidade a partir de homens e mulheres que assumem como própria a fragilidade dos outros, não deixam constituir-se uma sociedade de exclusão, mas fazem-se próximos, levantam e reabilitam o caído, para que o bem seja comum. Ao mesmo tempo, a parábola adverte-nos sobre certas atitudes de pessoas que só olham para si mesmas e não atendem às exigências ineludíveis da realidade humana»[7].
A unidade de vida e a formação doutrinal – sempre baseada numa vida espiritual sincera – fortalecerão o nosso sentido de responsabilidade social. Devemos deixar de lado a passividade, o conforto e carregar aos ombros este nosso mundo tão cheio de necessidades, injustiças e sofrimentos. «O vosso amor por todos os homens deve levar-vos a enfrentar os problemas temporais com coragem, de acordo com a vossa consciência. Não tenhais medo do sacrifício, nem de assumir fardos pesados. Nenhum acontecimento humano pode ser-vos indiferente; pelo contrário, todos os acontecimentos devem ser ocasião para fazer o bem às almas e facilitar o seu caminho para Deus»[8].
A principal manifestação do sentido de responsabilidade social reside no cumprimento das nossas obrigações de estado: trabalhar bem, com toda a perfeição de que somos capazes, prestar o serviço que os nossos concidadãos justamente esperam de nós; criar um ambiente familiar adequado para formar os filhos nas virtudes, futuros cidadãos responsáveis; respeitar as leis e regulamentos legais válidos para que a coexistência seja ordenada e pacífica. Ali o Senhor nos espera e assim poderemos contribuir eficazmente para o bem comum. Mons. Fernando Ocáriz referiu-se à natureza transformadora do trabalho: «O trabalho santificado é sempre uma alavanca para transformar o mundo, e o meio habitual pelo qual devem ser produzidas as mudanças que dignificam a vida das pessoas, para que a caridade e a justiça empapem verdadeiramente todas as relações. O trabalho assim realizado pode contribuir para purificar as estruturas do pecado, convertendo-as em estruturas onde o desenvolvimento humano integral é uma possibilidade real»[9].
5. Amor à liberdade, pluralismo
O bem comum implica criar as circunstâncias para que cada pessoa possa alcançar a realização na sua vida pessoal e nas relações com os outros. Para isso é necessário garantir amplas áreas de liberdade. Este não é o momento de nos determos em todos os aspetos da liberdade: apenas salientamos que a plenitude da vida humana é o Amor – com letra maiúscula, que se identifica com Deus – e sem liberdade não seremos capazes de amar.
Em muitas sociedades contemporâneas, a liberdade sofre uma deterioração preocupante. Ao impor o que é supostamente “correto” numa perspetiva fechada ao espírito, esta liberdade é limitada, e muitas pessoas caem numa espiral de medo e silêncio para não ficarem fora de jogo, como tem acontecido com a chamada cultura do cancelamento que os presidentes de algumas das universidades mais proeminentes dos Estados Unidos estão a apresentar. Em algumas latitudes, impõem-se ditaduras de um tipo ou de outro, impregnadas de ideologias totalitárias, que impedem a expressão de pensamentos que não coincidam com a doutrina oficial, sob pena de prisão. Ainda mais graves são as tentativas de negar a liberdade religiosa aos cidadãos, exercendo perseguições sistemáticas contra aqueles que não partilham o único credo oficial de uma sociedade baseada no fundamentalismo. Não se trata apenas de fundamentalismo religioso: o laicismo também peca por totalitário quando impede manifestações públicas de uma fé religiosa.
São Josemaria gostava de ar puro e de água límpida. Onde a liberdade é negada, o ambiente social fica cheio de trevas e a água que deveria fluir livremente para saciar a sede dos cidadãos estagna e apodrece. Por isso, uma das características mais marcantes dos seus ensinamentos – e não apenas na dimensão social – foi precisamente o seu amor pela liberdade. Afirmou fortemente que existe uma área muito livre na pessoa humana onde só o interessado e Deus podem entrar, e que deve ser sempre respeitada: a intimidade das consciências. O respeito irrestrito pelo santuário íntimo das consciências levou-o a defender a liberdade em matéria religiosa. Manteve relações de amizade autêntica com pessoas de todas as religiões ou sem qualquer religião, e esteve disposto a dar a vida para defender a liberdade das suas consciências. Manteve uma luta filial com a Santa Sé para permitir cooperadores não-católicos, e até mesmo não-cristãos, no Opus Dei. Encheu-se de alegria com a declaração sobre a liberdade religiosa, Dignitatis humanae, do Concílio Vaticano II. Parafraseando a declaração magisterial, afirmava: «Defendo com todas as minhas forças a liberdade das consciências, que significa que não é lícito a ninguém impedir que a criatura tribute culto a Deus. Têm de se respeitar os legítimos anseios de verdade: o homem tem obrigação grave de procurar Nosso Senhor, de O conhecer e de O adorar, mas a ninguém na terra é lícito impor ao próximo a prática de uma fé que este não tem, tal como ninguém pode arrogar-se o direito de prejudicar quem a recebeu de Deus»[10].
A par da liberdade religiosa, São Josemaria defendeu a liberdade de todos os cristãos defenderem as suas opiniões em assuntos que Deus deixou ao livre arbítrio dos homens. Promoveu um clima vital aberto, em que todos podiam expressar-se simplesmente como eram e em que as opiniões de cada um eram respeitadas. Detestava a tirania, «porque é contrária à dignidade da pessoa humana»[11], e manifestava grande respeito pelo pluralismo de opinião, quer se tratasse de questões políticas, sociais, económicas, culturais, desportivas: em suma, no vasto mundo do não-dogmático. Lemos em Sulco: «Que triste coisa é ter mentalidade cesarista, e não compreender a liberdade dos outros cidadãos nas coisas que Deus deixou ao juízo dos homens!»[12].
Num artigo publicado no jornal ABC de Madrid, no dia 2 de novembro de 1969, São Josemaria assim se exprimia: «Deus, ao criar-nos, assumiu o risco e a aventura da nossa liberdade. Quis uma história que fosse verdadeira, feita de decisões autênticas, e não uma ficção ou um jogo. Cada homem tem de experimentar a sua autonomia pessoal, com o que isso implica de acaso, tentativa e erro e, por vezes, incerteza. Não esqueçamos que Deus, que nos dá a segurança da fé, não nos revelou o significado de todos os acontecimentos humanos. Junto com as coisas que são totalmente claras e certas para o cristão, há outras – muitas – nas quais só é possível a opinião: isto é, um certo conhecimento do que pode ser verdadeiro e apropriado, mas que não pode ser afirmado com uma certeza incontestável. Porque não só é possível que eu esteja errado, mas – se estou certo – é possível que outros também estejam certos. Um objeto que parece côncavo para alguém parecerá convexo para os que estão situados numa perspetiva diferente»[13].
A responsabilidade trazia consigo a obrigação moral de intervir na vida da sociedade, deixando ali uma marca evangélica, respeitando sempre as opções temporais livres. «Interpretai, portanto, as minhas palavras como o que são – afirmou na famosa homilia no Campus da Universidade de Navarra –: um chamamento a exercerdes – diariamente! não apenas em situações de emergência – os vossos direitos; e a cumprirdes nobremente as vossas obrigações como cidadãos – na vida política, na vida económica, na vida universitária, na vida profissional –, assumindo com coragem todas as consequências das vossas decisões, arcando com a independência pessoal que vos corresponde. E essa mentalidade laical cristã permitir-vos-á fugir de toda a intolerância, de todo o fanatismo. Di-lo-ei de um modo positivo: far-vos-á conviver em paz com todos os vossos concidadãos e fomentar também a convivência nos diversos sectores da vida social»[14].
A liberdade em assuntos opináveis é uma parte essencial do seu espírito secular e laical. Abominava a mentalidade de “partido único” e exigia liberdade de opinião e decisões responsáveis dos cristãos nas suas atividades profissionais e sociais: «Não há dogmas nas coisas temporais. Não está de acordo com a dignidade dos homens tentar estabelecer verdades absolutas, em assuntos onde cada pessoa deve necessariamente contemplar as coisas do seu ponto de vista, de acordo com os seus interesses particulares, as suas preferências culturais e a sua experiência peculiar. Tentar impor dogmas no temporal leva inevitavelmente a forçar a consciência dos outros, a não respeitar o próximo»[15].
Acrescente-se que, na opinião do nosso autor, inseparavelmente ligada a esta consciência da liberdade do cristão no temporal, estava a obrigação da formação da consciência e também a afirmação do direito-dever da Hierarquia eclesiástica de pronunciar juízos morais sobre as realidades temporais quando a fé e a moral cristã o exigissem[16].
O pluralismo social promovido por São Josemaria implica que se estabeleça uma “cultura do diálogo” na sociedade. São Paulo VI dedicou precisamente ao diálogo a sua primeira encíclica, Ecclesiam suam. O fundador do Opus Dei encorajou não a discutir, mas a trocar opiniões, com caridade e respeito por quem tem uma opinião diferente da nossa. Dialogar requer humildade: não somos donos da verdade e podemos – e devemos – aprender com os outros; é necessária caridade: nunca podemos maltratar uma pessoa mesmo que tenhamos a certeza de que ela está errada; é preciso compreensão, ou seja, colocar-nos nas circunstâncias dos outros. Em suma, no diálogo exercitamos muitas virtudes cristãs que tornam mais humana a sociedade em que vivemos.
Para que o diálogo seja real, é fundamental permanecer fiel à própria identidade. A grande maioria das questões é discutível. Ao mesmo tempo, existe um núcleo de verdades – tanto de fé como de ordem natural – ao qual quem tem a consciência reta não pode ceder: trata-se da “santa intransigência”, na expressão de São Josemaria, ou dos “princípios inegociáveis” de Bento XVI. Um ponto de Sulco citado acima termina assim: «Só na fé e na moral há um critério indiscutível: o da nossa Mãe, a Igreja»[17]. Defender estes pontos inalienáveis com brio não significa ser fundamentalistas: significa ser coerentes com a nossa consciência humana e cristã.
Numa carta enviada aos seus filhos em 21 de janeiro de 1966, São Josemaria aprofundou o diálogo que todo o cristão deve manter na sociedade, para torná-la mais humana e, consequentemente, mais cristã. Vamos reproduzir alguns trechos desta carta, pois considero que ela merece ser conhecida e, sobretudo, aplicada num clima de tensão como o atual no debate público, tanto política como cultural e religiosamente.
Como sempre, o modelo é a vida de Jesus, que manteve um diálogo ininterrupto com todos os tipos de pessoas. «Com a luz sempre nova da caridade, com um amor generoso a Deus e ao próximo, renovaremos, à vista do exemplo que nos deu o Mestre, o nosso desejo de compreender, de desculpar, de não nos sentirmos inimigos de ninguém»[18]. A nossa atitude deve ser a de semeadores de paz e de alegria no mundo, amando e defendendo a liberdade das almas, conquistada e respeitada pelo próprio Senhor.
São Josemaria concebia como finalidade própria do Opus Dei – mas podemos aplicá-la a todos os cristãos – «difundir por todo o mundo a mensagem de amor e de paz que o Senhor nos legou; para convidar todos os homens a respeitar os direitos da pessoa»[19].
O Fundador descreve um panorama não muito animador dos tempos que viveu, muito semelhantes aos nossos: fala-se muito de paz, mas a paz caracteriza-se pela sua ausência; fala-se de democracia e de igualdade, mas existem castas fechadas e impenetráveis; clama-se pela compreensão, mas não se vive, nem mesmo entre os cristãos. «São tempos em que os fanáticos e as pessoas intransigentes, incapazes de admitirem as razões dos outros, se acautelam, rotulando as suas vítimas de violentas e agressivas. Chamou-nos, enfim, numa altura em que se fala muito de unidade, e talvez seja difícil conceber que possa haver maior desunião, não só entre os homens em geral, mas entre os próprios católicos»[20].
São Josemaria aborda um tema central na atuação dos cristãos na praça pública: a fidelidade à doutrina – que chama, como vimos, a “santa intransigência” – e o acolhimento e o respeito por todas as pessoas, inclusive aquelas que estão no erro: é o “compromisso sagrado”. E esclarece: «Deveis, porém, ensinar muitas pessoas a praticar esta doutrina, pois não é difícil encontrar algumas que confundem a intransigência com a intemperança, e a transigência com a renúncia a direitos ou verdades que não se podem negociar»[21].
Os cristãos não podem comprometer-se com as verdades da fé. O depósito da Revelação não nos pertence. Se fossem feitas as mudanças na doutrina que muitos buscam, com a boa intenção de que todos concordaríamos, surgiria uma espécie de religião vaga e sentimental, que não seria mais sal e luz. O cristão deve defender o que a Igreja ensina em matéria de fé e de costumes «com o exemplo, com a palavra, com os vossos escritos, com todos os meios nobres que estiverem ao vosso alcance»[22].
A fidelidade à verdade não pode levar-nos ao desejo de aniquilar quem comete erros, nem a deixar-nos levar pela raiva ou a cair no fanatismo. Não se trata de ser um “martelo de hereges”. Há que distinguir entre o erro e a pessoa errada. Mas no próprio erro deve ser resgatada a parte de verdade que ele carrega. «As más ideias não costumam ser totalmente más; têm habitualmente uma parte boa, porque, de outra maneira, ninguém as seguiria. Têm quase sempre uma centelha de verdade, que é a sua bandeira de recrutamento; mas essa parte de verdade não é delas: é tomada de Cristo, da Igreja; e, portanto, são essas ideias boas – que estão misturadas com o erro – que devem vir atrás dos cristãos, que possuem a verdade plena; não temos de ser nós a ir atrás delas»[23].
O “santo compromisso” leva-nos a viver com todos, a dialogar com todos. «Devemos viver, numa palavra, em conversa contínua com os nossos colegas, com os nossos amigos, com todas as almas que se aproximarem de nós. Essa é a santa transigência. Poderíamos certamente chamar‑lhe tolerância, mas tolerar parece‑me pouco, porque não se trata apenas de admitir, como um mal menor ou inevitável, que os outros pensem de forma diferente ou estejam no erro. É também uma questão de ceder, de transigir em tudo o que é nosso, no que é opinável, no que, sem tocar no essencial, poderia ser fonte de discrepância. Trata‑se, em suma, de limar asperezas, onde puderem ser limadas, para criar uma plataforma de entendimento que proporcione luz aos que estão errados»[24].
Se faltasse este espírito de abertura, prestaríamos um mau serviço à verdade, como aqueles que «transformam a sua vida numa cruzada perpétua, numa defesa constante da fé, mas às vezes obstinam‑se, esquecendo‑se de que a caridade e a prudência deveriam reger esses bons desejos, e tornam‑se fanáticos. Apesar das suas boas intenções, o grande serviço que querem prestar à verdade desvirtua‑se, e acabam por fazer mais mal do que bem, defendendo talvez a sua opinião, o seu amor‑próprio, a sua estreiteza de ideias, esquecendo‑se de que a caridade e a prudência deveriam reger esses bons desejos, e tornam‑se fanáticos. Apesar das suas boas intenções, o grande serviço que querem prestar à verdade desvirtua‑se, e acabam por fazer mais mal do que bem, defendendo talvez a sua opinião, o seu amor‑próprio, a sua estreiteza de ideias. Como o fidalgo de La Mancha, veem gigantes onde só há moinhos de vento; tornam‑se pessoas mal‑humoradas, cáusticas, com um zelo amargo, de modos bruscos, que nunca encontram nada de bom, que veem tudo negro, que têm medo da legítima liberdade dos homens, que não sabem sorrir»[25].
Longe desta atitude, a conduta do cristão no debate público é regida pela caridade, que tem, entre outras características, delicadeza no trato, boa educação, o amor pela liberdade alheia, cordialidade, simpatia. Por outro lado, não podemos limitar-nos a falar ou a dar o bom exemplo: «é necessário que também escuteis, que estejais dispostos a ter um diálogo franco e cordial com as almas que quereis aproximar de Deus»[26].
São Josemaria encoraja-nos a compreender todos, a andar de braço dado com todos, a trabalhar em conjunto também com pessoas que estão numa sintonia ideológica diferente. Para aproximar essas pessoas da verdade é necessário fortalecer a nossa formação doutrinária e regar tudo com a caridade de Cristo. «Contra quem estamos? Contra ninguém. Não posso amar o demónio, mas a todos os que não forem o demónio – por muito maus que sejam ou pareçam ser –, quero‑lhes bem. Não me sinto, nem nunca me senti, contrário a ninguém rejeito as ideias que vão contra a fé ou a moral de Jesus Cristo, mas, ao mesmo tempo, tenho o dever de acolher, com a caridade de Cristo, todos os que que as professarem»[27].
Em 1974, São Josemaria realizou uma visita pastoral a alguns países da América do Sul. Na Argentina existia um clima tenso, de desunião nacional e de violência fratricida. As suas palavras ressoaram em voz alta no coração de milhares de argentinos que sofriam com esta situação, e que bem poderiam ser aplicadas a muitas circunstâncias atuais: «Que semeeis paz e alegria em todos os lugares; que não digais nenhuma palavra que incomode ninguém; que saibais andar de braços dados com quem não pensa como vós. Que nunca vos maltrateis; que sejais irmãos de todas as criaturas, semeadores de paz e de alegria»[28].
7. Espírito de serviço. Governar é servir
A palavra serviço não goza de grande popularidade. Pelo contrário, a palavra poder é apresentada como algo apetecível. Talvez este facto mostre que vivemos num mundo secularizado, que se esqueceu de que reinar é servir. Pelo menos, esta sempre foi a visão cristã da autoridade. Quem ocupa uma posição de responsabilidade na sociedade – um governante, uma professora universitária, um pai, etc. – deve estar consciente de que está ali para servir os seus súbditos, os seus alunos, os membros da família. Muitas vezes vemos o contrário: considera-se que quem exerce o poder tem a possibilidade de se servir a si mesmo. Vê o poder como propriedade pessoal para prosperar. Daí surgem fenómenos tão difundidos nos cinco continentes como a corrupção política e económica, a arbitrariedade e os desejos de se perpetuar no poder. A história e a literatura – pensemos em tantos reis nas obras de Shakespeare, como Macbeth ou Ricardo III – demonstram-no amplamente. Graças a Deus, também são numerosos os exemplos de pessoas que exercem o poder com autoridade moral, com suavidade, com respeito, com espírito de serviço: honram o nome de “ministros”, palavra que vem do latim “ministrare”, quer dizer, servir.
Uma das características que São Josemaria aponta com mais frequência para a santificação de todas as dimensões sociais é precisamente o espírito de serviço. Toda a tarefa humana honesta tem como finalidade intrínseca o serviço aos outros. Serve tanto o médico como a dona de casa, o varredor municipal e também o investigador ou o bancário. O serviço não é algo acrescentado ao trabalho humano. «Vamos pensar devagar sobre o que está nas entranhas do nosso trabalho profissional. Dir-vos-ei que é uma única intenção: servir. Porque no mundo, agora, a importância da missão social de todas as profissões é clara: até a caridade se tornou social, o próprio ensino se tornou social»[29].
Escrivá referia-se ao desejo sobrenatural de servir a Deus e às almas que deve reinar no coração de todos os cristãos, e que também tem uma dimensão humana: «tenta alcançar a perfeição cristã no mundo de forma limpa, com a tua ação muito livre e responsável em todos os campos de atividade cívica. Um serviço abnegado, que não rebaixa, mas educa, que alarga o coração – torna-o romano, no sentido mais elevado da palavra – e leva a procurar a honra e o bem do povo de cada país: para que haja cada dia menos pobres, menos ignorantes, menos almas sem fé, menos desesperados, menos guerras, menos insegurança, mais caridade e mais paz»[30].
O espírito de serviço leva necessariamente a pensar nos outros, a viver aquela chave antropológica cristã, indicada no n. 24 da Gaudium et Spes: a pessoa humana realiza-se no dom sincero de si. É no âmbito das relações sociais que exercemos esta dedicação aos outros. «A atuação de cada um de nós, meus filhos, é pessoal e responsável. Devemos procurar dar bom exemplo a cada pessoa e à sociedade, porque um cristão não pode ser individualista, não pode ignorar os outros, não pode viver de forma egoísta, virando as costas ao mundo: é essencialmente social, membro responsável do Corpo Místico de Cristo»[31].
Segundo a sua visão, se o espírito de serviço prevalecer na sociedade, a transformação do mundo – sempre consciente das limitações humanas – será uma realidade. «O nosso trabalho apostólico contribuirá para a paz, para a colaboração dos homens entre si, para a justiça, para evitar a guerra, para evitar o isolamento, para evitar o egoísmo nacional e o egoísmo pessoal: porque todos perceberão que fazem parte de toda a grande família humana, que está dirigida pela vontade de Deus à perfeição»[32]. São Josemaria é um mestre em alargar horizontes: mesmo que a nossa tarefa na sociedade pareça insignificante ou de pouca importância aos olhos humanos, podemos mudar o mundo precisamente a partir daí.
Se todas as esferas sociais constituem uma oportunidade para contribuir para o bem comum, para servir, é evidente que algumas delas são estratégicas. São Josemaria aponta em particular para o serviço público, para a atividade política. «Em todos os campos onde os homens trabalham, também deveis estar presentes, com o maravilhoso espírito de serviço dos seguidores de Jesus Cristo, que não vieram para ser servidos, mas para servir: sem abandonar de forma imprudente – seria um erro gravíssimo – a vida pública das nações, na qual atuareis como cidadãos comuns, que é o que sois, com liberdade pessoal e responsabilidade pessoal»[33]. E insiste: «A presença leal e desinteressada no campo da vida pública oferece imensas possibilidades de fazer o bem, de servir: os católicos não podem (...) abandonar esse campo, deixando as tarefas políticas nas mãos de quem não conhece ou não pratica a lei de Deus, ou dos que são inimigos da sua Santa Igreja»[34].
Seguindo uma longa tradição de filosofia política e doutrina social, cujos representantes mais ilustres são Platão, Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás, Escrivá oferece uma definição de atividade política: «A política, no nobre sentido da palavra, nada mais é do que um serviço para alcançar o bem comum da Cidade terrena. Mas este bem tem uma extensão muito grande e, consequentemente, é no campo político onde se debatem e ditam leis da mais alta importância, como as que dizem respeito ao casamento, à família, à escola, ao mínimo necessário da propriedade privada, à dignidade – aos direitos e deveres – da pessoa humana»[35].
Nos textos clássicos de filosofia política é comum encontrar secções dedicadas às virtudes do governante. São numerosos os textos de São Josemaria nos quais recolhe uma série de conselhos para governar bem tendo em vista o bem comum. Por exemplo, saber distribuir responsabilidades, sem monopolizar o poder numa só pessoa (cf. Sulco, n. 972); cercar-se de pessoas cultas e moralmente corretas, e não de medíocres para se querer destacar (cf. Sulco, n. 968); tomar decisões ouvindo os colaboradores, para evitar visões unilaterais (cf. Sulco, n. 392); nunca julgar ou falar levianamente sobre pessoas ou assuntos que o governante desconhece (cf. Sulco, n. 397); ter a convicção de que quem governa não sabe tudo e deve aprender com os outros (cf. Sulco, n, 388).
Numa carta datada de 1959 e dirigida aos membros do Opus Dei, deu uma série de indicações que não obedeciam às suas ideias políticas pessoais, mas sim à doutrina social da Igreja: «Quando tiverdes de participar em tarefas de governo, ponde todo o empenho em promulgar leis justas, que os cidadãos possam cumprir. O contrário é um abuso de poder e um ataque à liberdade das pessoas: deforma, além disso, as suas consciências, porque – em tais casos – têm todo o direito de deixar de cumprir essas leis, que só o são de nome»[36].
Ao mesmo tempo, não bastava criar boas leis, mas fazer com que todos os cidadãos participassem no bem comum, e especialmente os mais fracos: «Respeitai a liberdade de todos os cidadãos, tendo em conta que o bem comum deve ser participado por todos os membros da comunidade. Dai a todos a possibilidade de elevar as suas vidas, sem humilhar uns para elevar os outros; aos mais humildes proporcionai horizontes abertos para o seu futuro: a segurança de um trabalho remunerado e protegido, o acesso à igualdade de cultura, porque isto – que é justo – levará luz às suas vidas, mudará o seu humor e facilitar-lhes-á a busca de Deus e de realidades mais elevadas»[37].
Uma das características mais presentes na cultura contemporânea é a rejeição de todo o tipo de discriminação. É algo muito positivo do ponto de vista cristão, embora com dor vejamos que muitas vezes diferentes grupos de pessoas continuam a ser discriminados, especialmente os mais fracos ou com capacidades diferentes. A estes grupos somam-se aqueles que consideram que existem verdades objetivas, ou aqueles que pensam que esta vida tem sentido, ou aqueles que ousam professar publicamente a sua fé: não é estranho que estas pessoas – muitos dos leitores, suponho – sejam rotulados de fundamentalistas, incapazes de dialogar com aqueles que pensam diferente ou que constituem um perigo para a democracia.
Recentemente, um documento da Santa Sé reafirmou a dignidade de cada pessoa: «Uma dignidade infinita, inalienavelmente fundada no seu próprio ser, é inerente a cada pessoa humana, para além de todas as circunstâncias e em qualquer estado ou situação se encontre. Este princípio, que é plenamente reconhecível também pela pura razão, coloca-se como fundamento do primado da pessoa humana e da tutela dos seus direitos»[38].
Para esclarecer possíveis mal-entendidos sobre o termo dignidade, o documento explica que podem ser distinguidas quatro dimensões da mesma: dignidade ontológica, dignidade moral, dignidade social e dignidade existencial. A primeira dimensão é a mais importante. A dignidade ontológica «compete à pessoa enquanto tal, pelo simples facto de existir e de ser querida, criada e amada por Deus. Esta dignidade não pode jamais ser cancelada e permanece válida para além de todas as circunstâncias em que os indivíduos venham a se encontrar»[39]. A dignidade moral refere-se ao exercício da liberdade pela pessoa humana. Muitas vezes abusamos da liberdade e, nesse caso, comportamo-nos de uma forma “não digna” da pessoa humana. «A história atesta que o exercício da liberdade contra a lei do amor revelada pelo Evangelho pode alcançar picos incalculáveis de maldade provocada aos outros. Quando isso acontece, encontramo-nos diante de pessoas que parecem ter perdido qualquer traço de humanidade, qualquer traço de dignidade. A este respeito, a distinção aqui introduzida ajuda a discernir propriamente entre o aspeto da dignidade moral, que pode ser de facto “perdida”, e o aspeto da dignidade ontológica, que não pode jamais ser anulada. E é justamente em razão desta última que se deverá trabalhar com todas as forças para que todos os que cometeram o mal possam arrepender-se e converter-se»[40].
A dignidade social refere-se às condições de vida de uma pessoa. Pode-se afirmar que existem vidas “indignas” porque as suas circunstâncias sociais não respeitam a dignidade ontológica de que goza cada pessoa. Falar de uma “vida indigna” «não indica de nenhum modo um juízo quanto à pessoa, mas deseja evidenciar o facto que a sua dignidade inalienável foi contradita pela situação na qual é obrigada a viver»[41]. Por fim, a dignidade existencial: «com tal indicação, quer referir-se a situações de tipo existencial: por exemplo, ao caso de uma pessoa que, aparentemente tendo todo o necessário para viver, por diversas razões tem dificuldade de viver em paz, com alegria e esperança. Em outras situações, é a presença de doenças graves, de contextos familiares violentos, de certas dependências patológicas e de outras dificuldades que levam a experimentar a própria condição de vida como “indigna” diante da perceção da dignidade ontológica que jamais pode ser obscurecida. As distinções aqui introduzidas, em todo o caso, somente recordam o valor daquela dignidade ontológica enraizada no próprio ser da pessoa humana e que subsiste para além de qualquer circunstância»[42].
São João Paulo II, numa perspetiva personalista, sublinhou que «a pessoa é um ser para quem a única dimensão adequada é o amor»[43]. E Francisco acrescenta: «Sendo assim o amor implica algo mais do que uma série de ações benéficas. As ações derivam duma união que propende cada vez mais para o outro, considerando-o precioso, digno, aprazível e bom, independentemente das aparências físicas ou morais. O amor ao outro por ser quem é, impele-nos a procurar o melhor para a sua vida. Só cultivando esta forma de nos relacionarmos é que tornaremos possível aquela amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos»[44].
São Josemaria, seguindo o exemplo de Jesus Cristo crucificado, dizia que todo o cristão deveria abrir bem os braços para abraçar todas as almas. Considerava que cada pessoa tinha um valor infinito, pois “valemos todo o sangue de Cristo”. Utilizando a terminologia do documento que acabamos de citar, podemos afirmar sem erro que, tanto na sua vida como na sua doutrina, viveu com todas as suas consequências o respeito pela dignidade da pessoa humana nas suas quatro dimensões. Dignidade ontológica que o levou a defender a vida desde o momento da conceção até à morte natural, num apostolado constante num contexto cultural onde a mentalidade anti vida já estava muito desenvolvida; a dignidade moral, que o levou a procurar o pecador para aproximá-lo das fontes da graça, chegando até às portas do inferno; dignidade social, despertando a consciência de todas as pessoas de boa vontade para promover o desenvolvimento de todos, especialmente dos mais pobres, e alcançar um padrão de vida compatível com a dignidade dos filhos de Deus; e, por fim, a dignidade existencial, pela preocupação constante em acompanhar os sós, confortar os enfermos, pregar a paz familiar, etc.
À atitude pessoal de São Josemaria somava-se o desejo de incutir nos seus filhos espirituais e em todas as pessoas a quem chegava a sua pregação, a responsabilidade de colaborar na solução dos problemas sociais. Se o primeiro passo é a “compaixão” para com os fracos, os pobres, os discriminados, o passo seguinte deve ser a “ação”: o cristão – e todas as pessoas de boa vontade – não podem ficar de braços cruzados face às injustiças sociais. O seu amor a Cristo, que via nos pobres, levou-o a procurar meios para reverter as situações de pobreza e miséria de tantas pessoas nos cinco continentes. Considerava que, se a vida espiritual fosse autêntica, deveria necessariamente conduzir à proximidade com as pessoas que sofrem. Caso contrário, cairíamos numa religiosidade subjetivista, que conteria um conforto estranho ao espírito de Cristo[45]. «Não se ama a justiça –escreveu numa homilia dedicada a São José – se não se deseja vê-la também cumprida para com os outros. Como também não é lícito encerrar-se numa religiosidade cómoda, esquecendo as necessidades dos outros. Quem deseja ser justo aos olhos de Deus também se esforça para que a justiça se realize de facto entre os homens. E não apenas pelo bom motivo de que o nome de Deus não seja injuriado, mas porque ser cristão significa captar e corresponder a todos os anseios nobres do homem. Parafraseando um texto conhecido, do Apóstolo São João, pode-se dizer que mente quem afirma que é justo com Deus, mas não é justo com os outros homens; e a verdade não habita nele»[46].
Respeitando o pluralismo legítimo que existe quando se trata de encontrar soluções técnicas para resolver as emergências sociais, não deixou de recordar a todos que uma parte central do Evangelho é a predileção pelos pobres e doentes, que devem gozar dos mesmos direitos que os outros homens. Sem meias medidas, afirmou em meados do século passado: «Nestes tempos de confusão, não sabemos o que é direita, nem centro, nem esquerda, política e socialmente. Mas se por esquerda entendemos alcançar o bem-estar dos pobres, para que todos possam satisfazer o direito de viver com um mínimo de conforto, de trabalhar, de ser bem cuidados em caso de doença, de se divertir, de ter filhos e poder educá-los, ser velhos e receber cuidados, por isso estou mais à esquerda do que qualquer outra pessoa. Naturalmente, dentro da doutrina social da Igreja, e sem compromissos com o marxismo ou o materialismo ateu; nem com a luta de classes anticristã, porque nestas coisas não podemos transigir»[47].
Para São Josemaria há exigências iniludíveis de justiça e devem ser procurados todos os meios adequados para garantir que sejam respeitadas. Ao mesmo tempo, na sua visão social impregnada pelo amor de Cristo, considerou que só a justiça não basta. «Convencei-vos de que apenas com a justiça nunca resolvereis os grandes problemas da Humanidade. Quando se faz apenas justiça, não é de estranhar que as pessoas se sintam feridas: a dignidade do homem, que é filho de Deus, pede muito mais do que isso. A caridade tem de ir dentro e ao lado, porque dulcifica tudo e tudo deifica: Deus é amor. (...) Para se passar da estrita justiça à abundância da caridade há todo um trajeto a percorrer e não são muitos os que perseveram até ao fim: alguns conformam-se com chegar apenas aos umbrais: prescindem da justiça e limitam-se a um pouco de beneficência, a que chamam caridade (…) A caridade, que é como que um transbordar generoso da justiça, exige em primeiro lugar o cumprimento do dever: começa-se pelo que é justo; continua-se pelo que é mais equitativo…; Mas para amar requer-se muita finura, muita delicadeza, muito respeito, muita afabilidade; numa palavra, seguir aquele conselho do Apóstolo: levai as cargas uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo. Então, sim, vivemos plenamente a caridade, realizamos o mandato de Jesus»[48].
Ao longo da sua vida, o fundador do Opus Dei incentivou inúmeras iniciativas ao serviço dos mais necessitados: institutos de formação profissional, dispensários médicos, escolas agrícolas, centros de formação de empregadas domésticas, etc. Ao mesmo tempo, não tinha uma mentalidade “assistencialista”: os instrumentos necessários tinham de ser colocados nas mãos dos mais necessitados para que pudessem avançar por si próprios, respeitando a sua dignidade. Isso significava dar-lhes formação humana e profissional, sem esquecer a formação espiritual, porque então como agora – é uma denúncia do Papa Francisco – «a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual»[49]. O próprio São Josemaria o disse: «Filhos da minha alma, não esqueçais que a miséria mais triste é a pobreza espiritual, a falta de doutrina e de participação na vida de Cristo»[50].
Promoveu também universidades e escolas de negócios nas quais se procura promover a responsabilidade social e o espírito de serviço, para colocar esta formação de qualidade ao serviço do bem comum. Procurou que as pessoas mais instruídas e com maiores possibilidades económicas apurassem a sua sensibilidade social, produto não tanto de princípios de filosofia política ou económica, mas de uma mentalidade conforme aos sentimentos do Coração de Cristo: «Um homem ou uma sociedade que não reaja diante das tribulações ou das injustiças e se não esforce por as aliviar, não é um homem ou uma sociedade à medida do amor do Coração de Cristo. Os cristãos – conservando sempre a mais ampla liberdade quando se trata de estudar e de pôr em prática as diversas soluções, segundo um pluralismo bem natural – terão de convergir no mesmo anseio de servir a humanidade. Se não, o seu cristianismo não será a Palavra e a Vida de Jesus: será um disfarce, um embuste feito a Deus e aos homens»[51].
Não podemos contentar-nos em resolver problemas pessoais e familiares. São prioritários, mas devem constituir a plataforma para nos fazermos “ao largo” para procurar todos os homens, para levar a mensagem de Cristo a cada um. «A caridade de Cristo – escreve São Paulo –, nos urge» (2Cor 5, 14). E o amor implica entrega, abandono de si, doação sincera de si mesmo. Por outras palavras, torna as nossas vidas mais complicadas. Na Venezuela, num daqueles encontros massivos que manteve com todo o tipo de pessoas, respondendo a uma pergunta sobre a educação dos filhos em relação aos bens materiais, São Josemaria destacou:
«Eu os levaria um pouco... por aqueles bairros da grande cidade de Caracas. Poria a mão na frente dos olhos deles e depois tirava-a para que vissem as barracas, uma em cima da outra: e já lhes respondeste! Que saibam que precisam de usar bem o dinheiro; devem saber geri-lo, para que todos participem de alguma forma nos bens da terra. Porque é muito fácil dizer: estou muito bem, se não faltou nenhuma necessidade. Um amigo, um homem com muito dinheiro, uma vez disse-me: não sei se sou bom, porque nunca tive a minha mulher doente, nem fiquei sem trabalho e sem um cêntimo; não tive os meus filhos debilitados pela fome, sem trabalho e sem um tostão; não me encontrei no meio da rua, deitado sem abrigo... Não sei se sou um homem honesto: que teria feito se tudo isso tivesse acontecido comigo? Olha, temos de garantir que isso não aconteça com ninguém; as pessoas devem estar capacitadas para que, com o seu trabalho, possam garantir um mínimo de bem-estar, ter tranquilidade na velhice e na doença, cuidar da educação dos filhos e tantas outras coisas necessárias. Nada nos outros nos pode ser indiferente e, do nosso lugar, devemos garantir que a caridade e a justiça sejam promovidas»[52].
* * *
O cristão que, coerente com o Evangelho e bem formado na Doutrina Social, procura influenciar a comunidade, com responsabilidade social, respeito pela liberdade dos outros, capacidade de diálogo, espírito de serviço e compaixão ativa pelos mais pobres, é gerador de mudanças positivas. Como os círculos concêntricos produzidos por uma pedra atirada na água, a sua influência alcançará os confins da terra. Se houver muitos cristãos assim, haverá motivos para esperar um mundo melhor, com mais amor, compreensão, paz, perdão. Não caiamos na utopia, porque a presença do mal estará sempre presente até ao fim dos tempos. Mas é nossa responsabilidade dar o nosso contributo para tornar a convivência social mais cristã – e, consequentemente, mais humana.
Há algumas semanas vi nas prateleiras de uma livraria de Yaoundé, capital dos Camarões, um livro intitulado: Le pire n'est pas encore arrivé (O pior ainda não chegou). Como título não é muito emocionante. Com as certezas que a fé nos dá, podemos afirmar que, se formos fiéis à nossa vocação de cidadãos cristãos no meio do mundo, o melhor ainda não chegou. Tudo depende ao mesmo tempo de Deus e da nossa correspondência livre e responsável à graça divina.
[1] cf. Charles. Dickens, A casa sombria, E-primatur, Lisboa 2018 (publicada inicialmente em Portugal com o título A casa abandonada pelas Edições Romano Torres).
[2] São Josemaria, Carta 3, n. 46, em www.opusdei.pt
[3] Ibid., n. 29.
[4] Ibid., n, 45.
[5] Francisco, Fratelli tutti, n.86.
[6] São Josemaria, Carta 3, n. 46.
[7] Francisco, Fratelli tutti, n. 67.
[8] São Josemaria, Carta, 15/10/1948, n. 28.
[9] Fernando Ocáriz, Conferência “Dilatar o coração”, 22 de janeiro de 2023.
[10] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 32.
[11] São Josemaria, Entrevistas a São Josemaria, n. 53.
[12] São Josemaria, Sulco, n. 313.
[13] Artigo “As riquezas da fé”, ABC, 2 de novembro de 1969.
[14] São Josemaria, Entrevistas a São Josemaria, n. 114.
[15] Artigo “As riquezas da fé”, ABC, 2 de novembro de 1969.
[16] cf. A. Rodríguez Luño, La formazione della coscienza in materia sociale e politica secondo gli insegnamenti del beato Josemaría Escrivá, em Romana, janeiro-junho de 1991, 162-181.
[17] São Josemaria, Sulco, n. 275.
[18] São Josemaria, Carta 4, n. 3a, em Cartas I, cit.
[19] Ibid., n. 3c.
[20] Ibid., n. 4c.
[21] Ibid., n. 6d.
[22] Ibid., n. 8c.
[23] Ibid., n. 11a.
[24] Ibid., n. 12a.
[25] Ibid., n. 12e e 12d.
[26] Ibid., n. 13e.
[27] Ibid., n. 24b, 24c e 24d.
[28] São Josemaria, Notas de uma reunião familiar, 15 de junho de 1974 (Arquivo Geral da Prelatura, biblioteca, PO4, vol. II, 482).
[29] São Josemaria, Carta.3, n. 26b.
[30] São Josemaria, Carta 8, n. 1b, em Cartas II, edição crítica e comentada, elaborada por Luis Cano, Rialp, Madrid 2022.
[31] Ibid., n. 37d.
[32] Ibid., n. 38a.
[33] Ibid., n. 40e.
[34] Ibid., n. 41a.
[35] Ibid., n. 42a.
[36] São Josemaria, Carta 29, n. 52, em www.escriva.org.
[37] Ibid.
[38] Dicastério para a Doutrina da Fé, Declaração Dignitas Infinita sobre a Dignidade Humana, 08/04/2024, n. 1.
[39] Ibid, n. 7.
[40] Ibid.
[41] Ibid., n. 8.
[42] Ibid.
[43] São João Paulo II, Atravessar o limiar da esperança, Planeta, Lisboa, 1994.
[44] Francisco, Fratelli tutti, n. 94.
[45] cf. M. Schlag, entrada Promoción y desarrollo, no “Diccionario de San Josemaría”, cit., 1026.
[46] São Josemaria, Cristo que passa, n. 52.
[47] São Josemaria, Instrução, maio/1935-14/09/1950, nota 146.
[48] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 172-173.
[49] Francisco, Evangelii gaudium, n. 200.
[50] São Josemaria, Carta 29, n. 52.
[51] São Josemaria, Cristo que passa, n. 167.
[52] São Josemaria, Notas de uma reunião familiar, 09/02/1975 (Arquivo Geral da Prelatura, Biblioteca, P04, 1975, vol. III, 83-84).