I. Vocação, missão e carisma
No princípio, era o Verbo. Tudo se fez no Verbo e por meio do Verbo. Deus chama a ser tudo o que existe.
A vida fecunda de Deus é vida de relação interpessoal. As processões divinas – geração e espiração – têm como fim o ser pessoal: o Pai gera o Filho, o Pai e o Filho espiram o Espírito Santo. Quando Deus cria, atua segundo a mesma lógica: Ele quer seres pessoais diante de si, segundo a exemplaridade do Filho e por amor. Se Deus chama à existência todo o universo, é porque quer seres pessoais que participem da sua vida: seres livres que possam conhecê-l’O e amá-l’O.
Assim, em certo sentido, o mundo inteiro é efeito de uma vocação. Cada um de nós foi chamado pessoalmente à existência: com o seu próprio rosto, com a própria voz, com a sua cor de olhos. Cada um, com o seu próprio eu diante do Tu divino. Por isso, Deus quis o mundo e criou-o: porque pensava em cada um de nós.
Vocação: do temor à alegria
A palavra vocação é uma palavra familiar, paterna. Palavra não distante, mas próxima, palavra dirigida a todos. Palavra que revela, chama, convida. De facto, toda a história da salvação se apresenta como uma contínua história de vocações, de chamamentos incessantes que Deus dirige no espaço e no tempo a homens e mulheres de diversos lugares e em diferentes épocas históricas: a governantes e a pessoas comuns, a cidades inteiras, a povos e descendências.
A pregação de São Josemaria aproxima-nos da palavra vocação, mostrando-nos a sua grandeza e universalidade. O fundador do Opus Dei contribuiu para que se falasse de vocação em anos anteriores ao Concílio Vaticano II, em que talvez se entendesse de modo restritivo. Deste modo, o que fazia era recuperar o ensinamento de muitos santos, voltando a falar com clareza de vocação como algo de comum a todos os seres humanos.
Encontrar-se com o termo vocação nos pontos de Caminho e nas homilias de São Josemaria podia causar ao princípio certa surpresa, talvez de mistura com temor. Contudo, imediatamente depois suscitava alegria comprovar que o contexto em que falava dela era a vida habitual: o estudo e o trabalho, a amizade e a família, as paixões culturais e todas as profissões… Entendida assim, a vocação conferia luz e importância ao que, à vista desarmada, não parecia possuí-la. Graças a esta mensagem de São Josemaria, a palavra vocação tornou-se para muitos homens e mulheres uma palavra familiar, paternal, acessível.
«A vocação acende uma luz que nos faz reconhecer o sentido da nossa existência. É convencermo-nos, com o resplendor da fé, do porquê da nossa realidade terrena. Toda a nossa vida, a presente, a passada e a que há de vir, cobra um novo relevo, uma profundidade de que antes não suspeitávamos. Todos os factos e acontecimentos passam a ocupar o seu posto: entendemos aonde nos quer levar o Senhor e sentimo-nos entusiasmados e envolvidos por esse encargo que se nos confia»[1].
Ninguém fica excluído
A muitas pessoas que escutavam a pregação de São Josemaria surpreendia e apaixonava a sua insistência em que nem sempre é necessário alterar a própria posição no mundo, nem o trabalho, nem as circunstâncias habituais e familiares, para responder ao chamamento de Deus. Este chamamento ressoa justamente aí, nos contextos comuns de um homem ou de uma mulher contemporâneos. Chega, talvez inesperadamente, talvez enquanto se têm entre mãos as ferramentas do próprio trabalho.
O modo como São Josemaria falava da vocação baseava-se num profundo enquadramento bíblico e especificava o valor concreto-particular de um conceito teológico geral: Deus chama todo o ser humano a conhecê-l’O e a amá- l’O. Todos recebemos uma vocação a identificar-nos com o Seu Filho e a participar do Seu mesmo Espírito. Existimos por e para isso; todos, ninguém fica excluído: sãos e doentes, ricos ou pobres, trabalhadores e intelectuais dotados de muitos talentos ou de poucos para determinadas atividades.
A vocação a conhecer e amar o nosso Criador, a parecer-nos com o seu Filho feito homem, porque fomos criados em Cristo, tem um nome: é a vocação à santidade, isto é, a participar na vida de Deus, Aquele que é o único santo. Todo o ser humano a recebe, tanto se já faz parte do povo de Deus, da Igreja, como se só está ordenado a ser parte dela, embora ainda a não conheça. Deus chama todos, sem excluir ninguém, a participar na sua vida. Cristo Jesus derramou o Seu sangue, morreu na cruz e ressuscitou para que a nossa filiação divina, obscurecida e quase perdida pelo pecado, pudesse ser recuperada e restabelecida n’Ele.
No entanto, se Deus chama, é sempre em ordem a uma missão, para incumbir de uma tarefa. Vemo-lo assim claramente ilustrado na história da salvação. Deus dirige a Sua palavra a cada ser humano: vai, faz isto; atua como te vou ensinar; sai desta terra; fala em Meu nome; vai ao lugar que Eu te vou mostrar... Parece quase dizer: “Criei-te para isto!”. Na realidade, poderia dizer-se que todas essas missões específicas são concretizações da missão original que o Criador confia à humanidade no Génesis: «O Senhor Deus levou o homem e colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar» (Gn 2, 15).
À vocação universal à santidade corresponde uma missão igualmente universal: a de se conformar à imagem do Filho, para amar com amor fraterno e filial, e rejeitar as obras do pecado. Conformar-se ao Filho é participar da sua missão, ou seja, reordenar o mundo desordenado pelos pecados dos homens e reconduzi-lo ao Pai no Espírito Santo. Ora, tal missão implica uma história. Se a vocação interpela e exige uma resposta precisa, o cumprimento de uma missão realiza-se preferencialmente de forma histórica: chegando a ser o que estamos chamados a ser, e transformando o mundo para que este chegue a ser o que Deus quis que fosse desde sempre.
Uma missão específica na Igreja
O próprio Deus, ao criar o mundo, abre a história à possibilidade de acolher missões. É a missão do Verbo, enviado pelo Pai ao mundo para assumir a natureza humana, levar a termo a criação e redimir o homem do pecado, devolvendo-lhe a plena dignidade de filho no Filho. É a missão do Espírito Santo, enviado ao mundo e à história pelo Pai e o Filho, para que configure os crentes com o Filho e os reúna no Corpo de Cristo. A Igreja de Jesus Cristo nasce destas duas missões e é como que o seu prolongamento na história[2]. Toda a Igreja é convocada e enviada: é convocada pela pregação do Reino de Deus por parte de Jesus e, depois da ressurreição, é enviada a todas as nações para ensinar o Evangelho a todas as gentes e batizá-las em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
A Igreja existe e vive para esta missão e dirigem-se a esta mesma tarefa as diversas missões que o Espírito Santo suscita ao longo da história. Tão diversas e belas são as flores da terra, como diversas e belas são as missões que Deus confiou a tantos santos e santas, a inúmeras comunidades cristãs, a leigos e sacerdotes, a religiosos e religiosas: missões que têm contribuído e continuam a contribuir para a única missio Ecclesiae.
«Aquele jardim do Senhor não só tem as rosas dos mártires, mas também os lírios das virgens, as heras dos esposos e as violetas das viúvas. Nenhuma classe de pessoas deve menosprezar a sua vocação. Cristo sofreu por todos. Com toda a verdade está escrito a este propósito: “Ele quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tim 2, 4)»[3].
Conhecendo a vida de São Josemaria, e escutando a sua pregação, compreendemos que também ele recebeu de Deus – na Igreja e com a Igreja – uma missão específica. Ao declarar a sua santidade e apontá-la como exemplo, o Magistério reconheceu a missão recebida por São Josemaria como parte da própria missão da Igreja.
Pouco depois de começar o seu labor sacerdotal, São Josemaria quis dar um nome à missão que recebera de Deus, para que os seus filhos e filhas espirituais a continuassem na história: Opus Dei, obra de Deus,operatio Dei. Sublinhando a iniciativa divina, começou a falar dela como de uma nova fundação, indicando 2 de outubro de 1928 como «o dia em que o Senhor fundou a Sua Obra»[4].
Por ampla e geral que seja uma missão inspirada pelo Espírito Santo na história dos homens – e certamente o é a missão do Opus Dei, a ponto de São Josemaria a descrever como um mar sem margens –, cada nova fundação terá sempre uma nota distintiva que justifique o seu para quê.
Procurar essa nota distintiva, a especificidade de uma missão ou de uma nova fundação, não quer dizer separá-la de outras iniciativas inspiradas pelo Espírito Santo, mas sim conhecê-la melhor. Portanto, a especificidade do Opus Dei não pode definir-se, por contraste, separando-a do que outros fazem ou não fazem, exaltando diferenças ou dividindo os campos de ação. A especificidade dos que trabalham na vinha do Senhor deve ser posta em relevo sem perder nunca de vista a missão única de toda a Igreja, numa atitude de unidade que procura a comunhão.
Em todas as novas fundações, há uma relação delicada entre especificidade e tradição, entre o que é ou parece novo e o que, na mensagem cristã, deve necessariamente continuar a ser o mesmo. Há tarefas que a Igreja reconhece na sua vida e na sua tradição como essenciais para a missão que recebeu de Cristo. A título de exemplo, exortar o povo de Deus à santidade e à configuração com Jesus Cristo, ensinar a todos a ter uma relação pessoal e filial com Deus, situar a Eucaristia no centro da vida dos fiéis, promover a disponibilidade dos sacerdotes para perdoar os pecados, administrar os sacramentos de modo a serem recebidos com fruto, recordar a todos os batizados que são apóstolos num mundo por reevangelizar, difundir os ensinamentos dos pastores, dos concílios e, especialmente, do Romano Pontífice...
Como entender a fé que São Josemaria experimentou há um século ao dar início ao Opus Dei, e como compreendeu ele a novidadeque o Opus Dei implicava?
Com esta finalidade queremos reler e aprofundar, nestes anos prévios ao Centenário da fundação do Opus Dei (1928-2028), alguns elementos de especificidade que caracterizam a sua missão, e examinar uma vez mais os carismas que Deus concedeu e concede continuamente aos seus membros para que esta missão se cumpra.
“Ordenar o mundo a Deus mediante o trabalho”
Muitos textos de São Josemaria falam dos fins da nova fundação. São fins aparentemente gerais, porque contribuem, como deve ser, para o bem geral da Igreja, para a santificação das almas, para a transformação cristã do mundo. E, no entanto, são fins que apontam para uma missão específica, peculiar, que ilumina toda a existência de quem recebe esse chamamento divino. Uma missão que podíamos exprimir, por exemplo, com estas palavras: «Ordenar o mundo a Deus mediante o trabalho»; ou então: «Transformar as realidades terrenas pondo no seu cume a cruz de Jesus para que, purificadas do pecado, todas as atividades humanas sejam santificadas a partir de dentro e tomem a forma de Cristo». Nesta missão, precisa São Josemaria, os membros da Obra «santificar-se-ão a si mesmos, santificarão os outros e santificarão o próprio mundo». Sacerdotes e leigos contribuem para esta missão, mas com uma articulação precisa: os primeiros devem servir sobretudo os segundos, porque esta missão corresponde de maneira direta e imediata aos fiéis leigos[5].
«Este é o segredo da santidade que prego há tantos anos: Deus chamou-nos a todos para que O imitemos; e a vós e a mim para que, vivendo no meio do mundo – sendo homens da rua – saibamos pôr Cristo Nosso Senhor no cume de todas as atividades humanas honestas. Deveis agora compreender ainda melhor que, se algum de vós não amasse o trabalho que lhe corresponde, se não se sentisse autenticamente comprometido em santificar uma das nobres ocupações terrenas, se carecesse de uma vocação profissional, nunca chegaria a penetrar na essência sobrenatural da doutrina que expõe este sacerdote, porque lhe faltaria, precisamente, uma condição indispensável: a de ser um trabalhador»[6].
A invocação que as Preces do Opus Dei reservam à oração de intercessão Ad sanctum Josephmariam, conditorem nostrum, tendo que resumir em poucas linhas a essência da sua mensagem, atribui um papel central à santificação do trabalho, precisando a sua dimensão apostólica e missionária: Intercede pro filiis tuis, ut fideles spirítui Operis Dei, laborem sanctificemus et animas Christo lucrifacere quaeramus.
Em torno do eixo do trabalho em Cristo parecem rodar verdadeiramente todos os outros aspetos da perspetiva cristã que São Josemaria viu iluminados na nova fundação que Deus lhe pediu: a possibilidade de encontrar Deus e de procurar a santidade na vida quotidiana; a extensão universal do chamamento à santidade; a imitação da vida oculta de Jesus e da Sagrada Família de Nazaré; a devoção muito especial à figura de São José – o artesão, o trabalhador –, a ponto de estabelecer que os membros da Obra renovassem na sua festa a dedicação ao Opus Dei; a filiação divina como participação na missão do Filho de reconciliar todas as coisas com o Pai por meio do Espírito; o apostolado de amizade e confiança que os membros desta instituição estão chamados a exercer com colegas de trabalho e nas suas relações sociais; a perdurabilidade do Opus Dei, enquanto houver homens que trabalhem à face da terra... Todos estes aspetos são reverberações de uma luz fundacional cujo ponto focal é uma nova compreensão da dimensão divina do trabalho humano.
A especificidade da sua missão, tal como se esboçou antes, é o carisma do Opus Dei? Qual é a relação entre vocação, missão e carisma? Na Sagrada Escritura e na história da Igreja, o termo carisma tem um significado muito amplo. Contudo, refere-se principalmente ao «dom concedido por Deus com vista a uma missão». Neste sentido, o dinamismo vocação-missão precede a noção de carisma. A Palavra de Deus chama para confiar uma missão; a seguir, Deus concede os carismas e dons necessários para a levar a cabo. Por vezes, em linguagem comum, utilizamos a palavra carisma para referir-nos também à gratuidade de uma missão ou de uma determinada espiritualidade, para indicar que se trata de um dom do Espírito, de uma iniciativa divina: é Deus que suscita, chama, concede a sua graça, assiste, guia, buscando paternalmente a correspondência da pessoa humana.
«Quando Deus Nosso Senhor projeta alguma obra em favor dos homens, pensa primeiro nas pessoas que há de utilizar como instrumentos... e comunica-lhes as graças convenientes. Essa convicção sobrenatural da divindade da empresa acabará por nos dar um entusiasmo e amor tão intenso pela Obra, que vos sentireis ditosíssimos sacrificando-vos para que se realize»[7].
Deus concede aos homens a graça e os carismas do Espírito para cumprir a missão a que todos fomos chamados: ser santos e identificar-nos com Cristo. A quem chama a uma missão particular, a uma finalidade pastoral concreta na Igreja, Deus concede dons e carismas apropriados para a levar a cabo. Para reconhecer o carisma específico de uma nova fundação, e, portanto, também do Opus Dei, é necessário refletir sobre a sua missão, tal como a foi delineando o seu fundador.
Não é de esquecer, em todo o caso, que a missão do Opus Dei precede a sua instituição. Em princípio, esta missão é compatível com diferentes formas institucionais canónicas, presentes ou futuras, sempre que permitam pôr em prática o que Deus pediu ao seu fundador: procurar a santidade e a plenitude da filiação divina no meio do mundo, mediante o exercício do trabalho habitual, ordenando a Deus todas as atividades humanas, transformando-as para lhes dar a forma Christi.
Por último, compreender e aprofundar na missão do Opus Dei é uma tarefa de certo modo inesgotável, simplesmente por se tratar de um facto autenticamente teológico quetem Deus como autor. É uma missão aberta sobre a história e alentada pelo Espírito Santo criador, e, portanto, capaz de inspirar épocas e situações diversas: trata-se de um carisma que, ao longo da história, será encarnado por muitíssimas pessoas em situações muito variadas. A dimensão pneumatológica de uma missão faz com que o modo de ser e de viver de quem a encarna possa definir-se como um espírito mais do que como letra. Por isso, o Opus Dei tem um espírito, o espírito da Obra.
Aprofundar no sentido desta missão e deste espírito, tal como São Josemaria o viu na sua meditação pessoal e o transmitiu na sua pregação, será objeto do próximo artigo.
Esta série é coordenada pelo Prof. Giuseppe Tanzella-Nitti, com alguns professores e professoras da Pontifícia Universidade da Santa Cruz.
[1] São Josemaria, Cristo que passa, n. 45.
[2] cf. Concilio Vaticano II, Lumen gentium, n. 2-4.
[3] Santo Agostinho, Discurso 304, 3, 2.
[4] São Josemaria, Apuntes íntimos, n. 306, 02/10/1931.
[5] cf. Concílio Vaticano II, Lumen gentium, n. 31 e 36.
[6] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 58.
[7] São Josemaria, Instrucción, 19/03/1934, n. 48-49.