Formação da personalidade (6): Formar o caráter na virtude

A maturidade cristã implica tomar as rédeas de nossa vida, perguntar-nos, de verdade, diante de Deus, o que ainda nos falta.

«Tendo ele saído para se pôr a caminho, veio alguém correndo e, dobrando os joelhos diante dele, suplicou-lhe: "Bom Mestre, que farei para alcançara vida eterna?» [1]. Nós, discípulos do Senhor, presenciamos a cena com os Apóstolos, e talvez nos surpreendamos diante da resposta: «Por que me chamas bom? Só Deus é bom» [2]. Jesus não dá uma resposta direta. Com suave pedagogia divina, quer conduzir aquele jovem para o sentido último de suas aspirações: «Jesus mostra que a pergunta do jovem é, na verdade, uma pergunta religiosa, e que a bondade que atrai e simultaneamente vincula o homem, tem a sua fonte em Deus, mais, é o próprio Deus, o único que é digno de ser amado “com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente”». [3]

Para entrar na Vida

Logo, o Senhor retorna àquela consulta audaz: o que devo fazer? «Se queres entrar na vida, – responde – observa os mandamentos» [4]. Tal como o apresentam os evangelhos, o jovem é um judeu piedoso que poderia ter ido embora satisfeito com esta resposta; o Mestre confirmou suas convicções, porque o remete aos mandamentos que observou desde a sua adolescência [5]. Porém, quer ouvi-lo da boca deste novo Rabi que ensina com autoridade. Intui, e não se engana, que pode abrir-lhe horizontes inéditos. «Quais?» [6], pergunta. Jesus recorda-lhe os deveres relacionados com o próximo: «Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe, amarás teu próximo como a ti mesmo» [7]. São os preceitos – a chamada segunda tábua – que protegem «bem da pessoa, imagem de Deus, mediante a proteção dos seus bens» [8]. Constituem a primeira etapa, a via para liberdade, não a liberdade perfeita, como observa Santo Agostinho [9]; dito de outro modo, são a fase inicial no caminho do amor, mas não no amor maduro, plenamente realizado.

Que me falta ainda?

O jovem conhece e vive estas prescrições, mas algo em seu interior pede-lhe mais; tem que haver – pensa – algo mais que possa fazer. Jesus lê no seu coração: «fixou nele o olhar, amou-o» [10]. E lança o maior desafio de sua vida: «Uma só coisa te falta; vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu» [11]. Jesus Cristo pôs aquele homem perante a sua consciência, a sua liberdade, o seu desejo de ser melhor. Não sabemos até que ponto entendeu as exigências do Mestre, apesar de que pela sua pergunta – que me falta ainda? –, parece que teria esperado outras “coisas para fazer”. As suas disposições são boas, embora talvez ainda não houvesse entendido a necessidade de interiorizar o sentido dos mandamentos do Senhor.

A vida a que Deus chama não consiste somente em fazer coisas boas, mas em «ser bons», virtuosos. Como costumava precisar nosso Padre [12], não basta ser bonzinhos, mas retos, de acordo com o panorama imenso – “só Deus é bom” [13] – que Jesus abre diante de nós.

A maturidade cristã implica tomar as rédeas da nossa vida, perguntar-nos de verdade, diante de Deus, o que ainda nos falta. Estimula-nos a sair do cômodo refúgio de quem é um cumpridor da lei para descobrir que o que importa é seguir Jesus, apesar dos próprios erros. Deixamos então que seus ensinamentos transformem nosso modo de pensar e de sentir. Experimentamos que nosso coração, antes pequeno e encolhido, se dilata com a liberdade que Deus pôs nele: «correrei pelo caminho de vossos mandamentos, porque sois vós que dilatais meu coração» [14]

O desafio da formação moral

O jovem não esperava que “a coisa que faltava” era precisamente pôr a sua vida aos pés de Deus e dos outros, perdendo sua segurança de cumpridor. E se afastou triste, como acontece a todo aquele que prefere seguir exclusivamente a sua própria rota, em vez de deixar que Deus o guie e surpreenda. Deus nos chamou para viver com sua liberdade – «hac libertate nos Christus liberavit» [15] – e, no fundo, nosso coração não se conforma com menos.

Amadurecer é aprender a viver de acordo com ideais altos. Não se trata simplesmente de conhecer uns preceitos ou adquirir uma visão cada vez mais afinada das repercussões dos nossos atos. Decidir-se a ser bons – santos, em última instância – supõe identificar-se com Cristo, sabendo descobrir as razões do estilo de vida que Ele nos propõe. Implica, portanto, conhecer o sentido das normas morais, que nos ensinam a que bens devemos aspirar, como devemos viver para alcançar uma existência plena. E isto se consegue incorporando as virtudes cristãs ao nosso modo de ser.

Os pilares do caráter

O saber moral não é um discurso abstrato, nem uma técnica. A formação da consciência requer um fortalecimento do caráter que se apoia sobre as virtudes como seus pilares. Estas assentam a personalidade, estabilizam-na, transmitem-lhe equilíbrio. Capacitam-nos a sair de nós mesmos, do egocentrismo, e dirigir o foco dos nossos interesses para fora de nós, para Deus e para os outros. A pessoa virtuosa está centrada, possui medida em todo, é reta, íntegra. Em troca, quem carece de virtudes dificilmente será capaz de empreender grandes projetos ou de realizar grandes ideais. Sua vida será feita de improvisações e oscilações, de modo que não será confiável, nem sequer para si mesma.

Cultivar as virtudes expande a nossa liberdade. A virtude não tem nada a ver com o acostumar-se ou com a rotina. É claro que não basta uma única ação para que um hábito operativo bom arraigue, para que se solidifique no nosso modo de ser e leve- nos a realizar o bem com mais facilidade. A repetição sucessiva ajuda os hábitos a se estabilizarem: tornamo-nos bons sendo bons. Repetir a resolução de estudar na hora marcada, por exemplo, faz que a segunda vez nos custe menos que a primeira, e a terceira menos que a segunda, mas é preciso perseverar na determinação de começar a estudar para manter o hábito de estudo, senão este se perde.

A renovação do espírito

As virtudes, humanas e sobrenaturais, orientam-nos para o bem, para o que satisfaz as nossas aspirações. Ajudam-nos a alcançar a autêntica felicidade, que consiste em unir-se a Deus: «Ora, a vida eterna consiste em que conheçam a ti, um só Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo que enviaste» [16]. Conferem facilidade para atuar de acordo com os preceitos morais, que não são vistos somente como normas a cumprir, mas como um caminho que conduz à perfeição cristã, à identificação com Jesus Cristo de acordo com o estilo de vida das bem-aventuranças, que são como o retrato de seu rosto e «falam de atitudes e disposições de fundo da existência» [17] que levam à vida eterna.

Abre-se, então, um caminho de crescimento na vida cristã, segundo as palavras de São Paulo: «transformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito» [18]. A graça muda o modo de julgarmos os diversos acontecimentos, e dá-nos critérios novos para atuar. Progressivamente, aprendemos a ajustar nosso modo de ver as coisas à vontade de Deus, que se expressa também na lei moral, de modo que amamos o bem, a vida santa, e saboreamos «o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito» [19]. Alcança-se uma maturidade moral e afetiva com sentido cristão, que leva a apreciar com facilidade o que é autenticamente nobre, verdadeiro, justo e belo, e a repelir o pecado, que ofende a dignidade dos filhos de Deus.

Este caminho leva a formar, como dizia São Josemaria, uma «alma de critério» [20]. Mas, quais são as características deste critério? Em outro momento, ele mesmo acrescenta: «o critério implica maturidade, firmeza de convicções, conhecimento suficiente da doutrina, delicadeza de espírito, educação da vontade» [21]. Que grande retrato da personalidade cristã! Uma maturidade que nos ajuda a tomar decisões com liberdade interior e fazê-las próprias, ou seja, com a responsabilidade de quem sabe prestar conta delas. Ter convicções fortes seguras, baseadas num conhecimento profundo da doutrina cristã que alcançamos através de aulas ou palestras de formação, leituras, reflexão e, especialmente, do exemplo dos outros, pois as «verdadeiras estrelas da nossa vida são as pessoas que souberam viver com retidão» [22]. Isto é combinado com a delicadeza de espírito, que se traduz em afabilidade com as pessoas, e com a educação da vontade, que consiste em viver uma vida virtuosa. Uma «alma de critério», portanto, sabe perguntar-se nas diversas circunstâncias: o que espera Deus de mim? Pede luzes ao Espírito Santo, recorre aos princípios que assimilou, aconselha-se com quem pode ajudá-lo, e sabe atuar em consequência.

Fruto do amor

Assim entendido, o comportamento moral – que se concretiza em viver os mandamentos com a força da virtude – é fruto do amor, que nos compromete na busca e promoção do bem. Um amor assim vai além do sentimento, que por sua própria natureza é flutuante e fugaz: não depende dos humores do momento, do que me agrada, ou do que gostaria em determinada circunstância. Pelo contrário, amar e ser amado supõe uma doação de si, que se fundamenta na alegria que um coração sente ao saber-se amado por Deus e ao aspirar aos grandes ideais pelos quais vale à pena empenhar a liberdade: «Na entrega voluntária, em cada instante dessa dedicação, a liberdade renova o amor, e renovar-se é ser continuamente jovem, generoso, capaz de grandes ideais e de grandes sacrifícios» [23]

A perfeição cristã não se limita ao cumprimento de umas normas, mas também não consiste no desenvolvimento isolado de capacidades como o autocontrole ou a eficiência. Impulsiona a entrega da liberdade ao Senhor, a responder ao seu convite: «vem e segue-me» [24], com a ajuda de sua graça. Trata-se de viver segundo o Espírito [25], movidos pela caridade, de modo que se deseja servir aos outros, e se compreende que a lei de Deus é o melhor caminho para praticar esse amor escolhido livremente. Não é questão de cumprir regras, mas de aderir a Jesus, de compartilhar a sua vida e o seu destino, obedecendo amorosamente à vontade do Pai.

Sem ser perfeccionistas

Este empenho por amadurecer em virtudes é alheio a qualquer desejo narcisista de perfeição. Lutamos por amor a nosso Pai Deus, é nEle que temos nosso olhar fixo e não em nós mesmos. Convém, portanto, descartar a tendência ao perfeccionismo, que talvez poderia surgir se considerássemos a nossa luta interior erroneamente de acordo com critérios de eficácia, precisão, rendimento..., muito em voga em alguns contextos profissionais, mas que diluem a vida moral cristã. A santidade consiste principalmente em amar a Deus.

De fato, a maturidade leva a harmonizar o desejo de atuar bem, com as limitações reais que experimentamos em nós mesmos e nas outras pessoas. Em algumas ocasiões podemos sentir vontade de dizer com São Paulo: «Não entendo, absolutamente, o que faço, pois não faço o que quero; faço o que aborreço (...). Sou um homem infeliz! Quem me livrará deste corpo que me acarreta a morte?» [26]. Sem dúvida, não perdemos a paz, pois Deus nos diz o mesmo que ao Apóstolo: «Basta-te a minha graça» [27]. Enchamo-nos de agradecimento e esperança, pois o Senhor conta com as nossas limitações, contanto que nos impulsionem a converter-nos, a recorrer à sua ajuda.

De novo aqui, o cristão encontra uma explicação na primeira resposta de Jesus ao jovem: «Só Deus é bom» [28]. Da bondade de Deus vivemos nós, seus filhos. Ele nos dá a força para orientar toda nossa vida para o que realmente é valioso, compreender o que é bom e amá-lo, de nos prepararmos para a missão que Ele nos confiou.

J.M. Barrio e R. Valdés


[1]Mc 10, 17.

[2]Mc 10, 18.

[3]São João Paulo II, Enc. Veritatis splendor (6-08-1993), n. 9. Cf. Mt 22, 37.

[4]Mt 19, 17.

[5]Cf. Mc 10, 20.

[6]Mt 19, 18.

[7]Mt 19, 18-19.

[8]São João Paulo II, Enc. Veritatis splendor, n. 13.

[9]Cf. In Ioannis Evangelium Tractatus, 41, 9-10 (cit. em Veritatis splendor, n. 13).

[10]Mc 10, 21.

[11]Ibid.

[12]Cf. Caminho, n. 337.

[13]Mt 19, 17.

[14]Sl 118 (119), 32.

[15]Gal 5, 1

[16]Jo 17, 3.

[17]São João Paulo II, Enc. Veritatis splendor, n. 16.

[18]Rm 12, 2.

[19]Ibid.

[20]Caminho, ao leitor.

[21]Questões atuais do cristianismo, n. 93.

[22]Bento XVI, Enc. Spe salvi (30-XI-2007), n. 49.

[23]Amigos de Deus, n. 31.

[24]Mc 10, 21.

[25]Cf. Ga 5, 16.

[26]Rm 7, 15.24

[27]2 Cor 12, 9.

[28]Mt 19, 17.