Contemplação: união íntima e vital com Deus

Sexto artigo da série “Como as mãos de Deus”, com textos da pregação de São Josemaria sobre a família.

Homem fazendo atividades manuais crianças

Tradução de textos da pregação de São Josemaria sobre a família publicados no livro “Como las manos de Dios” de Antonio Vázquez (Ed. Palabra)


Gostaria que nunca se esquecessem que Deus os espera a cada momento, em cada ocupação. Não há limites entre oração e ação. É uma união íntima e vital: isso é a contemplação. Eis uma das palavras que mais ouvi, referindo-se a múltiplos aspectos, da boca de Tomás Alvira, pai de nove filhos e eminente profissional da educação, que foi o primeiro Supernumerário do Opus Dei. Em algumas notas manuscritas, datadas de alguns anos antes da sua morte, referindo-se a São Josemaria, comentava: “(...) já em 1937, ele me mostrou o caminho para ter presença de Deus de modo constante”.

O professor García Hoz, o primeiro catedrático de Pedagogia Experimental na Espanha, reflete esse mesmo convite da seguinte maneira:

“Era o ano de 1940 ou 41 e fazia um ou dois anos que recebia orientação espiritual do fundador do Opus Dei, embora naquela época eu não pertencesse à Obra. Eu era casado, já tinha uma filha, e esperava, como aconteceu na realidade, a chegada de mais filhos, tendo que trabalhar para sustentar a família. Nestas circunstâncias, sem referência específica à possibilidade de que com o tempo eu pudesse fazer parte do Opus Dei, referindo-se genericamente à orientação da minha vida, São Josemaria usou uma frase que então me encheu de espanto: Deus o chama por caminhos de contemplação”.

Convém continuar a citação para observar sua reação. “Pessoalmente, eu não desconhecia a terminologia de ascetismo e misticismo, já que acabava de concluir minha tese de doutorado na Faculdade de Filosofia e Letras, que mais tarde serviria como base para a minha primeira publicação: ‘A pedagogia da luta ascética’. Porém, ao ouvir a palavra contemplação falando da minha vida, tive uma impressão realmente forte. Não era uma expressão presente somente na vida de muitos homens santos que se relacionavam com Deus com certa familiaridade. Não era uma questão histórica, filosófica, literária, religiosa, mas uma questão viva e latejante que eu teria que tornar realidade”. Do contrário, a doutrina do Cristianismo, a vida da graça, andariam como que roçando o buliçoso avançar da história humana, mas sem se encontrarem com ele.

São Josemaria não propunha agudas abstrações intelectuais às primeiras pessoas casadas que se aproximavam dele, nem fazia malabarismos com as ideias. Interessava-lhe – porque isso interessa a Deus – que transformassem os acontecimentos do “hoje” e “agora” em um campo permanente, onde pudessem lutar sua batalha diária. É a mesma ideia que repetia no campus da Universidade de Navarra. Eu lhes asseguro, meus filhos, que quando um cristão desempenha com amor a mais intranscendente das ações diárias, está desempenhando algo de onde transborda a transcendência de Deus.

Deus ouve-nos e fala conosco, quando o procuramos dentro das paredes de nossa casa

Não é uma tarefa fácil para uma criatura indigente como o ser humano, marcado pela herança do pecado, mas é viável. Exige esforço consistente e recomeçar muitas vezes ao dia. Deus olha para nós, ouve-nos e fala conosco, quando o procuramos dentro das paredes de nossa casa. Ele está sempre disponível para nos ouvir, mesmo quando estamos ocupados dando de comer a um filho, consertando móveis ou trocando fraldas.

Como nos lembra o Catecismo da Igreja Católica: esta “união íntima e vital com Deus” pode ser esquecida, desconhecida e mesmo explicitamente rejeitada pelo homem. Mas Deus não cessa de chamar cada homem a buscá-Lo para que ele viva e encontre a felicidade. São Josemaria fazia questão de ter isso sempre presente entre as tarefas mais corriqueiras. Invocar-me-eis e Eu vos atenderei. E nós o invocamos conversando com Ele, dirigindo-nos a Ele. Por isso, temos de pôr em prática a exortação do Apóstolo: Sine intermissione orate; rezai sempre, aconteça o que acontecer. Não só de coração, mas com todo o coração (Santo Ambrósio, Expositio in Psalmum CXVIII, 19,12 (PL 15, 1471)).

Ele não nos abandona, somos nós que podemos virar o rosto precisamente quando mais precisamos dele. O desânimo pode se apresentar de mil maneiras, tanto para o que é divino quanto para o que é humano. Podemos sentir como se estivéssemos presos, porque nossa alma se retrai como um trapo usado: nada nos estimula ou nos atrai, nos sentimos incompreendidos pelo resto da família, a falta de vontade nos amolece, o horizonte escurece, com ou sem motivo, e somos abandonados pelos sentimentos, até converter-nos em mármore. É precisamente nesse momento que Deus espera que nos aproximemos dele para conversar sobre o nosso vazio ou nossa turbulência. É quando temos que ter certeza de algumas palavras eternas: Eu vos livrarei do cativeiro, estejais onde estiverdes(Jer 29,14). Livramo-nos da escravidão pela oração.

O ambiente que nos rodeia pode atiçar a nossa sensualidade até cobrir os nossos olhos de escamas; os desejos desenfreados de poder ou o desejo irreprimível de consumir tentarão afogar partes de nossa vida em um ritmo cada vez maior; e uma sensação distorcida de liberdade clamará a fim de desvencilhar-nos de nossos compromissos. Tudo isso está presente em nossas vidas, mas com o mesmo realismo com que sentimos pena de nós mesmos para consolar o mal-estar de nossa tibieza, temos que lembrar a grande verdade que São Paulo, que também teve muitas dificuldades nos recorda: Porque estou convencido de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas presentes, nem as coisas futuras, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura será capaz de nos separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor. Isso é mais real do que a angústia que às vezes toma conta de nossa alma.

na nossa vida familiar, a contemplação se concretiza em ação
e a ação se torna contemplativa

Ter esta convicção firmemente estabelecida em nós, sentir-nos amados assim, leva a que, na nossa vida familiar, a contemplação se concretiza em ação e a ação se torna contemplativa. Deus não aparece apenas como um recurso emergencial a ser procurado em ocasiões especialmente críticas. Nosso encontro com Cristo não se expressa somente na petição de ajuda, mas também nas ações de graças, louvor, adoração, contemplação, escuta e viveza de afeto até o “arrebatamento do coração”.

Nada disso faz com que desgrudemos os pés do chão ou caminhemos levitando pelos corredores de nossa casa. Não é assim, pois uma oração intensa não afasta do compromisso da história: abrir o coração ao amor de Deus, abre-o também ao amor dos irmãos e torna-nos capazes de construir a história segundo o desígnio de Deus.

São Josemaria revela-nos um panorama imenso e cheio de esperança: O Senhor quis que os seus filhos, os que recebemos o dom da fé, manifestássemos a original visão otimista da criação, o “amor ao mundo” que palpita no cristianismo. Essa é a luz que devemos difundir para iluminar tantas trevas e evitar tantos tropeços. Será viver a nossa vida matrimonial e familiar com naturalidade, isto é, sobrenaturalizando-a.

nós, pobres criaturas, podemos ter a
honra de emprestar nossas mãos a Deus

O encontro com Cristo nas circunstâncias mais comuns, a santidade pessoal, a unidade de vida, a contemplação, são sempre novos anúncios que São Josemaria oferecia a todos os homens e mulheres naquela manhã de outubro de 1967, no campus da Universidade de Navarra. As jovens gerações de hoje foram chamadas pelo Papa João Paulo II com renovada urgência a fazer-se “sentinelas da manhã” (cfr. Is 21,11-12) nesta aurora do novo milênio. Ao mesmo tempo, recordava-lhes que é muito importante que tudo o que com a ajuda de Deus nos propusermos, esteja profundamente radicado na contemplação e na oração. O nosso tempo é vivido em contínuo movimento que muitas vezes chega à agitação, caindo-se facilmente no risco de ‘fazer por fazer’. Há que resistir a esta tentação, procurando o ‘ser’ acima do ‘fazer‘. Essa é a forma como nós, pobres criaturas, podemos ter a honra de emprestar nossas mãos a Deus.

(Extraído do livro de Antonio Vázquez “Como las manos de Deus”, edições Palabra, Madri)

Tradução: Mônica Diez