Algo grande e que seja amor (12): a vocação matrimonial

Deus abençoa a normalidade da vida familiar e quer habitar nela. Um passeio pelo livro de Tobias pode ajudar a redescobrir essa realidade.

Quando são Josemaria começou a falar de vocação ao casamento, há quase um século, a união desses dois conceitos costumava gerar desconcerto, ou até provocar risadas: como se estivesse falando de um pássaro sem asas ou de uma roda quadrada: “Estás rindo porque te digo que tens “vocação matrimonial”? – Pois é verdade: isso mesmo, vocação”[1]. Na mentalidade daquela época, e às vezes ainda na de hoje, “ter vocação” significava deixar a normalidade da vida para poder servir a Deus e à Igreja. Deixar de um modo ou outro o habitual, que para a maioria das pessoas significa ter uma família, filhos, casa, trabalho, compras, boletos, imprevistos, risadas, brigas entre irmãos, tardes em pronto socorros, sobras na geladeira.

Toda essa infinidade de coisas, variadas e imprevisíveis, como a própria vida, não só cabe nessa “roda quadrada” da vocação matrimonial, como encontra nela a sua melhor versão possível. O “sentido vocacional do matrimônio”[2] parte precisamente da convicção de que Deus abençoa a normalidade da vida familiar e quer habitar nela. “Tu, porém, és o santo e habitas entre os louvores de Israel”, diz o salmo que Jesus reza na Cruz (Sl 22,4). Deus, o Santo, quer viver no meio das vidas normalíssimas das famílias. Vidas chamadas a se converterem, pelo carinho, em louvores a Ele: no céu, mesmo com todos os “defeitos de fabricação” desta sede provisória que é a vida. Por isso, “não deixes passar um dia / sem descobrir um segredo, grande ou pequeno./ Seja tua vida alerta / descoberta cotidiana. / Por cada migalha de pão duro / que Deus te dê, tu dá-lhe / o diamante mais fresco da tua alma”[3].

Que faça uma boa viagem

A pessoa descobre que recebeu muito amor em sua vida e que está chamada a isso mesmo: a dar amor

Aquele jovem ria ao ouvir falar de vocação matrimonial, mas ficou pensativo. A “provocação” ia acompanhada de um conselho: “Pede a São Rafael que te conduza castamente ao termo do caminho, como a Tobias”[4]. São Josemaria se referia ao único relato da Bíblia que fala deste Arcanjo, por quem tinha um carinho especial; tanto, que lhe confiou seu apostolado com os jovens desde o início[5]. “O livro de Tobias é encantador”[6], dizia uma vez. Embora toda a história do livro se concentre em uma viagem, permite-nos entrar diretamente na vida de dois lares, e assistir ao nascimento de um terceiro. Até a viagem participa desse ambiente familiar, com um detalhe que não passou desapercebido pelos artistas ao longo dos séculos: este livro também é o único lugar das Escrituras no qual aparece um cachorro de estimação, que acompanha Tobias e são Rafael do início ao fim de sua viagem (cfr. Tb 6,1; 11,4).

Quando Tobias foi embora, o seu pai o abençoou com estas palavras: “Deus, que está no céu, vos proteja e vos traga de volta sãos e salvos. Que o seu anjo vos acompanhe com saúde, meu filho!” (Tb 5,17). São Josemaria parafraseava-as ao dar sua benção aos que iam viajar: “que o Senhor esteja em teu caminho, e seu anjo te acompanhe”[7] E viagem – a verdadeira viagem, a mais decisiva – é o caminho da vida, pelo que caminham juntos os que se entregam reciprocamente no casamento, respondendo a um sonho de Deus que se remonta à origem do mundo[8]. Como é importante que os jovens descubram, e que redescubram também depois de muitos anos de viagem, “a beleza da vocação para formar uma família cristã”[9]: a chamada a uma santidade que não é de segunda categoria, e sim de primeira.

Quando a vida começa de verdade

A vocação pessoal desperta com uma descoberta simples mas cheia de consequências: a convicção de que o sentido, a verdade da nossa vida, não consiste em viver para nós mesmos, para as nossas coisas, e sim para os outros. A pessoa descobre que recebeu muito amor em sua vida e que está chamada a isso mesmo: a dar amor. E que só assim se encontrará verdadeiramente a si mesma. Dar amor, não somente nos tempos livres para tranquilizar a consciência: transformar o amor em nosso projeto de vida, no centro de gravidade de todos os outros projetos (os que conseguirem permanecer em órbita).

Antes e depois do seu casamento com Sara, o jovem Tobias recebe vários conselhos nesse sentido: são chamadas ao mais nobre que existe nele. Seu pai Tobit, que o envia em viagem para procurar um dinheiro pensando no futuro (cfr. Tb 4,2), preocupa-se em transmitir em primeiro lugar a sua herança mais importante; o que tem mais valor em sua vida: “honra tua mãe. Não a abandones todos os dias de tua vida e faz o que lhe agrada. Não entristeças o seu espírito em coisa alguma (...) não consintas em pecar (...). Segundo o que tiveres, conforme a importância dos teus bens, dá a esmola (...) Em todas as circunstâncias bendize o Senhor e pede-lhe que se tornem retos os teus caminhos, e todas as tuas veredas e planos serão bem-sucedidos” (Tb 4,3-19). Semanas depois, Tobias, recém-casado, empreende o caminho de volta para a casa dos seus pais, e a sua nova sogra se despede dele assim: “Entrego-te minha filha em confiança. Não a magoes em nenhum dia da tua vida. Vai, meu filho, em paz. De agora em diante eu sou tua mãe, e Sara é tua irmã [mulher]” (Tb 10,13).

“Não entristeças o seu espírito (...) Não a magoes em nenhum dia da tua vida”. Deus chama os esposos a se protegerem, a se cuidarem, a se desviverem: é aí que está o segredo da sua realização pessoal que, justamente por isso, não pode ser só auto realização. Viver, com toda a profundidade do termo, significa dar a vida. Jesus viveu assim: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Também viveram assim São José e Santa Maria, com o amor mais simples, terno e delicado que já existiu na terra, cuidando um do outro, e cuidando acima de tudo da Vida feita carne. E Deus quer que nós, seus discípulos, vivamos assim também, para que onde quer que estejamos irradiemos sua alegria, sua vontade de viver. Esse é o núcleo do sentido de missão cristão.

Viver significa dar vida. Assim viveram São José e Santa Maria

“Nossas cidades estão desertificadas por falta de amor, por falta de sorriso. Muitos divertimentos, numerosas coisas com as quais perder tempo, rir, mas falta o amor. O sorriso de uma família é capaz de vencer esta desertificação das nossas cidades. E esta é a vitória do amor da família. Nenhuma engenharia econômica e política é capaz de substituir esta relação das famílias. O projeto de Babel edifica arranha-céus sem vida. O Espírito de Deus, ao contrário, faz florescer os desertos”[10].

Viver significa dar vida. Esta descoberta, que pode ser feita já na adolescência, mas que às vezes chega muito mais tarde, marca a verdadeira passagem da infância para a maturidade humana. Pode-se dizer que só então se começa a ser verdadeiramente pessoa; que só então a vida começa de verdade. Porque “viver é querer mais, sempre mais; querer, não por apetite, e sim por anseio. Ansiar, este é o sinal da vida; amar, isto é a vida. Amar a ponto de poder se doar pelo amado. Poder esquecer-se de si mesmo, isto é ser você mesmo; poder morrer por algo, isto é viver. Aquele que só pensa em si não é ninguém, está vazio; o que não é capaz de sentir o gosto de morrer é porque já está morto. Só aquele que pode senti-lo, aquele que pode esquecer de si mesmo, aquele pode doar-se, aquele que ama, em uma palavra, está vivo. E então basta começar a caminhar”[11].

O alcance de um sim

Observando a vocação matrimonial com essa perspectiva, ela se manifesta como algo bem diferente de “um impulso para a satisfação própria, ou um simples recurso para completarmos em moldes egoístas a nossa personalidade”[12]. A personalidade só se desenvolve verdadeiramente quando a pessoa é capaz de se entregar a outra pessoa. Além disso, a vida matrimonial é fonte de muitas satisfações e alegrias; mas também traz problemas, exigências, decepções. Ninguém está isento disso e, no entanto, que fácil é “fugir” dessa faceta menos bonita do amor: que fácil é desprezar as migalhas de pão.

Um contraste pode nos ajudar a considerar essa realidade. Por um lado, a perfeição de algumas festas de casamento, sem nenhum defeito, estudadas até o último milímetro para dar toda a solenidade possível para um evento único na vida e, quem sabe também, para assegurar o prestígio social da família. Por outro, o desencanto e o descuido que podem se infiltrar facilmente com o passar dos meses e dos anos, diante da imperfeição da vida familiar em seu desdobramento cotidiano: quando surgem problemas, quando se descobrem os defeitos da outra pessoa, e os dois parecem incapazes de conversar, de ouvirem um ao outro, de curar as feridas, de derramar carinho. Assim pode se ofuscar o “sentido vocacional do matrimônio”, pelo qual se sabiam chamados a dar o que são... a ser pai, mãe, marido, mulher... por vocação. Que pena: uma família que Deus queria feliz, mesmo no meio das dificuldades, fica no meio do caminho, “aguentando”. A novidade que estava querendo nascer no mundo com o seu amor mútuo, com o seu lar... a novidade, a verdadeira vida, parece estar em outro lugar. E, no entanto, está ali na esquina, mesmo que a esquina esteja um pouco despedaçada, o que acaba acontecendo com qualquer esquina, que está simplesmente pedindo um pouco de carinho e atenção.

No dia em que um homem e uma mulher se casam, respondem “sim” à pergunta sobre seu amor recíproco. No entanto, a verdadeira resposta só chega com a vida: a resposta tem que se encarnar, pouco a pouco, no “para sempre” desse sim mútuo. “Uma pessoa sempre responde com a sua vida inteira às perguntas mais importantes. Não importa o que diz entretanto, com que palavras e argumentos se defende. No fim, no fim de tudo, com os fatos da sua vida responde às perguntas que o mundo lhe dirigiu com tanta insistência (...): Quem és tu? ... Que querias realmente? (...) no fim, uma pessoa responde com toda a sua vida”[13]. E esse sim de toda a vida, conquistado uma e outra vez, vai se tornando cada vez mais profundo e autêntico: vai transformando a inevitável ingenuidade dos inicios em uma inocência lúcida, mas sem cinismo; em um “sim, querido” que conhece, mas que ama.

"O sorriso de uma família é capaz de vencer esta desertificação das nossas cidades" (Papa Francisco)

A profundidade deste sim, indispensável para encontrar de verdade o amor, é também o motivo pelo qual a Igreja persiste, contra a correnteza, em seu ensinamento sobre o namoro e a abertura dos esposos à vida. Embora passe por muitas e duras críticas, insiste com paciência porque sabe que Deus a chama para custodiar o amor pessoal, especialmente no seu “lugar nativo”[14] . Com isso, a Igreja não defende uma verdade abstrata, de manual: pelo contrário, protege a verdade concreta das vidas, das famílias; protege as relações entre as pessoas da verdadeira doença mortal... um veneno que se infiltra sutilmente, fantasiado de romance e de triunfo no início, até se revelar de repente, com o passar dos anos, como uma prisão insuportável, principalmente se conseguiu se apoderar dos dois: o egoísmo.

Existe, sim, uma aparente magnanimidade e alegria de viver em quem se diz simplesmente: “vou aproveitar tudo o que possa do meu corpo e de quem quiser se divertir comigo”. É um modo de ver a vida no qual se ouve um eco do Gênesis: a juventude é uma fruta saborosa... por que não a comer? Por que Deus ia querer tirar essa doçura da minha boca? (cfr. Gn 3,2.6). Os jovens cristãos são de carne e osso: também sentem essa atração, mas percebem que é uma miragem; querem ver com mais profundidade. Com seu esforço para manter o amor puro, ou para reconquistar a inocência que podem ter perdido, preparam-se para amar sem possuir o outro, para amar sem consumir. De algum jeito se perguntam: com quem vou compartilhar essa vontade de viver que sinto borbulhar dentro de mim? Será que essa é realmente a pessoa certa? Vamos nos amar de verdade, ou só nos desejamos?”. Sabem que, junto com o seu corpo, também vão dar o seu coração, a sua pessoa, a sua liberdade. Sabem que tudo isso só se encaixa realmente dentro de um “sim para sempre”; sabem que nem eles nem ninguém valem menos que um sim incondicional; e que sem essa decisão não estão preparados para dar esse presente, e o outro também não está preparado para recebê-lo: seria um presente que os deixaria vazios por dentro, mesmo que só descobrissem isso depois de um tempo.

A mesma “lógica” de fundo está na vocação de quem vive o celibato, que também ama Deus com o seu corpo, porque o entrega a cada dia. Sim, matrimônio e celibato se iluminam e precisam um do outro, porque ambos irradiam a lógica de uma gratuidade que só se entende em Deus, na imagem de si que Deus colocou em nós, pela qual nos sabemos chamados a dar a vida: aos pais, aos filhos, aos avós, a todos.

Quando Jesus revela esta profundidade do amor, os seus discípulos ficam perplexos, a ponto de Ele ter que lhes dizer: “Nem todos são capazes de entender isso, mas só aqueles a quem é concedido” (Mt 19,11). Os jovens e os pais cristãos, mesmo que às vezes sejam incompreendidos, devem saber que no fundo muitos os admiram, ainda que talvez não saibam muito bem porque. Admiram porque com seu amor sincero estão irradiando a alegria e a liberdade do amor de Deus, que gritam “com gemidos inefáveis” (Rm 8,26) nos corações de cada homem e de cada mulher.

Coração que não queira sofrer

O nome Rafael significa “Deus cura”, ou seja, “Deus cuida”. A intervenção do Arcanjo na história de Tobit, Ana, Tobias e Sara apresenta de modo visível uma realidade geralmente imperceptível: a proteção de Deus sobre as famílias, a importância que Ele dá a que sejam felizes (cfr. Tb 12,11-15). Deus quer estar perto de nós, mesmo que às vezes não O deixemos, porque no fundo não O queremos perto. Na história do filho pródigo, que partiu para “um lugar distante” (Lc 15,13), podemos reconhecer não só histórias individuais, mas também histórias sociais e culturais: um mundo que se afasta de Deus e que se converte em um ambiente hostil, no qual muitas famílias sofrem, e às vezes naufragam. Mas, como o pai da parábola, Deus não se cansa de esperar, e sempre acaba achando um modo de estar presente nessas realidades, às vezes trágicas, indo ao encontro de cada pessoa, mesmo que tenha que curar muitas feridas.

A Igreja protege as relações entre as pessoas da verdadeira doença mortal, o egoísmo

O livro de Tobias também nos mostra como a proximidade e a solicitude de Deus pelas famílias não significa uma proteção de toda e qualquer dificuldade, interna ou externa. Tobit, por exemplo, é um homem íntegro, heroico inclusive, e, no entanto, Deus permite que fique cego (cfr. Tb 2,10). Sua mulher tem que conseguir dinheiro para a família e um dia, junto com o salário, ganha um cabrito de presente. Tobit, talvez com um mau humor por causa da sua deficiência, pensa que sua mulher roubou o cabrito e provoca sem querer um “furacão” na família. Conta-nos o caso em primeira pessoa: “eu, porém, não acreditei nela e continuei dizendo que restituísse o cabrito a seus donos. Por causa disso, sentia-me envergonhado diante dela. Então ela replicou-me: “Onde estão as tuas esmolas? Onde, as tuas boas obras? Vê que todas elas são reconhecidas só por ti!” (Tb 2,14). Diante da dureza desta resposta, Tobit fica “com a alma cheia de tristeza”; começa a rezar entre soluços, e pede a Deus que o leve consigo (cfr. Tb 3,1-6).

Mas Tobit continua se esforçando para dar alegrias à sua mulher, embora nem sempre consiga. Assim, por exemplo, quando Tobias já está voltando para casa, felizmente casado e com o dinheiro que o seu pai tinha encarregado de recuperar, a sua mãe Ana, que desde o início era contra a ideia da viagem, teme o pior: “meu filho já não vive (...). Ai de mim, filho, luz dos meus olhos! Por que te deixei partir?”. Tobit, que também está preocupado, tenta acalmá-la: “Fica tranquila e não te preocupes, minha irmã, o nosso filho está bem! Decerto algum imprevisto os retém por lá: o homem que o acompanha é de confiança, pois é dos nossos irmãos. Não te aflijas por ele, minha irmã, que ele já vem!”. Mas as suas razões não surtem efeito. “Não me digas mais nada e não me enganes: meu filho morreu!”, respondeu Ana. Contudo, numa incoerência muito maternal, continua esperando a sua volta secretamente: “diariamente observava o caminho, por onde o filho tinha partido. Nada comia. Ao pôr do sol ela entrava de novo em casa e passava a noite toda em lágrimas, sem dormir” (Tb 10,1-7).

É comovente ver que, há milênios, os problemas cotidianos das famílias não mudaram tanto. Incompreensões, faltas de comunicação, angústias pelos filhos... “Formaria um pobre conceito do matrimônio e do carinho humano quem pensasse que, ao tropeçar com essas dificuldades, o amor e a alegria se acabam”[15]. A paixão inicial – essa força que leva a sonhar com o projeto de formar uma família – tende a deixar quase todos os defeitos do outro de lado. Mas bastam algumas semanas de convivência constante para perceber que ninguém chegou perfeito no dia do casamento, e por isso a vida matrimonial é um caminho de conversão em conjunto, em equipe. Se marido e mulher continuarem dando cada dia uma nova oportunidade ao outro, os corações dos dois vão ficando cada vez mais belos, ainda que se mantenham, e até se consolidem algumas das suas limitações.

Uma antiga canção diz assim: “coração que não queira sofrer dores, que passe a vida inteira livre de amores”[16]. De fato, “Amar é ser vulnerável. Ame qualquer coisa e seu coração irá certamente ser espremido e possivelmente partido. Se quiser ter a certeza de mantê-lo intacto, não deve dá-lo a ninguém, nem mesmo a um animal. Envolva-o cuidadosamente em passatempos e pequenos confortos, evite todos os envolvimentos, feche-o com segurança no esquife ou no caixão do seu egoísmo”[17]. Certamente os casais não passam o que Tobias e Sara passaram: tiveram que enfrentar um perigo de morte na sua noite de núpcias, por causa da ação de um espírito mau (cfr. Tb 6,14-15; 7,11). Mas o demônio do egoísmo – doença mortal – tortura constantemente todas as famílias, com a tentação de “converter em montanhas” o que não passa de “pequenos atritos sem importância”[18].

“brigar, sempre que não seja muito frequente, também é uma manifestação de amor, quase uma necessidade” (São Josemaria)

Por isso, é muito importante que marido e mulher falem claramente, mesmo que sejam coisas fortes, para evitar que cada um vá se escondendo pouco a pouco atrás de um muro: para reconstruir uma e outra vez os sentimentos que tornam o amor possível. São Josemaria diz que “brigar, sempre que não seja muito frequente, também é uma manifestação de amor, quase uma necessidade” dos esposos[19]. A água tem que fluir, porque quando se estanca apodrece. Por isso também é muito importante que os pais “consigam tempo para estar com os filhos e falar com eles (...), saber reconhecer a parte de verdade – ou a verdade inteira – que possa haver em algumas de suas rebeldias”[20]. Falar e conviver: entre marido e mulher, entre pais e filhos.

E falar, sobre tudo, com Deus, para que possa nos dar as suas luzes: “lâmpada para meus passos é tua palavra e luz no meu caminho” (Sl 119,105). Mesmo que o relato bíblico não mostre os desencontros de Tobias e Sara, podemos imaginar que os teriam, como Tobit e Ana, e como todas as famílias. Mas também podemos imaginá-los muito unidos até o final de suas vidas, porque vemos o seu casamento nascer e crescer na intimidade com Deus. “Tu és bendito, Deus de nossos pais, e é bendito o teu Nome pelos séculos dos séculos – rezam na noite de núpcias -. Tenhas misericórdia, de mim e dela, e que possamos chegar, os dois, a uma ditosa velhice” (Tb 8,5.7).

***

São João Paulo II, “o Papa da família”[21], uma vez comparou o amor esponsal do Cântico dos Cânticos com o amor de Tobias e Sara. Os esposos do Cântico, dizia, “declaram mutuamente, com palavras fogosas, seu amor humano. Os novos esposos do livro de Tobias pedem a Deus saber responder ao amor”[22]. Ao comparar esses dois exemplos de amor matrimonial, queria suscitar a pergunta: qual dos dois reflete melhor esse tipo de amor? A resposta é simples: ambos. No dia em que dois corações se encontram, a sua vocação adquire um rosto novo e jovem, como o dos esposos do Cântico. Mas esse rosto recupera sua juventude cada vez que, ao longo da vida, os dois acolhem de novo sua chamada para responder ao amor. E então, sim, esse amor é forte como a morte[23].

Carlos Ayxelà


[1] São Josemaria, Caminho, n. 27.

[2] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 30. Cfr. os nn. 22-30, que estão dentro da homilia “O matrimônio, vocação cristã”.

[3] Tradução livre de Juan Jamón Jiménez, Eternidade, Madri, 1918 p. 126.

[4] São Josemaria, Caminho, n. 27. Cfr. também Ibidem, n. 360.

[5] Cfr. São Josemaria, Apontamentos íntimos, n. 1697 (10/10/1932), em A. Vázquez de Prada, O Fundador do Opus Dei, vol. 1, Quadrante, São Paulo, 2004, p. 436.

[6] São Josemaria, anotações de uma meditação, 12/10/1947, em Enquanto nos falava pelo caminho, p. 41 (AGP, Biblioteca, P18).

[7] Cfr. Ibidem. “Eu, no Cerimonial, fazendo preceder a esta benção uma súplica à Virgem, coloquei-a como benção de viagem: Beata Maria intercedente, bene ambules: et Dominus sit in itinere tuo, et Angelus eius comitetur tecum (Através da intercessão de Nossa Senhora, que o Senhor esteja em teu caminho e que seu Anjo te acompanhe)”.

[8] Por isso São João Paulo II chamava o matrimônio de “sacramento primordial” (cfr. audiência, 20/10/1982 e 23/05/1984).

[9] F. Ocáriz, Carta pastoral, 14/02/2017.

[10] Francisco, Audiência, 2/09/2015.

[11] Tradução livre de J. Maragall, “Elogio del vivir” em Vida escrita, Madri, Aguilar, 1959, p. 105.

[12] É Cristo que passa, n. 43.

[13] S. Marai, As velas ardem até o fim.

[14] F. Ocáriz, Carta pastoral, 4/06/2017.

[15] É Cristo que passa, n. 24.

[16] “A los árboles altos”, música popular à qual são Josemaria faz alusão em Caminho, n. 145.

[17] C.S. Lewis, Os quatro amores, Martins Fontes.

[18] É Cristo que passa, n. 23.

[19] Ibidem, n. 26.

[20] Ibidem, n. 27.

[21] Francisco, Homília na Canonização, 27/04/2014.

[22] São João Paulo II, Audiência, 27/06/1984.

[23] Cfr. Ibidem, e Ct 8,6.