Trabalhar bem, trabalhar por amor (8): Trabalhar por amor

Trabalhamos para quê? Só para subsistir? Para levar uma vida sem problemas? Neste artigo explica-se como o trabalho profissional está em relação directa com a felicidade, quando nasce do amor e para ele se orienta.

“O homem não pode limitar-se a fazer coisas, a construir objectos. O trabalho nasce do amor, manifesta o amor, ordena-se ao amor” [1]. Ao lermos estas palavras de S. Josemaria, é possível que nos surjam na alma algumas perguntas que abram caminho a um diálogo sincero com Deus: Trabalho para quê? Como faço o meu trabalho? Que pretendo, que procuro com o meu trabalho profissional? É a hora de nos lembrarmos de que o fim da nossa vida não é fazer coisas mas amar a Deus. “A santidade não consiste em fazer coisas cada dia mais difíceis, mas em fazê-las cada dia com mais amor“ [2].

Muita gente trabalha – e trabalha muito – mas sem santificar o seu trabalho. Fazem coisas, constroem objectos, procuram obter resultados, por sentido do dever, para ganhar dinheiro ou por ambição. Umas vezes triunfam e outras fracassam; alegram-se ou entristecem-se; sentem interesse e paixão pelo seu trabalho, ou então dececionam-see aborrecem-se. Têm satisfações de mistura com inquietações, medos e preocupações; uns deixam-se levar pela tendência para a atividade, outros pela preguiça; outros procuram evitar a todo o custo o cansaço…

Tudo isto tem um ponto comum: pertence a um único plano, ao plano da natureza humana ferida pelas consequências do pecado, com os seus conflitos e contrastes, tal qual um labirinto no qual o homem que vive segundo a carne, em palavras de S. Paulo – o animalis homo [3] -, vagueia perdido, indo de um lado para o outro, sem dar com o caminho da liberdade e do seu sentido.

Esse caminho e esse sentido só se descobrem quando erguemos o olhar e contemplamos a vida e o trabalho aqui na terra sob a luz de Deus, que nos vê lá do alto. As pessoas - escreve S. Josemaria em Caminho - têm uma visão plana, pegada à terra, de duas dimensões. Quando a tua vida for sobrenatural, obterás de Deus a terceira dimensão: a altura. E, com ela, o relevo, o peso e o volume [4].

O trabalho nasce do amor

Que significa então, para um cristão, que o trabalho nasce do amor, manifesta o amor, ordena-se ao amor? [5]

Convém primeiro considerar a que amor se refere S. Josemaria. Há um amor chamado de concupiscência, quando se ama alguma coisa para satisfação do nosso gosto sensível ou do desejo de prazer (concupiscentia). Não é, em última análise, deste amor que se trata quando um filho de Deus trabalha, se bem que muitas vezes trabalhe com gosto e o apaixone o seu trabalho profissional.

Um cristão não pode trabalhar apenas ou principalmente quando lhe apetece imenso ou quando as coisas lhe correm bem. O trabalho de um cristão tem a sua origem num outro amor muito mais elevado: o amor de benevolência, que pretende directamente o bem de outra pessoa (benevolentia), e não já o interesse pessoal. Se o amor de benevolência é mútuo chama-se amor de amizade [6], que é tanto maior quanto mais se estiver disposto, não só a dar algo pelo bem de um amigo, mas a entregar-se a si mesmo: “Ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus amigos” [7].

Como cristãos, podemos amar a Deus com amor de amizade sobrenatural, pois Ele nos tornou seus filhos e quer que o tratemos com confiança filial, e vejamos nos outros seus filhos nossos irmãos. A este amor se refere o fundador do Opus Dei, ao escrever que o trabalho nasce do amor: é o amor dos filhos de Deus, o amor sobrenatural a Deus e aos outros, por Deus: o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado [8].

Querer o bem de uma pessoa não nos leva a satisfazer sempre as suas vontades. Pode acontecer que o que ela quer não seja um bem, como sucede muito amiúde com as mães, que não dão aos filhos o que estes lhes pedem, se isso lhes pode ser prejudicial. Amar a Deus, por outro lado, é sempre querer a sua vontade, porque a vontade de Deus é o bem.

Por isso, para um cristão, o trabalho tem a sua origem no amor a Deus, já que o amor filial nos leva a querer cumprir a sua vontade, e a vontade divina é que trabalhemos [9].

Dizia S. Josemaria que, por amor a Deus, queria trabalhar como um burrinho de nora [10]. E Deus abençoou-lhe a generosidade, derramando copiosamente a sua graça, o que produziu inumeráveis frutos de santidade no mundo inteiro. Vale, portanto, a pena perguntarmo-nos com frequência por que razão trabalhamos. Por amor a Deus ou por amor próprio? Pode parecer que existem outras razões possíveis, por exemplo, que se pode trabalhar por necessidade. Isto mostra que não se fez um exame profundo, pois a necessidade não é a resposta definitiva.

Também temos de nos alimentar por necessidade, para viver, mas para que queremos viver: para a glória de Deus, como nos exorta S. Paulo [11], ou para a nossa glória pessoal? Pois para isso mesmo nos alimentamos e trabalhamos. Esta é a pergunta radical, aquela que chega ao fundamento. Não há mais alternativas. Quem se examinar sinceramente, pedindo a luz de Deus, descobre com clareza onde em última análise tem o seu coração ao desempenhar o seu trabalho profissional. E o Senhor lhe concederá também a sua graça para se decidir a purificá-lo e a dar todo o fruto de amor que Ele espera dos talentos que lhe confiou.

O trabalho é manifestação do amor

O trabalho de um cristão manifesta o amor, não só porque é o amor a Deus que o leva a trabalhar, como já considerámos, mas também porque o leva a trabalhar bem, pois Deus assim o quer. O trabalho humano é, de facto, participação na obra criadora [12], e Ele – que tudo criou por Amor – quis que as suas obras fossem perfeitas: Dei perfecta sunt opera [13], e que nós imitemos o seu modo de operar.

Modelo perfeito do trabalho humano é o trabalho de Cristo, de quem o Evangelho diz que fez tudo bem [14]. Estas palavras de louvor, que brotavam espontaneamente dos lábios de quem via os seus milagres, realizados por virtude da sua divindade, podem também aplicar-se – assim o faz S. Josemaria – ao trabalho na oficina de Nazaré, realizado por virtude da sua humanidade. Era um trabalho realizado por amor ao Pai e a nós. Um trabalho que mostrava esse Amor pela perfeição com que era feito. Não somente perfeição técnica, mas fundamentalmente perfeição humana: perfeição de todas as virtudes que o amor consegue pôr em exercício, dando-lhes um tom inconfundível: o tom da felicidade de um coração pleno de Amor, que arde em desejos de entregar a própria vida. O trabalho profissional de um cristão manifesta amor a Deus quando está bem feito. Não significa isto que o resultado seja bom, mas que se procurou realizá-lo da melhor maneira possível, usando os meios disponíveis naquelas circunstâncias concretas.

Entre o trabalho de uma pessoa que actua por amor-próprio e o dessa mesma pessoa, se começa a trabalhar por amor a Deus e aos outros, há tanta diferença como entre o sacrifício de Caim e o de Abel. Este último trabalhou para oferecer o melhor a Deus, e a sua oferenda foi agradável ao Céu. Outro tanto espera de nós o Senhor.

Para um católico, trabalhar não é cumprir, é amar: exceder-se alegremente e sempre, no dever e no sacrifício [15]. Realizai, pois, o vosso trabalho, sabendo que Deus o contempla: laborem manuum mearum respexit Deus (Gn. 31,42). O nosso trabalho deve, portanto, ser santo e digno dele: não apenas bem acabado ao pormenor, mas realizado com rectidão moral, com honradez, com nobreza, com lealdade, com justiça [16]. Assim, o trabalho profissional não se restringe a ser reto e santo, converte-se em oração [17].

Se uma pessoa trabalha por amor a Deus, a sua atividade profissional demonstra de um modo ou outro esse seu amor. É muito provável que um simples olhar a várias pessoas que estejam a realizar a mesma atividade não seja suficiente para captar o motivo pelo qual a realizam. Mas, se se pudesse observar com mais pormenor e atenção, no seu conjunto, o comportamento dessas pessoas no seu trabalho – não apenas os aspectos técnicos, mas também as relações humanas com os outros colegas, o espírito de serviço, o modo de viver a lealdade, a alegria e outras virtudes -, seria difícil que passasse despercebido, a existir realmente em algum deles, o bonus odor Christi [18], o aroma do amor de Cristo que é a substância do seu trabalho.

No final dos tempos – ensina Jesus – de dois que estiverem num campo, um será tomado e o outro será deixado. De duas mulheres que estiverem a moer com a mó, uma será tomada e a outra deixada [19]. Estavam a realizar o mesmo trabalho, mas não do mesmo modo: um era agradável a Deus e o outro não.

No entanto, o ambiente materialista que nos rodeia pode fazer-nos esquecer que estamos chamados à vida eterna, e a pensar unicamente nos bens imediatos. É por esta razão que S. Josemaria afirma: trabalhai na presença de Deus, sem ambições de glória humana. Há quem veja no trabalho um meio para conquistar honras, ou para adquirir poder ou riqueza que lhes satisfaça a ambição pessoal, ou para sentir orgulho na sua capacidade de trabalho [20].

Num clima assim, como se pode deixar de notar que se trabalha por amor a Deus? Como passará despercebida a justiça informada pela caridade, que não é simplesmente uma justiça dura e seca? Ou a honradez face a Deus, e não a honradez interesseira, para os outros verem? Ou a ajuda, o favor, o serviço aos outros, prestados por amor a Deus e não por cálculo?

Se o trabalho não manifesta o amor a Deus, será talvez porque se está a apagar o fogo do amor. Se não se nota o calor, se, depois de um certo tempo de trato diário com os colegas de profissão, eles não sabem se têm a seu lado um cristão íntegro ou simplesmente um homem correto e cumpridor, então é possível que o sal se tenha tornado insosso[21]. O amor a Deus não precisa de etiquetas para se dar a conhecer. É contagioso, é, por si, difusivo como o maior dos bens.

O meu trabalho põe em evidência o meu amor a Deus? Quanta oração pode brotar desta pergunta!

O trabalho ordena-se ao amorUm trabalho realizado por amor e com amor é um trabalho que se ordena ao amor: ao crescimento do amor em quem o realiza, ao crescimento da caridade, essência da santidade, essência da perfeição humana e sobrenatural de um filho de Deus. Um trabalho, portanto, que nos santifica.

Santificar-se no trabalho não é senão deixar-se santificar pelo Espírito Santo, Amor subsistente intratrinitário que habita na nossa alma em graça e infunde em nós a caridade. É cooperar com Ele, pondo em prática, no exercício do nosso trabalho profissional, o amor que Ele derrama nos nossos corações. Porque, se somos dóceis à sua acção, se, ao trabalhar, agimos por amor, o Paráclito santifica-nos: faz crescer a caridade, a capacidade de amar e de ter uma vida contemplativa cada vez mais profunda e contínua.

Que o trabalho se ordena ao amor e, portanto, à nossa santificação, significa igualmente que nos aperfeiçoa: que se ordena à nossa identificação com Cristo, perfectus Deus, perfectus homo [22], perfeito Deus e homem perfeito. Trabalhar por amor a Deus e aos outros por Deus exige que ponhamos em prática as virtudes cristãs. Antes de mais, a fé e a esperança, virtudes que a caridade pressupõe e vivifica. Em seguida, as virtudes humanas, através das quais a caridade opera e se exercita. O trabalho profissional deverá ser um campo de treino onde se exercitam as mais variadas virtudes humanas e sobrenaturais: laboriosidade, ordem, aproveitamento do tempo, fortaleza para completar as tarefas, cuidado das coisas pequenas…; e muitos pormenores de atenção aos outros, que são demonstrações de caridade sincera e delicada [23]. A prática das virtudes humanas é imprescindível para se ser contemplativo no meio do mundo, e concretamente para transformar o trabalho profissional em oração e oferenda agradável a Deus, em meio e ocasião de vida contemplativa.

Contemplo, porque trabalho; e trabalho, porque contemplo [24], comentava S. Josemaria em certa ocasião. O amor e o conhecimento de Deus – a contemplação – levavam-no a trabalhar, e por isso afirma: trabalho, porque contemplo. E esse trabalho convertia-se em meio de santificação e de contemplação: contemplo, porque trabalho.

É como um movimento circular – da contemplação ao trabalho e do trabalho à contemplação – que se vai estreitando cada vez mais em torno do seu centro, Cristo, que nos atrai a si, atraindo connosco todas as coisas, para que por Ele, com Ele e nele a Deus Pai seja dada toda a honra e toda a glória, na unidade do Espírito Santo [25].

A realidade de que o trabalho de um filho de Deus se ordena ao amor e por isso o santifica é o motivo profundo para se não poder falar, sob a perspectiva da santidade – que, afinal, é o que conta – de profissões de maior ou de menor categoria.

A dignidade do trabalho está fundamentada no Amor [26].Todos os trabalhos podem ter a mesma qualidade sobrenatural: não há tarefas grandes ou pequenas; todas são grandes, se são feitas por amor. As que se têm por tarefas grandes tornam-se pequenas quando se perde o sentido cristão da vida [27].

Se falta a caridade, o trabalho perde o seu valor diante de Deus, por brilhante que pareça aos homens. E ainda que … conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, … se não tivesse caridade, não seria nada [28], escreve S. Paulo. O que importa é o empenho por fazer divinamente as coisas humanas, grandes ou pequenas, pois pelo Amor todas adquirem uma nova dimensão[29].


­­[1] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 48.

[2] São Josemaria, Anotações da pregação (AGP, P10, n. 25), cit. por Ernst Burkhart e Javier López, Vida Cotidiana y santidad en la enseñanza de san Josemaría, Rialp, Madrid 2013, vol. II, p. 295.

[3] cf. 1Cor 2, 14.

[4] S. Josemaria, Caminho, n. 279.

[5] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 48.

[6] cf. S. Tomás de Aquino, S.Th. II-II, q. 23, a. 1, c.

[7] Jo 15, 13.

[8] Rm 5, 5.

[9] cf. Gn 2, 15; 3, 23; Mc 6, 3; 2Ts 3, 6-12.

[10] cf. S. Josemaria, Caminho, n. 998.

[11] cf. 1Cor 10, 31.

[12] S. João Paulo II, Laborem exercens, n. 25; Catecismo da Igreja Católica, n. 2460.

[13] Dt 32, 4 (Vg); cf. Gn 1, 10, 12, 18, 21, 25, 31; cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 302.

[14] Mc 7, 37.

[15] S. Josemaria, Sulco, n. 527.

[16] S. Josemaria, Carta 15-X-1948, n. 26, cit. por Ernst Burkhart e Javier López, Vida Cotidiana y santidad en la enseñanza de san Josemaría, Rialp, Madrid 2013, vol. III, p. 183.

[17] cf. S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 65.

[18] 2Cor 2, 15.

[19] Mt 24, 40-41.

[20] S. Josemaria, Carta 15-X-1948, n. 26, cit. por Ernst Burkhart e Javier López, Vida Cotidiana y santidad en la enseñanza de san Josemaría , Rialp, Madrid 2013, vol. III, p. 193-194.

[21] cf. Mt 5, 13.

[22] Símbolo Atanasiano.

[23] Javier Echevarría, Carta pastoral, 4-VII-2002, n. 13.

[24] S. Josemaria, Anotações da pregação, 2-XI-1964 (AGP, P01 IX-1967, p. 11), cit. por Ernst. Burkhart e Javier López, Vida Cotidiana y santidad en la enseñanza de san Josemaría, Rialp, Madrid 2013, vol. II, p. 197.

[25] Missal Romano, conclusão da Oração Eucarística.

[26] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 48.

[27] Temas atuais do cristianismo, n. 109.

[28] 1Cor 13, 2.

[29] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 60.

J. López