P. José Rafael: "Deixar que Deus seja o centro"

Em entrevista à "Voz da Verdade", jornal do Patriarcado de Lisboa, o vigário regional do Opus Dei em Portugal fala da missão desenvolvida no nosso país e sublinha o “grande afeto e simpatia” que vai sentindo na Igreja em Portugal. Para o futuro, destaca que os desafios passam por “ampliar e aprofundar a formação da juventude” e “reforçar a formação das famílias”.

Na comemoração dos 75 anos do Opus Dei em Portugal, o Cardeal-Patriarca de Lisboa destacava o reconhecimento dado ao papel dos leigos e o “apoio ao ministério sacerdotal”. Como é que estas características têm estado presentes ao longo destes 75 anos?

Hoje, muito mais do que há 75 anos, fala-se da importância do papel do leigo, do cristão comum, na vida da Igreja. E não só nas tarefas que, sendo homem ou mulher, pode assumir no funcionamento da Igreja. Fundamentalmente da relevância eclesial que tem a sua vida tal qual é, com compromissos e confusões, despesas e empréstimos, trabalho cansativo ou gratificante, amores e desamores. Por isso, é preciso oferecer aos leigos razões e ajudas para descobrir a grandeza que essa vida tem aos olhos de um Deus que é ternura. À medida que – num processo formativo que leve a conhecer melhor a fé e a vivê-la pouco a pouco de forma mais intensa – virem a sua vida, aparentemente comezinha, como um projecto correspondente a um chamamento de Deus, que a todo o momento nos ajuda, desafia, consola e ama, o seu coração vai-se abrindo cada vez mais deixando que Deus seja o centro. E assim constroem a Igreja, são pedras vivas do templo do Senhor.

Isso é santidade: santidade ao pé da porta. Que acontece precisamente aí: em casa, no trabalho, na reunião de condóminos, na fila para a vacina, ao contar os tostões ao fim do mês.

Isso é a santidade ao pé da porta Que acontece em casa, no trabalho, na reunião de condóminos, na fila para a vacina, ao contar os tostões ao fim do mês.

Para os sacerdotes o Opus Dei tem a mesma proposta formativa: santidade no exercício do seu ministério, bem unidos aos seus irmãos no sacerdócio. Seja padre diocesano ao serviço exclusivo da sua diocese, seja padre da prelatura ao serviço preferencial das tarefas pastorais da prelatura.

É assim há 75 anos em Portugal: ajudar cristãos comuns e sacerdotes diocesanos, através de um caminho formativo aberto a todos e subsidiário à ação das dioceses e paróquias, a recordar que Deus ama de tal modo o mundo e cada um dos seus filhos, que os chama a, no lugar que têm na sociedade e na Igreja, cultivar este mundo, amando-o também apaixonadamente, com o coração todo em Deus, em todos os momentos e gestos do quotidiano.

Neste tempo em que se assinalam os 75 anos de presença em Portugal, que balanço faz das iniciativas realizadas e o que mais destaca?

Alegra-me de forma muito especial sentir grande afecto e simpatia dentro da nossa grande família que é a Igreja. Estou muito grato pela expressão de estima e alento nas mensagens do presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas, do Senhor Patriarca, D. Manuel Clemente, do Cardeal D. António Marto, do Cardeal D. Tolentino. Essas gravações, que vão aparecendo no site www.opusdei.pt, são amostra e sinal desse “caminhar juntos”. Gostava assim que os pastores da Igreja sentissem a simpatia e unidade que existe da parte de todos os que participam na acção pastoral do Opus Dei. Há anos o prelado do Opus Dei recordou: “fazer crescer o apreço mútuo entre os fiéis da Igreja, e entre os mais variados agrupamentos que possam existir, faz parte da nossa missão na grande família dos filhos e filhas de Deus".

Estou muito grato pela expressão de estima e alento nas mensagens do presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas, do Senhor Patriarca, D. Manuel Clemente, do Cardeal D. António Marto, do Cardeal D. Tolentino.

Além dessa experiência de comunhão, que é o principal, destaco também alguns eventos comemorativos. O terço que rezei no Santuário de Fátima transmitido para todo o país no passado dia 5 de fevereiro, dando início a esta celebração. No dia 24 de junho a “Tertúlia dos 75 anos”, com a intervenção do Senhor Patriarca, e com a participação, entre outros, do Cónego Francisco Crespo, do Pe. Paulo Araújo, do Frei Tibério, tendo assistido, dentro das limitações da pandemia, centenas de pessoas, entre elas o Pe. João Seabra e o Pe. Miguel Almeida S.J., provincial dos Jesuítas. Uma exposição itinerante sobre os 75 anos a percorrer várias cidades do país. O projecto de assistência e evangelização para assinalar este aniversário com o nome “75 cabazes – 75 famílias”. Se as condições sanitárias permitirem, uma Missa em Fátima, no dia 5 de fevereiro de 2022 encerrará as comemorações.

O fundador do Opus Dei, São Josemaria Escrivá, visitou Portugal, pela primeira vez, em 1945, por insistência da Irmã Lúcia, com quem se tinha encontrado num convento em Tuy. De que forma este acontecimento influenciou a entrada da Obra em Portugal?

Influenciou de um modo decisivo: havia a possibilidade de começar em Itália ou Portugal, e, por outro lado, o fundador chegou a pensar que, evitando eventuais “melindres luso-espanhóis”, fossem franceses a iniciar o Opus Dei em Portugal, o que exigiria esperar a consolidação em França, que só aconteceria passados uns bons anos. Por isso, sem dúvida nenhuma foi a irmã Lúcia que forçou e adiantou o começo em Portugal.

Uma das finalidades da Obra é a “santificação do trabalho profissional”. Quais são, atualmente, os principais obstáculos a essa santificação?

Há um obstáculo interior ao amadurecimento da própria fé: ainda há muito por fazer relativamente a tirar as consequências do facto impressionante de Deus, como homem, ter trabalhado, sem brilho nem espetáculo, a maior parte da sua vida. Se o cristão é Cristo por efeito do baptismo, então o trabalho de cada um de nós tem potencial para ser um trabalho que participa na obra criadora, redentora e santificadora de Deus.

ainda há muito por fazer relativamente a tirar as consequências do facto impressionante de Deus, como homem, ter trabalhado, sem brilho nem espetáculo

Há, depois, os obstáculos do tempo atual: a falta de sentido de serviço, a perda da ideia do trabalho como um meio e não como fim, a falta de sentido sobrenatural pois um cristão não deveria trabalhar como se Deus não existisse. E há ainda os obstáculos que, sem se infiltrarem na nossa mentalidade como os anteriores, são porém circunstâncias duras e relevantes: a precariedade e o desemprego. Em rigor, mais do que obstáculos, são dificuldades pois não impedem a santificação.

Uma das manifestações do Opus Dei em Portugal é a Educação, nomeadamente com escolas, residências universitárias e outras iniciativas. Como analisa o estado da Educação em Portugal? Considera que existe, neste campo, um afastamento cada vez mais acentuado da matriz cristã?

Quando há, em Portugal e no ocidente, um processo lento mas muito profundo de secularização e de marginalização da fé não é de estranhar que, não só na educação mas em todos os setores da sociedade, se dilua o que até então era um paradigma de valores comuns, também éticos e religiosos, tendencialmente partilhado por todos de forma pacífica.

O cenário torna-se mais complexo se a isso acrescentarmos, em Portugal, uma tradição centenária que leva a não favorecer que, de forma alargada, os pais, como responsáveis da educação, possam realmente escolher, entre várias, a oferta educativa que mais se aproxima à educação legitimamente querida para os seus filhos. Há, pois, ainda muito caminho a percorrer para ajudar as famílias nas suas responsabilidades, independentemente do seu credo ou visões da vida.

Por vezes, o Opus Dei aparece conotado como uma sociedade secreta ou restrita. Como olha para esta perceção? O que tem sido feito para evidenciar o Opus Dei como uma instituição diferente desta visão?

Uma imagem não verdadeira nunca faz bem. Gostaria de ver essa ideia superada, mas em grande parte isso não depende de nós. Da nossa parte está o dar informação abundante e frequente e ajudar a gerar a convicção generalizada de que é possível e fácil a todos, sem qualquer requisito prévio, contactar-nos, conhecer-nos e participar na formação católica que é nossa missão oferecer.

Alegra-me de forma muito especial sentir grande afecto e simpatia dentro da nossa grande família que é a Igreja.

Em Portugal, o número de membros pertencentes ou ligados ao Opus Dei é o suficiente para garantir a missão da Obra? Que desafios aponta para o Opus Dei em Portugal para os próximos anos, em particular na atenção às famílias?

Jesus disse que “a seara é grande mas os trabalhadores são poucos”. Sempre seremos poucos para levar a cabo a missão da Igreja, e em consequência, a parte da missão da Igreja que corresponde ao Opus Dei. Neste momento há 1.600 pessoas do Opus Dei, e são mais as que, não sendo do Opus Dei, participam em retiros, recoleções, aulas e encontros de aprofundamento na fé, acompanhamento espiritual pessoal. O fundador tinha o sonho de que em cada aldeia houvesse pelo menos uma pessoa com esta vocação...

Neste momento há 1.600 pessoas do Opus Dei, e são mais as que, não sendo do Opus Dei, participam em retiros, recoleções, aulas e encontros de aprofundamento na fé, acompanhamento espiritual pessoal

Os desafios dos próximos anos são ampliar e aprofundar a formação da juventude e reforçar a formação das famílias na linha do que o Papa propõe para o Encontro Mundial das Famílias, a encerrar o Ano da família “Amoris Laetitia”: o amor na família, vocação e caminho da santidade.

Como pano de fundo, estará a proposta que o Papa fez ao prelado do Opus Dei, Mons. Fernando Ocáriz, em 2017: dar prioridade às “periferias” das classes médias e do mundo profissional e intelectual que se encontram afastadas de Deus.


Mons. José Rafael Espírito Santo

Dados Biográficos

Monsenhor José Rafael Espírito Santo nasceu em Lisboa, em 1959, sendo o mais novo de três irmãos. Frequentou a catequese na paróquia de São João de Brito e estudou no Liceu Camões. Licenciou-se em Engenharia Civil, na Universidade de Coimbra, onde foi assistente. Fez os estudos de Filosofia, na atual Universidade da Santa Cruz, em Roma, e doutorou-se também em Filosofia, na Universidade de Navarra. Foi ordenado padre em 15 de agosto de 1987, aos 28 anos.

Conheceu o Opus Deis pelos pais e foram o “afeto”, a “jovialidade” e a “intimidade com Deus” que o fascinaram na vida de São Josemaria, fundador do Opus Dei. “A convicção íntima do chamamento de Deus” foi o que o impeliu a entrar para a obra. Depois de alguns anos a colaborar com o anterior vigário regional, padre António Barbosa – falecido este ano –, sucedeu-o em novembro de 2002.

Como conheceu a Obra?

Pelos meus pais, ambos eram do Opus Dei.

O que o fascinou na vida de São Josemaria?

O que me fascinou foi o afeto que tinha para com todos, a jovialidade, a intimidade com Deus que transparecia, e o levar a sério as minhas inquietações juvenis, quando o conheci.

O que o impeliu a entrar para a Obra?

O que me impeliu foi o que é comum a qualquer vocação: a convicção íntima do chamamento de Deus, experimentada no diálogo da oração, que desinstala e abre para horizontes insuspeitados.

Como é que foi o seu percurso na prelatura?

Desde o pedido de admissão até à minha ida para o Seminário, tive o percurso normal de amadurecimento da vocação no meio dos afazeres da vida de cada dia: trabalho, descanso, ajuda aos outros... Com a ordenação sacerdotal dediquei-me ao atendimento pastoral próprio do Opus Dei. Depois de uns anos a colaborar com o Pe. António Barbosa, anterior vigário regional e falecido este ano, fui nomeado para lhe suceder em novembro de 2002.


Entrevista realizada por Filipe Teixeira publicada no Jornal Voz da Verdade de 18 de julho de 2021.
Ver aqui o excerto do jornal (PDF)