Algo grande e que seja amor (7): a vocação matrimonial

Deus abençoa a normalidade da vida familiar e quer habitar nela. Um passeio pelo livro de Tobias pode ajudar a redescobrir essa realidade.

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Quando S. Josemaria começou a falar de vocação para o casamento, há quase um século, a união desses dois conceitos costumava gerar desconcerto, ou até provocar riso: como se estivesse a falar de um pássaro sem asas ou de uma roda quadrada: “Ris-te porque te digo que tens "vocação matrimonial"? - Pois é verdade: assim mesmo, vocação.”[1]. Na mentalidade daquela época, e às vezes ainda na de hoje, “ter vocação” significava deixar a normalidade da vida para poder servir a Deus e à Igreja. Deixar de um modo ou outro o habitual, que para a maioria das pessoas significa ter uma família, filhos, casa, trabalho, compras, faturas, máquinas de lavar, imprevistos, risos, brigas entre irmãos, tardes em urgências, sobras no frigorífico.

Toda essa infinidade de coisas, variadas e imprevisíveis, como a própria vida, não só cabe nessa “roda quadrada” da vocação matrimonial, como encontra nela a sua melhor versão possível. O “sentido vocacional do matrimónio”[2] parte precisamente da convicção de que Deus abençoa a normalidade da vida familiar e quer habitar nela. “Tu, porém, és o Santo e habitas na glória de Israel”, diz o salmo que Jesus reza na Cruz (Sl 22,4). Deus, o Santo, quer viver no meio das vidas normalíssimas das famílias. Vidas chamadas a converterem-se, pelo carinho, em louvores a Ele: no céu, mesmo com todos os “defeitos de fabrico” desta sede provisória que é a vida. Por isso, “não deixes passar um dia / sem descobrir um segredo, grande ou pequeno./ Seja a tua vida alerta / descoberta quotidiana. / Por cada migalha de pão duro / que Deus te dê, tu dá-Lhe / o diamante mais fresco da tua alma”[3].

Que faças boa viagem

A PESSOA DESCOBRE QUE RECEBEU MUITO AMOR NA SUA VIDA E QUE ESTÁ CHAMADA A ISSO MESMO: A DAR AMOR

Aquele jovem ria ao ouvir falar de vocação matrimonial, mas ficou pensativo. A “provocação” ia acompanhada de um conselho: “Pede a São Rafael que te conduza castamente ao termo do caminho, como a Tobias.”[4]. S. Josemaria referia-se ao único relato da Bíblia que fala deste Arcanjo, por quem tinha um carinho especial; tanto, que lhe confiou o apostolado com os jovens desde o início[5]. “O livro de Tobias é encantador”[6], dizia uma vez. Embora toda a história do livro se concentre numa viagem, permite-nos entrar diretamente na vida de dois lares, e assistir ao nascimento de um terceiro. Até a viagem participa desse ambiente familiar, com um detalhe que não passou despercebido pelos artistas ao longo dos séculos: este livro também é o único lugar das Escrituras no qual aparece um cão de estimação, que acompanha Tobias e São Rafael do início ao fim da viagem (cf. Tb 6,1; 11,4).

Quando Tobias se foi embora, o pai abençoou-o com estas palavras: “Deus, que reside nos céus, vos conceda uma viagem feliz e vos traga de volta com saúde e que o seu anjo vos acompanhe sãos e salvos.” (Tb 5,17). S. Josemaria parafraseava-as ao dar a sua bênção aos que iam viajar: “que o Senhor esteja no teu caminho, e o Seu anjo te acompanhe”[7] E viagem – a verdadeira viagem, a mais decisiva – é o caminho da vida, pelo qual caminham juntos os que se entregam reciprocamente no casamento, respondendo a um sonho de Deus que remonta à origem do mundo[8]. Como é importante que os jovens descubram, e que redescubram também depois de muitos anos de viagem, “a beleza da vocação para formar uma família cristã”[9]: a chamada a uma santidade que não é de segunda categoria, mas de primeira.

Quando a vida realmente começa

A vocação pessoal desperta com uma descoberta simples mas cheia de consequências: a convicção de que o sentido, a verdade da nossa vida, não consiste em viver para nós mesmos, para as nossas coisas, mas sim para os outros. A pessoa descobre que recebeu muito amor na sua vida e que está chamada a isso mesmo: a dar amor. E que só assim se encontrará verdadeiramente a si mesma. Dar amor, não somente nos tempos livres para tranquilizar a consciência: transformar o amor no nosso projeto de vida, no centro de gravidade de todos os outros projetos (os que conseguirem permanecer em órbita).

Antes e depois do seu casamento com Sara, o jovem Tobias recebe vários conselhos nesse sentido: são chamadas ao que de mais nobre existe nele. O seu pai Tobite, que o envia em viagem para procurar dinheiro pensando no futuro (cf. Tb 4,2), preocupa-se em transmitir em primeiro lugar a sua herança mais importante; o que tem mais valor na sua vida: “honra tua mãe, todos os dias da tua vida, age de acordo com a sua vontade e não a entristeças (...) evita o pecado (...).Dá esmolas, conforme as tuas posses. Nunca afastes de algum pobre o teu olhar (...)Bendiz o Senhor Deus, em todo o tempo, e pede-lhe para que os teus caminhos sejam retos, e para que todos os teus projectos e conselhos sejam bem encaminhados” (Tb 4,3-19). Semanas depois, Tobias, recém-casado, empreende o caminho de volta para a casa dos seus pais, e a sua nova sogra despede-se dele assim: “Entrego a minha filha à tua guarda; nunca a entristeças, durante os dias da tua existência. Vai, pois, em paz, filho. Daqui em diante, serei tua mãe e Sara será tua irmã [mulher]” (Tb 10,13).

“Não entristeças o seu espírito (...) Não a magoes em nenhum dia da tua vida”. Deus chama os esposos a protegerem-se, a cuidarem-se, a desviverem um pelo outro: é aí que está o segredo da sua realização pessoal que, justamente por isso, não pode ser só autorrealização. Viver, com toda a profundidade do termo, significa dar a vida. Jesus viveu assim: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Também viveram assim São José e Santa Maria, com o amor mais simples, terno e delicado que já existiu na terra, cuidando um do outro, e cuidando acima de tudo da Vida feita carne. E Deus quer que nós, Seus discípulos, vivamos assim também, para que onde quer que estejamos irradiemos a Sua alegria, a Sua vontade de viver. Esse é o núcleo do sentido de missão cristã.

VIVER SIGNIFICA DAR A VIDA. ASSIM VIVERAM SÃO JOSÉ E SANTA MARIA

“As nossas cidades estão desertificadas por falta de amor, por falta de sorriso. Muitos divertimentos, numerosas coisas com as quais perder tempo, rir, mas falta o amor. O sorriso de uma família é capaz de vencer esta desertificação das nossas cidades. E esta é a vitória do amor da família. Nenhuma engenharia económica e política é capaz de substituir esta relação das famílias. O projecto de Babel edifica arranha-céus sem vida. O Espírito de Deus, ao contrário, faz florescer os desertos.”[10]

Viver significa dar a vida. Esta descoberta, que pode ser feita já na adolescência, mas que às vezes chega muito mais tarde, marca a verdadeira passagem da infância para a maturidade humana. Pode-se dizer que só então se começa a ser verdadeiramente pessoa; que só então a vida realmente começa. Porque “viver é querer mais, sempre mais; querer, não por apetite, e sim por anseio. Ansiar, este é o sinal da vida; amar, isto é a vida. Amar a ponto de poder doar-se pelo amado. Poder esquecer-se de si mesmo, isso écada um ser ele próprio; poder morrer por algo, isto é viver. Aquele que só pensa em si não é ninguém, está vazio; o que não é capaz de sentir o gosto de morrer, é porque já está morto. Só aquele que pode senti-lo, aquele que pode esquecer-se de si mesmo, que pode doar-se, o que ama, numa palavra, está vivo. E então basta começar a caminhar”[11].

O alcance de um sim

Observando a vocação matrimonial com essa perspetiva, manifesta-se como algo bem diferente de “uma procura de satisfação pessoal ou um mero recurso para completarmos egoisticamente a nossa personalidade”[12]. A personalidade só se desenvolve verdadeiramente quando alguém é capaz de se entregar a outra pessoa. Além disso, a vida matrimonial é fonte de muitas satisfações e alegrias; mas também traz problemas, exigências, deceções. Ninguém está isento disso e, no entanto, que fácil é “fugir” dessa faceta menos bonita do amor: que fácil é desprezar as migalhas de pão.

Um contraste pode ajudar-nos a considerar essa realidade. Por um lado, a perfeição de algumas festas de casamento, impecáveis, estudadas até ao último milímetro para dar toda a solenidade possível a um evento único na vida e, quem sabe também, para assegurar o prestígio social da família. Por outro, o desencanto e o descuido que se podem infiltrar facilmente com o passar dos meses e dos anos, perante a imperfeição da vida familiar no seu desenrolar quotidiano: quando surgem problemas, quando se descobrem os defeitos da outra pessoa, e os dois parecem incapazes de conversar, de se ouvirem um ao outro, de curar as feridas, de derramar carinho. Assim pode ofuscar-se o “sentido vocacional do matrimónio”, pelo qual se sabiam chamados a dar o que são... a ser pai, mãe, marido, mulher... por vocação. Que pena! Uma família que Deus queria feliz, mesmo no meio das dificuldades, fica a meio do caminho, “aguentando”. A novidade que estava a querer nascer no mundo com o seu amor mútuo, com o seu lar... a novidade, a verdadeira vida, parece estar noutro lugar. E, no entanto, está ali à esquina, mesmo que a esquina esteja um pouco despedaçada, o que acaba por acontecer com qualquer esquina, que está simplesmente a pedir um pouco de carinho e atenção.

No dia em que um homem e uma mulher se casam, respondem “sim” à pergunta sobre o seu amor recíproco. No entanto, a verdadeira resposta só chega com a vida: a resposta tem que encarnar, pouco a pouco, no “para sempre” desse sim mútuo. “Uma pessoa sempre responde com a sua vida inteira às perguntas mais importantes. Não importa o que diz entretanto, com que palavras e argumentos se defende. No fim, no fim de tudo, com os factos da sua vida responde às perguntas que o mundo lhe dirigiu com tanta insistência (...): Quem és tu? ... Que querias realmente? (...) no fim, uma pessoa responde com toda a sua vida”[13]. E esse sim de toda a vida, conquistado uma e outra vez, vai-se tornando cada vez mais profundo e autêntico: vai transformando a inevitável ingenuidade dos inícios numa inocência lúcida, mas sem cinismo; num “sim, querido” que conhece, mas que ama.

“O SORRISO DE UMA FAMÍLIA É CAPAZ DE VENCER ESTA DESERTIFICAÇÃO DAS NOSSAS CIDADES" (PAPA FRANCISCO)

A profundidade deste sim, indispensável para encontrar efetivamente o amor, é também o motivo pelo qual a Igreja persiste, contracorrente, no seu ensinamento sobre o namoro e a abertura dos esposos à vida. Embora passe por muitas e duras críticas, insiste com paciência porque sabe que Deus a chama para guardar o amor pessoal, especialmente no seu “lugar natural”[14] . Com isso, a Igreja não defende uma verdade abstrata, de manual: pelo contrário, protege a verdade concreta das vidas, das famílias; protege as relações entre as pessoas da verdadeira doença mortal... um veneno que se infiltra subtilmente, fantasiado de romance e de triunfo no início, até se revelar de repente, com o passar dos anos, como uma prisão insuportável, principalmente se conseguiu apoderar-se dos dois: o egoísmo.

Existe, sim, uma aparente magnanimidade e alegria de viver em quem se diz simplesmente: “vou aproveitar tudo o que puder do meu corpo e de quem quiser divertir-se comigo”. É um modo de ver a vida no qual se ouve um eco do Génesis: a juventude é uma fruta saborosa... porque não comê-la? Porque havia Deus de querer tirar essa doçura da minha boca? (cf. Gn 3,2.6). Os jovens cristãos são de carne e osso: também sentem essa atração, mas percebem que é uma miragem; querem ver com mais profundidade. Com o seu esforço para manter o amor puro, ou para reconquistar a inocência que podem ter perdido, preparam-se para amar sem possuir o outro, para amar sem consumir. De algum modo perguntam-se: com quem vou compartilhar essa vontade de viver que sinto borbulhar dentro de mim? Será que essa é realmente a pessoa certa? Vamos amar-nos de verdade, ou só nos desejamos?”. Sabem que, junto com o seu corpo, também vão dar o seu coração, a sua pessoa, a sua liberdade. Sabem que tudo isso só se encaixa realmente dentro de um “sim para sempre”; sabem que nem eles nem ninguém valem menos que um sim incondicional; e que sem essa decisão não estão preparados para dar esse presente, e o outro também não está preparado para recebê-lo: seria um presente que os deixaria vazios por dentro, mesmo que só descobrissem isso depois de algum tempo.

A mesma “lógica” de fundo está na vocação de quem vive o celibato, que também ama Deus com o seu corpo, porque o entrega cada dia. Sim, matrimónio e celibato iluminam-se e precisam um do outro, porque ambos irradiam a lógica de uma gratuidade que só se entende em Deus, na imagem de si que Deus colocou em nós, pela qual nos sabemos chamados a dar a vida: aos pais, aos filhos, aos avós, a todos.

Quando Jesus revela esta profundidade do amor, os seus discípulos ficam perplexos, a ponto de Ele ter que lhes dizer: “Nem todos compreendem esta linguagem, mas apenas aqueles a quem isso é dado” (Mt 19,11). Os jovens e os pais cristãos, mesmo que às vezes sejam incompreendidos, devem saber que no fundo muitos os admiram, ainda que talvez não saibam muito bem porquê. Admiram porque com o seu amor sincero estão a irradiar a alegria e a liberdade do amor de Deus, que latejam “com gemidos inefáveis” (Rm 8,26) nos corações de cada homem e de cada mulher.

Coração que não quiser sofrer

O nome Rafael significa “Deus cura”, ou seja, “Deus cuida”. A intervenção do Arcanjo na história de Tobite, Ana, Tobias e Sara apresenta de modo visível uma realidade geralmente impercetível: a proteção de Deus sobre as famílias, a importância que Ele dá a que sejam felizes (cf. Tb 12,11-15). Deus quer estar perto de nós, mesmo que às vezes não O deixemos, porque no fundo não O queremos perto. Na história do filho pródigo, que partiu para “um lugar distante” (Lc 15,13), podemos reconhecer não só histórias individuais, mas também histórias sociais e culturais: um mundo que se afasta de Deus e que se converte num ambiente hostil, no qual muitas famílias sofrem, e às vezes naufragam. Mas, como o pai da parábola, Deus não se cansa de esperar, e sempre acaba por encontrar um modo de estar presente nessas realidades, às vezes trágicas, indo ao encontro de cada pessoa, mesmo que tenha que curar muitas feridas.

A IGREJA PROTEGE AS RELAÇÕES ENTRE AS PESSOAS DA VERDADEIRA DOENÇA MORTAL, O EGOÍSMO

O livro de Tobias também nos mostra como a proximidade e a solicitude de Deus pelas famílias não significa uma proteção de toda e qualquer dificuldade, interna ou externa. Tobite, por exemplo, é um homem íntegro, até heroico, e, no entanto, Deus permite que fique cego (cf. Tb 2,10). A sua mulher tem que conseguir dinheiro para a família e um dia, juntamente com o salário, ganha um cabrito de presente. Tobite, talvez com mau humor por causa da sua deficiência, pensa que a mulher roubou o cabrito e provoca sem querer um “furacão” na família. Conta-nos o caso em primeira pessoa: “Contudo, não acreditando nela, mandei que o devolvesse aos donos, envergonhando-me do seu procedimento. Porém, ela respondeu: «Onde estão as tuas esmolas? Onde estão as tuas boas obras? Aí tens, agora, o resultado.»” (Tb 2,14). Diante da dureza desta resposta, Tobite fica “com a alma cheia de tristeza”; começa a rezar entre soluços, e pede a Deus que o leve consigo (cf. Tb 3,1-6).

Mas Tobite continua a esforçar-se para dar alegrias à sua mulher, embora nem sempre consiga. Assim, por exemplo, quando Tobias já está a voltar para casa, felizmente casado e com o dinheiro que o seu pai tinha encarregado de recuperar, a sua mãe Ana, que desde o início era contra a ideia da viagem, teme o pior: “meu filho já não vive (...).Infeliz de mim, filho, que te deixei partir, tu, que eras a luz dos meus olhos”. Tobite, que também está preocupado, tenta acalmá-la: “Cala-te, não te preocupes, minha irmã; ele está bem. Decerto muitos afazeres os solicitaram por lá. Todavia, o homem que o acompanha é de confiança, um dos nossos irmãos. Não te entristeças, pois, por causa dele, minha irmã! Em breve estará aqui!”. Mas as suas razões não surtem efeito. “Deixa-me em paz e não me queiras enganar: o meu filho morreu!”, respondeu Ana. Contudo, numa incoerência muito maternal, continua a esperar a sua volta secretamente: “E todos os dias ia ao caminho por onde ele partira, passava o dia sem comer e chorava a noite inteira, por Tobias, seu filho, sem poder dormir” (Tb 10,1-7).

É comovente ver que, desde há milénios, os problemas quotidianos das famílias não mudaram assim tanto. Incompreensões, faltas de comunicação, angústias pelos filhos... “Formaria um pobre conceito do matrimónio e do amor humano quem pensasse que ao tropeçar com essas dificuldades, o carinho e o contentamento se acabam.”[15]. A paixão inicial – essa força que leva a sonhar com o projeto de formar uma família – tende a deixar quase todos os defeitos do outro de lado. Mas bastam algumas semanas de convivência constante para perceber que ninguém chegou perfeito ao dia do casamento, e por isso a vida matrimonial é um caminho de conversão em conjunto, em equipa. Se marido e mulher continuarem a dar cada dia uma nova oportunidade ao outro, os corações dos dois vão ficando cada vez mais belos, ainda que se mantenham, e até se consolidem, algumas das suas limitações.

Uma antiga canção diz assim: “coração que não quiser sofrer dores, que passe a vida inteira livre de amores”[16]. De facto, “Amar é ser vulnerável. Ame qualquer coisa e o seu coração irá certamente ser espremido e possivelmente partido. Se quiser ter a certeza de mantê-lo intacto, não deve dá-lo a ninguém, nem mesmo a um animal. Envolva-o cuidadosamente em passatempos e pequenos confortos, evite todos os envolvimentos, feche-o com segurança no cofre ou no caixão do seu egoísmo”[17]. Certamente os casais não passam o que Tobias e Sara passaram: tiveram que enfrentar um perigo de morte na sua noite de núpcias, por causa da ação de um espírito mau (cf. Tb 6,14-15; 7,11). Mas o demónio do egoísmo – doença mortal – tortura constantemente todas as famílias, com a tentação de “converter em montanhas” o que não passa de “pequenos atritos sem importância”[18].

“DISCUTIR, DESDE QUE NÃO SEJA MUITO FREQUENTEMENTE, É TAMBÉM UMA MANIFESTAÇÃO DE AMOR, QUASE UMA NECESSIDADE” (S. JOSEMARIA)

Por isso, é muito importante que marido e mulher falem claramente, mesmo que sejam coisas fortes, para evitar que cada um se vá escondendo pouco a pouco atrás de um muro: para reconstruir uma e outra vez os sentimentos que tornam o amor possível. S. Josemaria diz que “discutir, desde que não seja muito frequentemente, é também uma manifestação de amor, quase uma necessidade” dos esposos[19]. A água tem que fluir, porque quando se estanca, apodrece. Por isso também é muito importante que os pais “arranjem tempo para estar com os filhos e falar com eles (...),saber reconhecer a parte de verdade - ou a verdade inteira - que possa haver em algumas das suas rebeldias”[20]. Falar e conviver: entre marido e mulher, entre pais e filhos.

E falar, sobre tudo, com Deus, para que nos possa dar as Suas luzes: “lâmpada para meus passos é tua palavra e luz no meu caminho” (Sl 119,105). Mesmo que o relato bíblico não mostre os desencontros de Tobias e Sara, podemos imaginar que os teriam, como Tobite e Ana, e como todas as famílias. Mas também podemos imaginá-los muito unidos até o final de suas vidas, porque vemos o seu casamento nascer e crescer na intimidade com Deus. “Bendito sejas, Deus dos nossos pais, e bendito seja o Teu nome, por todas as gerações; louvem-Te os céus e todas as Tuas criaturas, por todos os séculos– rezam na noite de núpcias -. Permite, pois, que eu e ela encontremos misericórdia, e cheguemos juntos à velhice” (Tb 8,5.7).

***

São João Paulo II, “o Papa da família”[21], uma vez comparou o amor esponsal do Cântico dos Cânticos com o amor de Tobias e Sara. Os esposos do Cântico, dizia, “declaram mutuamente, com palavras fogosas, o seu amor humano. Os novos esposos do livro de Tobias pedem a Deus saber responder ao amor”[22]. Ao comparar esses dois exemplos de amor matrimonial, queria suscitar a pergunta: qual dos dois reflete melhor esse tipo de amor? A resposta é simples: ambos. No dia em que dois corações se encontram, a sua vocação adquire um rosto novo e jovem, como o dos esposos do Cântico. Mas esse rosto recupera a sua juventude de cada vez que, ao longo da vida, os dois acolhem de novo a sua chamada para responder ao amor. E então, sim, esse amor é forte como a morte[23].


[1] S. Josemaria, Caminho, n. 27.

[2] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 30. Cf. os nn. 22-30, que estão dentro da homilia “O matrimónio, vocação cristã”.

[3] Tradução livre de Juan Jamón Jiménez, Eternidade, Madrid, 1918 p. 126.

[4] S. Josemaria, Caminho, n. 27. Cf. também Ibidem, n. 360.

[5] cf. S. Josemaria, Apontamentos íntimos, n. 1697 (10/10/1932), em A. Vázquez de Prada, Josemaría Escrivá, vol. 1, Verbo, Lisboa, 2002.

[6] S. Josemaria, anotações de uma meditação, 12/10/1947, em Enquanto nos falava pelo caminho, p. 41 (AGP, Biblioteca, P18).

[7] cf. Ibidem. “Eu, no Cerimonial, fazendo preceder a esta bênção uma súplica à Virgem, coloquei-a como bênção de viagem: Beata Maria intercedente, bene ambules: et Dominus sit in itinere tuo, et Angelus eius comitetur tecum (Através da intercessão de Nossa Senhora, que o Senhor esteja em teu caminho e que seu Anjo te acompanhe)”.

[8] Por isso São João Paulo II chamava o matrimónio “sacramento primordial” (cfr. audiência, 20/10/1982 e 23/05/1984).

[9] F. Ocáriz, Carta pastoral, 14/02/2017.

[10] Francisco, Audiência, 2/09/2015.

[11] Tradução livre de J. Maragall, “Elogio del vivir” em Vida escrita, Madrid, Aguilar, 1959, p. 105.

[12] Cristo que passa, n. 43.

[13] S. Marai, As velas ardem até ao fim.

[14] F. Ocáriz, Carta pastoral, 4/06/2017.

[15] Cristo que passa, n. 24.

[16] “A los árboles altos”, música popular à qual S. Josemaria faz alusão em Caminho, n. 145.

[17] C. S. Lewis, Os quatro amores, Martins Fontes.

[18] Cristo que passa, n. 23.

[19] Ibid., n. 26.

[20] Ibid., n. 27.

[21] Francisco, Homilia na Canonização, 27/04/2014.

[22] São João Paulo II, Audiência, 27/06/1984.

[23] Cf. Ibid., e Ct 8,6.

Carlos Ayxelà