Viagem Apostólica do Santo Padre ao Reino do Bahrein

Intervenções do Papa Francisco na sua viagem Apostólica ao Reino do Bahrein (3 a 6 de novembro de 2022).

A assinatura do documento sobre a Fraternidade Humana em 2019 marcou um antes e um depois nas relações entre o Vaticano e o mundo muçulmano. Foi um documento que assentou as bases para melhorar o diálogo entre o islão e o cristianismo. 

Agora, a viagem ao Bahrein supôs mais um passo neste caminho. Aqui o Papa Francisco participará num forum sobre o diálogo entre o Oriente e o Ocidente.


Quinta-feira, 3 de novembro 

Sexta-feira, 4 de novembro

- Encontro com os membros do "Muslim Council of Elders" na Mesquita do "Sakhir Royal Palace", em Awali.

Sábado, 5 de novembro

  • Santa Missa pela paz e pela justiça no "Bahrain National Stadium", em Awali.
  •  Encontro com os jóvens na Escola do Sagrado Coração, em Awali.

Domingo, 6 de novembro

  • Encontro de oração e Angelus com os bispos, sacerdotes, consagrados, seminaristas e agentes pastorais na igreja do Sagrado Coração de Manama.

Quinta-feira, 3 de novembro

Encontro com as Autoridades, com a Sociedade Civil e com o Corpo Diplomático

Majestade,
Altezas Reais,
Ilustres membros do Governo e do Corpo Diplomático,
Distintas Autoridades religiosas e civis,
Senhoras e Senhores,
As-salamu alaikum [A paz esteja convosco]!

De coração agradeço a Sua Majestade o amável convite para visitar o Reino do Bahrein, o caloroso e generoso acolhimento e as palavras de boas-vindas que me dirigiu. Saúdo cordialmente a cada um de vós. Desejo manifestar a minha calorosa estima a quantos vivem neste país: a cada crente, a cada pessoa e a cada família, que a Constituição do Bahrein define «pedra angular da sociedade». A todos expresso a minha alegria por me encontrar no vosso meio.

Aqui, onde as águas do mar circundam as areias do deserto e imponentes arranha-céus se erguem ao lado dos tradicionais mercados orientais, cruzam-se realidades muito diferentes: convergem antiguidade e modernidade, fundem-se história e progresso, e sobretudo pessoas da mais variada proveniência formam um original mosaico de vida. Ao preparar-me para esta viagem, tomei conhecimento dum «emblema de vitalidade» que carateriza o país; refiro-me à chamada «árvore da vida» (Shajarat-al-Hayat), à qual desejo inspirar-me ao partilhar convosco algumas ideias. Trata-se duma majestosa acácia, que, há séculos, sobrevive numa zona deserta, onde a chuva é muito escassa. Parece impossível que uma árvore tão longeva resista e prospere em tais condições. Na opinião de muitos, o segredo estaria nas raízes, que se estendem por dezenas de metros sob o solo, bebendo em depósitos subterrâneos de água.

As raízes! O Reino do Bahrein empenha-se na pesquisa e valorização do seu passado, que fala duma terra extremamente antiga, para onde, já há milénios, acorriam os povos, atraídos pela sua beleza, resultante em particular das abundantes nascentes de água doce que lhe deram a fama de ser paradisíaca: o antigo reino de Dilmun denominava-se «terra dos vivos». Remontando no tempo até às suas raízes (conta 4500 anos de presença humana ininterrupta), resulta terem sido a posição geográfica, a propensão e a habilidade comercial do povo, bem como certas vicissitudes históricas que permitiram ao Bahrein moldar-se como encruzilhada de mútuo enriquecimento entre os povos. De facto, um aspeto sobressai nesta terra: sempre foi lugar de encontro entre populações diferentes.

Está aqui a água vital, aonde vão ainda hoje beber as raízes do Bahrein, cuja maior riqueza se vê na sua variedade étnica e cultural, na convivência pacífica e no tradicional acolhimento da população. Uma diversidade, não homogeneizadora, mas inclusiva constitui o tesouro de qualquer país verdadeiramente evoluído. E, nestas ilhas, pode-se admirar uma sociedade mista, multiétnica e multirreligiosa, que foi capaz de superar o perigo do isolamento. Isto é muito importante no nosso tempo, cujo excludente retraimento em si mesmo e nos próprios interesses impede de captar a irrenunciável importância do todo. Diversamente os numerosos grupos nacionais aqui coexistentes, étnicos e religiosos, testemunham que se pode e deve conviver no nosso mundo; este, já há decénios que se tornou uma aldeia global, mas, dando-se por suposta a globalização, ainda desconhece «o espírito da aldeia» em várias das suas vertentes: a hospitalidade, a solicitude pelo outro, a fraternidade. Pelo contrário, assistimos, preocupados, ao crescimento em larga escala da indiferença e mútua suspeita, à extensão de rivalidades e contraposições que se esperavam superadas, a populismos, extremismos e imperialismos que põem em perigo a segurança de todos. Não obstante o progresso e tantas conquistas civis e científicas, aumenta a distância cultural entre as várias partes do mundo e, às benéficas oportunidades de encontro, antepõem-se perversas atitudes de conflito.

Em vez disso, pensemos na árvore da vida – o vosso símbolo – e distribuamos, nos desertos áridos da convivência humana, a água da fraternidade: não deixemos evaporar-se a possibilidade do encontro entre civilizações, religiões e culturas, não permitamos que sequem as raízes do humano! Trabalhemos juntos, trabalhemos a bem do todo, em prol da esperança! Estou aqui, na terra da árvore da vida, como semeador de paz, para viver dias de encontro, participar num Fórum de diálogo entre Oriente e Ocidente em prol da coexistência humana pacífica. Desde já agradeço aos companheiros de viagem, especialmente aos Representantes religiosos. Estes dias marcam uma etapa preciosa no percurso de amizade que tem vindo a intensificar-se, nos últimos anos, com vários líderes religiosos islâmicos: um caminho fraterno que, sob o olhar do Céu, quer favorecer a paz na Terra.

A propósito, manifesto o meu apreço pelas conferências internacionais e as oportunidades de encontro que este Reino organiza e favorece, centrando-se especialmente na temática do respeito, da tolerância e da liberdade religiosa. São pontos essenciais, reconhecidos pela Constituição do país, onde se estabelece que «não deve haver discriminação alguma com base no sexo, na proveniência, na língua, na religião ou no credo» (art. 18), que «a liberdade de consciência é absoluta» e que «o Estado tutela a inviolabilidade do culto» (art. 22). Trata-se sobretudo de compromissos que hão de traduzir-se constantemente na prática, para que a liberdade religiosa se torne plena, não se limitando à liberdade de culto; para que igual dignidade e paridade de oportunidades sejam reconhecidas concretamente a todo o grupo e a toda a pessoa; para que não haja discriminações e os direitos humanos fundamentais não sejam violados, mas promovidos. Penso, antes de mais nada, no direito à vida, na necessidade de o garantir sempre, mesmo em relação a quem é punido, cuja existência não pode ser eliminada.

Voltemos à árvore da vida. Os múltiplos ramos de diferente tamanho que a caraterizam, com o passar do tempo, deram vida a espessas ramagens, fazendo crescer a sua altura e circunferência. Neste país, foi precisamente a contribuição de tantas pessoas de diferentes povos que consentiu um notável progresso produtivo. Isto tornou-se possível graças à imigração, que regista no Reino do Bahrein uma das taxas mais elevadas do mundo: cerca de metade da população residente é estrangeira e trabalha de forma significativa para o progresso dum país, onde – tendo deixado a própria pátria – se sente em casa. Todavia não se pode esquecer que, nos nossos dias, há ainda muita falta de trabalho e demasiado trabalho desumano: isto acarreta não só graves riscos de instabilidade social, mas representa um atentado à dignidade humana. De facto, o trabalho não é necessário apenas para se ganhar a vida, mas constitui também um direito indispensável para nos desenvolvermos integralmente a nós próprios e moldarmos uma sociedade à medida do homem.

A partir deste país, atraente pelas oportunidades laborais que oferece, quero lembrar a emergência da crise laboral mundial: muitas vezes falta o trabalho, precioso como o pão; frequentemente é pão envenenado, porque escraviza. Em ambos os casos, no centro já não está o homem, que, de fim sagrado e inviolável do trabalho, acaba reduzido a um meio para produzir dinheiro. Assim, por todo o lado, sejam garantidas condições laborais seguras e dignas do homem, que não impeçam, mas favoreçam a vida cultural e espiritual; que promovam a coesão social, em proveito da vida comum e do próprio progresso dos países (cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 9.27.60.67).

O Bahrein pode gloriar-se de preciosas conquistas neste sentido: penso, por exemplo, na primeira escola feminina surgida no Golfo e na abolição da escravatura. Continue a ser farol na promoção em toda a área dos direitos e condições équas e cada vez melhores para os trabalhadores, as mulheres e os jovens, garantindo ao mesmo tempo respeito e solicitude por quantos se sentem mais à margem da sociedade, como os migrantes e os reclusos: o desenvolvimento verdadeiro, humano, integral mede-se sobretudo pela atenção que lhes é prestada.

A árvore da vida, que se ergue, solitária, na paisagem desértica, sugere-me ainda dois âmbitos decisivos para todos e que interpelam primariamente quem, governando, detém a responsabilidade de servir o bem comum. Em primeiro lugar, a questão ambiental: quantas árvores são derrubadas, quantos ecossistemas devastados, quantos mares poluídos pela ganância insaciável do homem, cuja conta se deve pagar depois! Não nos cansemos de trabalhar em prol desta dramática pendência, realizando opções concretas e previdentes, feitas a pensar nas gerações mais jovens, antes que seja demasiado tarde e se comprometa o seu futuro. Que a Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (COP27), que terá lugar no Egito dentro de poucos dias, constitua um passo em frente no referido sentido!

Em segundo lugar, a árvore da vida com as suas raízes, que, do subsolo, comunicam a água vital ao tronco e, deste, aos ramos e sucessivamente às folhas, que dão oxigénio às criaturas, faz-me pensar na vocação do homem, de todo o homem que está na terra: fazer a vida prosperar. Entretanto assistimos hoje, e cada dia sempre mais, a ações e ameaças de morte. De modo particular estou a pensar na realidade monstruosa e insensata da guerra, que semeia por toda a parte destruição e erradica a esperança. Na guerra, aparece o lado pior do homem: egoísmo, violência e mentira. Sim, porque a guerra, qualquer guerra, constitui também a morte da verdade. Rejeitemos a lógica das armas e invertamos o rumo, transformando as enormes despesas militares em investimentos para combater a fome, a falta de cuidados sanitários e de instrução. Tenho no coração a tristeza por tantas situações de conflito. Olhando para a Península Arábica, cujos países desejo saudar com cordialidade e respeito, dirijo um pensamento especial e sentido ao Iémen, martirizado por uma guerra esquecida que, como qualquer guerra, não leva a nenhuma vitória, mas apenas a amargas derrotas para todos. Recordo na oração sobretudo os civis, as crianças, os idosos, os doentes, e imploro: calem-se as armas, calem-se as armas, calem-se as armas! Empenhemo-nos por toda parte e de verdade em prol da paz!

A respeito disto, a Declaração do Reino do Bahrein reconhece que a fé religiosa é «uma bênção para todo o género humano», o alicerce «para a paz no mundo». Estou aqui como crente, como cristão, como homem e peregrino da paz, porque hoje, mais do que nunca, somos chamados a empenhar-nos seriamente, por todo o lado, em prol da paz. Assim, Majestade, Altezas Reais, Autoridades, Amigos, faço meu e partilho convosco, como desejo para estes anelados dias de visita ao Reino do Bahrein, um belo trecho da própria Declaração: «Empenhamo-nos a trabalhar por um mundo, onde as pessoas de credo sincero se unam entre si para rejeitar aquilo que nos divide e, ao contrário, escolher aquilo que nos une». Assim seja, com a bênção do Altíssimo! Shukran [obrigado]!


Sexta-feira, 4 de novembro

Conclusão do "Bahrain Forum for Dialogue: East and West for Human Coexistence"

Majestade,
Altezas Reais,
Caro Irmão, Doutor Al-Tayyeb, Grande Imã de Al-Azhar,
Caro Irmão Bartolomeu, Patriarca Ecuménico,
Distintas Autoridades religiosas e civis,
Senhoras e Senhores!

Saúdo-vos cordialmente, grato pelo acolhimento recebido e pela realização deste Fórum de diálogo organizado sob o patrocínio de Sua Majestade o Rei do Bahrein. O nome deste país deriva das suas águas: de facto, a palavra «Bahrein» evoca «dois mares». Pensemos nas águas do mar que põem em contacto as terras, e em comunicação as pessoas, ligando povos distantes. «O que a terra divide, o mar une»: afirma um dito antigo. E o nosso planeta Terra, visto do alto, apresenta-se como um vasto mar azul, que liga margens distintas. Do céu, parece recordar-nos que somos uma família: não ilhas, mas um único grande arquipélago. É assim que o Altíssimo nos quer, e bem pode simbolizar o seu anseio este país, um arquipélago de mais de trinta ilhas.

Contudo vivemos tempos em que uma humanidade, interligada como nunca, se apresenta bem mais dividida do que unida. E o nome do «Bahrein» pode ajudar-nos a ir mais longe na nossa reflexão: os «dois mares», que evoca, referem-se às águas doces das suas nascentes submarinas e às águas salobras do Golfo. De modo semelhante, encontramo-nos hoje perante dois mares de sabor oposto: por um lado, o mar calmo e doce da convivência comum, por outro, o mar amargo da indiferença, afligido por confrontos e agitado por ventos de guerra, com as suas devastadoras ondas sempre mais tumultuosas, com o risco de nos arrastar a todos. Infelizmente, Oriente e Ocidente assemelham-se cada vez mais a dois mares contrapostos. Entretanto nós estamos aqui juntos, porque pretendemos navegar no mesmo mar, escolhendo a rota do encontro em vez da do confronto, o caminho do diálogo indicado por este Fórum: «Oriente e Ocidente em prol da coexistência humana».

Após duas Guerras Mundiais tremendas, depois duma guerra fria que manteve o mundo em suspense durante dezenas de anos, encontramo-nos ainda num equilíbrio frágil a balouçar sobre o precipício feito de tantos conflitos desastrosos por toda a parte do globo, entre rumores de acusação, ameaças e condenações, e não queremos afundar. Impressiona este paradoxo: enquanto a maior parte da população mundial se encontra unida pelas mesmas dificuldades, atormentada por graves crises alimentares, ecológicas e pandémicas, bem como por uma injustiça planetária cada vez mais escandalosa, uns poucos poderosos concentram-se decididamente numa luta por interesses de parte, desenterrando linguagens obsoletas, redesenhando áreas de influência e blocos contrapostos. Tem-se a impressão de assistir a uma cena dramaticamente infantil: no jardim da humanidade, em vez de cuidar do todo, brincamos com o fogo, com mísseis e bombas, com armas que provocam pranto e morte, cobrindo a casa comum de cinzas e de ódio.

E veremos multiplicar-se estas amargas consequências, se continuarmos a acentuar as oposições sem redescobrir a compreensão, se persistirmos na decidida imposição dos próprios modelos e visões despóticas, imperialistas, nacionalistas e populistas, se não nos interessarmos com a cultura do outro, se não prestarmos ouvidos ao clamor da gente comum e à voz dos pobres, se não deixarmos de distinguir de forma maniqueísta quem é bom e quem é mau, se não nos esforçarmos por compreender e colaborar para o bem de todos. Estas opções estão diante de nós, porque, num mundo globalizado, só se avança remando juntos; ao passo que, navegando sozinho, vai-se à deriva.

No mar borrascoso dos conflitos, tenhamos diante dos olhos o Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum, onde se almeja um encontro fecundo entre Ocidente e Oriente, útil para sarar as respetivas doenças[1]. Encontramo-nos aqui, crentes em Deus e nos irmãos, para rejeitar « o pensamento isolante», aquele modo de ver a realidade que ignora o mar único da humanidade para se concentrar apenas nas suas próprias correntes. Desejamos que os litígios entre Oriente e Ocidente se resolvam para bem de todos, sem desviar a atenção dum outro desnível, em constante e dramático crescimento, que é o desnível entre Norte e Sul do mundo. Que os conflitos emergentes não façam perder de vista as tragédias latentes da humanidade, como a catástrofe das desigualdades na qual a maioria das pessoas que povoam a Terra experimenta uma injustiça sem precedentes, a vergonhosa chaga da fome e a calamidade das alterações climáticas, sinal da falta de cuidado para com a casa comum.

Sobre tais temas debatidos nestes dias, não podem deixar de se comprometer e dar bom exemplo os líderes religiosos. Temos um papel específico e este Fórum proporciona-nos mais uma oportunidade nesse sentido. É nossa tarefa encorajar e ajudar a humanidade, tão interdependente como desconexa, a navegar em conjunto. Assim queria delinear três desafios, que sobressaem do Documento sobre a Fraternidade Humana e da Declaração do Reino do Bahrein e sobre os quais se refletiu nestes dias. Dizem respeito à oração, à educação e à ação.

Em primeiro lugar, a oração, que toca o coração do homem. Na realidade, os dramas que sofremos e as perigosas dilacerações que experimentamos, «os desequilíbrios de que sofre o mundo atual estão ligados com aquele desequilíbrio fundamental que se radica no coração do homem» (Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 10). Aqui está a raiz. Consequentemente o perigo maior não reside nas coisas, nas realidades materiais, nas organizações, mas na inclinação do ser humano para se fechar na imanência do próprio eu, do seu grupo, dos seus interesses mesquinhos. Não é um defeito do nosso tempo; existe desde que o homem é homem mas, com a ajuda de Deus, é possível pôr-lhe remédio (cf. Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, 166).

Por isso mesmo a oração, a abertura do coração ao Altíssimo, é fundamental para nos purificar do egoísmo, do isolamento, da autorreferencialidade, das falsidades e da injustiça. Quem reza, recebe no coração a paz, não podendo deixar de se fazer sua testemunha e mensageiro, convidando os seus semelhantes – primariamente através do exemplo – para não se tornarem reféns dum paganismo que reduz o ser humano àquilo que vende, compra ou com que se diverte, mas redescobrirem a dignidade infinita que cada um traz impressa. O homem religioso, o homem de paz é aquele que, ao caminhar na terra com os outros, os convida, com doçura e respeito, a levantarem o olhar para o Céu. E recorda na sua oração, como incenso que sobe ao Altíssimo (cf. Sal 141, 2), as canseiras e dificuldades de todos.

Mas, para que isso possa acontecer, há uma premissa indispensável: a liberdade religiosa. A Declaração do Reino do Bahrein explica que «Deus nos orientou para o dom divino da liberdade de opção» e, por conseguinte, «qualquer forma de coerção religiosa não pode levar a pessoa a uma relação significativa com Deus». Ou seja, toda a coerção é indigna do Omnipotente, pois Ele não entregou o mundo a escravos, mas a criaturas livres, a quem respeita profundamente. Então empenhemo-nos por que a liberdade das criaturas espelhe a liberdade soberana do Criador, para que os lugares de culto sejam protegidos e respeitados, sempre e em toda a parte, e a oração nunca seja obstaculizada, mas favorecida. Entretanto não basta conceder autorizações e reconhecer a liberdade de culto; é preciso alcançar a verdadeira liberdade de religião. E não só cada sociedade, mas também cada credo são chamados a examinar-se sobre isto. São chamados a interrogar-se se constringem as criaturas de Deus de fora ou as libertam dentro; se ajudam o homem a rejeitar a rigidez, o isolamento e a violência; se aumentam nos crentes a verdadeira liberdade, que não é fazer o que me apetece e vem à cabeça, mas predispor-se ao bem para o qual fomos criados.

Se o desafio da oração tem a ver com o coração, o segundo desafio – a educação – diz respeito essencialmente à mente do homem. A Declaração do Reino do Bahrein afirma que «a ignorância é inimiga da paz». É verdade que, onde faltam oportunidades de instrução, aumentam os extremismos e radicam-se os fundamentalismos. E, se a ignorância é inimiga da paz, a educação é amiga do progresso, desde que seja uma educação verdadeiramente digna do homem, ser dinâmico e relacional: por conseguinte não é rígida nem monolítica, mas aberta aos desafios e sensível às mudanças culturais; não é autorreferencial nem isoladora, mas atenta à história e à cultura alheia; não é estática, mas indagadora, para abraçar aspetos diversos e essenciais da única humanidade a que pertencemos. Isto permite, de modo particular, entrar no cerne dos problemas sem se presumir ter a solução e resolver de forma simplicista problemas complexos, mas com a predisposição a viver a crise sem ceder à lógica do conflito. Enquanto a lógica do conflito sempre nos leva à destruição, a crise ajuda-nos a pensar e amadurecer. De facto, é indigno da mente humana crer que as razões da força prevalecem sobre a força da razão, usar métodos do passado para as questões presentes, aplicar os esquemas da técnica e da conveniência à história e à cultura do homem. Isto requer questionar-se, entrar em crise e saber dialogar com paciência, respeito e espírito de escuta; aprender a história e a cultura alheia. Assim se educa a mente do homem, alimentando a compreensão recíproca. Porque não basta dizer que somos tolerantes, é preciso abrir verdadeiramente espaço ao outro, dar-lhe direitos e oportunidades. É uma mentalidade que começa com a educação e que as religiões são chamadas a apoiar.

Concretamente, quero destacar três urgências educativas. Em primeiro lugar, o reconhecimento da mulher na esfera pública: reconhecer o seu direito «à instrução, ao trabalho, ao exercício dos seus direitos políticos» (Documento sobre a Fraternidade Humana). Nisto, como noutras áreas, a educação é o caminho para se emancipar de resquícios históricos e sociais contrários àquele espírito de solidariedade fraterna que deve caraterizar quem adora a Deus e ama o próximo.

Em segundo lugar, «a tutela dos direitos fundamentais das crianças» (Ibidem), para que cresçam instruídas, assistidas, acompanhadas, não condenadas a viver nos mordimentos da fome e nos remordimentos da violência. Eduquemos – e eduquemo-nos – para olhar as crises, os problemas, as guerras com os olhos das crianças: não é ingénua bonacheirice, mas sabedoria clarividente, porque só pensando nelas é que o progresso se espelhará, não no lucro, mas na inocência e contribuirá para construir um futuro à medida do homem.

A educação, que tem início no seio da família, continua no contexto da comunidade, da aldeia ou da cidade. Por isso tenho a peito sublinhar, em terceiro lugar, a educação para a cidadania, para viver juntos, no respeito e na legalidade. E, em particular, a importância do «conceito de cidadania», que «se baseia na igualdade dos direitos e dos deveres». É preciso empenhar-se nisto, para que se possa «estabelecer nas nossas sociedades o conceito da cidadania plena e renunciar ao uso discriminatório do termo minorias, que traz consigo as sementes do isolamento e da inferioridade, prepara o terreno para as hostilidades e a discórdia e retira as conquistas e os direitos religiosos e civis de alguns cidadãos, discriminando-os» (Ibid.).

E chegamos, assim, ao último dos três desafios: aquele que diz respeito à ação, poder-se-ia dizer às forças do homem. A Declaração do Reino do Bahrein ensina que, «quando se prega ódio, violência e discórdia, profana-se o nome de Deus». Quem é religioso recusa-se a fazê-lo, sem precisar de qualquer justificação. Com vigor, diz «não» à blasfémia da guerra e ao uso da violência. E estes «nãos», tradu-los coerentemente na prática. Com efeito não basta dizer que uma religião é pacífica, é preciso condenar e isolar os violentos que abusam do seu nome. E não basta sequer distanciar-se da intolerância e do extremismo, é preciso agir em sentido contrário. «Por isso, é necessário interromper o apoio aos movimentos terroristas através do fornecimento de dinheiro, de armas, de planos ou justificações e também da cobertura mediática, e considerar tudo isto como crimes internacionais que ameaçam a segurança e a paz mundial. É preciso condenar tal terrorismo em todas as suas formas e manifestações» (Documento sobre a Fraternidade Humana), incluindo o terrorismo ideológico.

O homem religioso, o homem de paz, opõe-se também à corrida ao rearmamento, aos negócios da guerra, ao mercado da morte. Não sustenta «alianças contra ninguém», mas caminhos de encontro com todos: sem ceder a relativismos ou sincretismos de qualquer espécie, segue apenas uma estrada, a da fraternidade, do diálogo, da paz. Estes são os seus «sins». Percorramos, queridos amigos, este caminho: alarguemos o coração ao irmão, avancemos no percurso de conhecimento recíproco. Estreitemos entre nós laços mais fortes, sem duplicidade nem medo, em nome do Criador que nos colocou juntos no mundo como guardiões dos irmãos e das irmãs. E, se vários poderosos negoceiam entre si por interesses, dinheiro e estratégias de poder, demonstremos que é possível outro caminho de encontro; possível e necessário, porque a força, as armas e o dinheiro nunca colorirão de paz o futuro. Portanto encontremo-nos para o bem do homem e em nome d’Aquele que ama o homem, cujo Nome é Paz. Promovamos iniciativas concretas, para que o caminho das grandes religiões seja cada vez mais concreto e constante, seja consciência de paz para o mundo! E aqui dirijo a todos o meu veemente apelo a fim de que se ponha fim à guerra na Ucrânia e se dê início a sérias negociações de paz.

O Criador convida-nos a agir, especialmente a favor de tantas criaturas d’Ele que ainda não encontram espaço suficiente nas agendas dos poderosos: pobres, nascituros, idosos, doentes, migrantes... Se nós, que acreditamos no Deus da misericórdia, não prestamos ouvidos aos miseráveis e não damos voz àqueles que a não tèm, quem o fará? Estejamos do seu lado, esforcemo-nos por socorrer o homem ferido e provado! Assim fazendo, atrairemos sobre o mundo a bênção do Altíssimo. Que Ele ilumine os nossos passos e una os nossos corações, as nossas mentes e as nossas forças (cf. Mc 12, 30), para que, à adoração de Deus, corresponda o amor concreto e fraterno do próximo; para sermos, juntos, profetas da convivência, artesãos de unidade, construtores de paz. Obrigado!

* * *

[1] «O Ocidente poderia encontrar na civilização do Oriente remédios para algumas das suas doenças espirituais e religiosas causadas pelo domínio do materialismo. E o Oriente poderia encontrar na civilização do Ocidente tantos elementos que o podem ajudar a salvar-se da fragilidade, da divisão, do conflito e do declínio científico, técnico e cultural. É importante prestar atenção às diferenças religiosas, culturais e históricas que são uma componente essencial na formação da personalidade, da cultura e da civilização oriental; e é importante consolidar os direitos humanos gerais e comuns, para ajudar a garantir uma vida digna para todos os homens no Oriente e no Ocidente» (Sua Santidade Papa Francisco e Grande Imã de Al-Azhar Ahmad Al-Tayyeb, Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum, 04/02/2019).


Sexta-feira, 4 de novembro

Encontro com os membros do "Muslim Council of Elders"

Caro irmão, Doutor Ahmad Al-Tayyeb, Grande Imã de Al-Azhar,

Caros Membros do Conselho Muçulmano de Anciãos
Caros amigos,
As-salamu alaikum!

Saúdo-vos cordialmente, almejando que a paz do Altíssimo desça sobre cada um de vós: sobre vós, que pretendeis promover a reconciliação para evitar divisões e conflitos nas comunidades muçulmanas; sobre vós, que vedes no extremismo um perigo que corrói a verdadeira religião; sobre vós, que vos empenhais por dissipar interpretações erróneas que, através da violência, desvirtuam, instrumentalizam e danificam um credo religioso. A paz desça e permaneça sobre vós, que a desejais difundir incutindo nos corações os valores do respeito, da tolerância e da moderação; sobre vós, que vos propondes encorajar relações amistosas, respeito mútuo e confiança recíproca com aqueles que, como eu, aderem a uma fé religiosa diferente; sobre vós, irmãos e irmãs, que quereis promover nos jovens uma educação moral e intelectual que contraste toda a forma de ódio e intolerância. As-salamu alaikum [a paz esteja convosco]!

Deus é Fonte de paz. Que Ele nos conceda ser, por todo o lado, canais da sua paz! Quero, diante de vós, reiterar que o Deus da paz nunca conduz à guerra, nunca incita ao ódio, nunca apoia a violência. E nós, que cremos n’Ele, somos chamados a promover a paz através de instrumentos de paz, como o encontro, pacientes negociações e o diálogo, que é o oxigénio da convivência comum. Entre os objetivos que vos propondes, conta-se o de difundir uma cultura da paz baseada na justiça. Quero dizer-vos que este é o caminho, aliás o único caminho, já que a paz é «“obra da justiça” (Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 78). Brota da fraternidade, cresce através da luta contra a injustiça e as desigualdades, constrói-se estendendo a mão aos outros» (Francisco, Discurso por ocasião da Leitura da Declaração Final e Encerramento do «VII Congresso de Líderes de Religiões Mundiais e Tradicionais», Nur-Sultan, 15/IX/2022). A paz não pode ser apenas proclamada, deve ser enraizada. E isto é possível removendo as desigualdades e as discriminações, que geram instabilidade e hostilidade.

Agradeço o vosso empenho neste sentido, bem como o acolhimento que me reservastes e as palavras que proferistes. Venho ter convosco como crente em Deus, como irmão e peregrino de paz. Venho ter convosco para caminharmos juntos, no espírito de Francisco de Assis, que costumava dizer: «a paz que proclamais com a boca, haveis de a ter ainda mais abundante nos vossos corações» (Legenda dos três companheiros, XIV, 5: Fontes Franciscanas, 1469). Impressionou-me ver o costume de acolher um hóspede, nestas terras, não só com um aperto de mão, mas levando também a outra mão ao coração em sinal de afeto; como se dissesse: a tua pessoa não fica longe de mim; entra no meu coração, na minha vida. Com respeitoso afeto, também eu levo a mão ao coração, vendo cada um de vós e bendizendo ao Altíssimo pela possibilidade de nos encontrarmos.

Creio que precisamos cada vez mais de nos encontrar, conhecer e estimar, de antepor a realidade às ideias e as pessoas às opiniões, a abertura ao Céu aos distanciamentos na terra: antepor um futuro de fraternidade ao passado de hostilidade, superando os preconceitos e as incompreensões da história em nome d’Aquele que é Fonte de Paz. Aliás como poderão os fiéis de diferentes religiões e culturas conviver, acolher-se e estimar-se mutuamente, se nós permanecemos estranhos uns aos outros? Deixemo-nos guiar por este dito do Imã Ali – «as pessoas são de dois tipos: ou teus irmãos na fé ou teus semelhantes na humanidade» – e sintamo-nos chamados a cuidar de todos aqueles que o desígnio divino colocou ao nosso lado no mundo. Exortemos a todos para que, «esquecendo o passado, sinceramente se exercitem na compreensão mútua e, juntos, defendam e promovam a justiça social, os bens morais, a paz e a liberdade para todos os homens» (Conc. Ecum. Vat. II, Decl. Nostra ætate, 3). São tarefas que cabem a nós, guias religiosos: à vista duma humanidade sempre mais ferida e dilacerada que, sob o vestido da globalização, respira com dificuldade e a medo, os grandes credos devem ser o coração que une os membros do corpo, a alma que dá esperança e vida às aspirações mais altas.

Nestes dias, falei da força da vida que resiste nos mais áridos desertos, abeberando-se na água do encontro e da convivência pacífica. Fi-lo ontem, tirando partido da surpreendente «árvore da vida» que se encontra aqui no Bahrein. A narração bíblica, que ouvimos, coloca a árvore da vida no centro do jardim das origens, no coração do projeto maravilhoso de Deus para o homem, um desígnio harmonioso capaz de abraçar toda a criação. Mas o ser humano distanciou-se do Criador e da ordem por Ele estabelecida. Daí tiveram origem problemas e desequilíbrios, que se sucedem uns aos outros na narração bíblica: litígios e homicídios entre irmãos (cf. Gn 4), desordens e devastações ambientais (cf. Gn 6-9), soberba e contrastes na sociedade humana (cf. Gn 11)... Em suma, uma aluvião de malvadez e morte que brotou do coração do homem, da centelha maléfica feita saltar por aquele mal que se agacha à porta do seu coração (cf. Gn 4, 7), para incendiar o jardim harmonioso do mundo. Mas todo este mal está radicado na rejeição de Deus e do irmão, na perda de vista do Autor da vida e na recusa a reconhecer-se guardião do irmão. Por isso as duas perguntas, que ouvimos, permanecem sempre válidas e não cessam, independentemente do credo professado, de interpelar cada existência e cada época: «onde estás?» (Gn 3, 9); «onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9).

Caros amigos, irmãos em Abraão, crentes no Deus único, os males sociais e internacionais, os males económicos e pessoais, bem como a dramática crise ambiental, que carateriza estes tempos e sobre a qual se refletiu hoje aqui, derivam em última análise do afastamento de Deus e do próximo. Por conseguinte, cabe-nos uma tarefa única, imprescindível: ajudar a reencontrar estas fontes de vida esquecidas, trazer novamente a humanidade a beber nesta antiga sabedoria, aproximar os fiéis à adoração do Deus do céu e aos homens para os quais Ele fez a terra.

E de que maneira? Os nossos meios são essencialmente dois: a oração e a fraternidade. Estas são as nossas armas, humildes e eficazes. Não devemos deixar-nos tentar por outros instrumentos, por atalhos indignos do Altíssimo, cujo nome de Paz é insultado por quantos creem nas razões da força, alimentam a violência, a guerra e o mercado das armas, «o comércio da morte» que, através de somas astronómicas de dinheiro, está a transformar a nossa casa comum num grande arsenal. Por trás de tudo isto, quantas tramas obscuras e quantas dolorosas contradições! Pensemos, por exemplo, nas inumeráveis pessoas que são obrigadas a migrar da sua terra por causa de conflitos alimentados pela compra a preços acessíveis de armamentos já sem validade, para acabar depois identificadas e rejeitadas noutras fronteiras através de equipamentos militares cada vez mais sofisticados. E, assim, a esperança é morta duas vezes! Pois bem, perante estes trágicos cenários, enquanto o mundo segue as quimeras da força, do poder e do dinheiro, somos chamados a lembrar, com a sabedoria dos anciãos e dos antigos, que Deus e o próximo vêm antes de tudo, que só a transcendência e a fraternidade nos salvam. Cabe a nós desenterrar estas fontes de vida; caso contrário, o deserto da humanidade será cada vez mais árido e mortífero. Sobretudo cabe a nós testemunhar – mais com os factos, do que com as palavras – que acreditamos nisto, nestas duas verdades. Temos uma grande responsabilidade diante de Deus e dos homens, e devemos ser modelos exemplares daquilo que pregamos, não só nas nossas comunidades e em nossa casa – isto já não basta –, mas também no mundo unificado e globalizado. Nós, que descendemos de Abraão, pai na fé dos povos, não podemos ter a peito somente «os nossos», mas devemos dirigir-nos, cada vez mais unidos, a toda a comunidade humana que habita na terra.

Com efeito, a todos, pelo menos no segredo do coração, se colocam os mesmos grandes interrogativos: Quem é o homem? Porquê o sofrimento, o mal, a morte, a injustiça? Que existe depois desta vida? Em muitos, anestesiados por um materialismo prático e por um consumismo paralisador, tais questões jazem adormecidas, enquanto noutros são silenciadas pelas chagas desumanas da fome e da pobreza. Pensemos na fome e pobreza de hoje. Oxalá que, entre os motivos do esquecimento daquilo que conta, não se inclua a nossa incúria, o escândalo de nos empenharmos noutra coisa que não a de anunciar o Deus que dá paz à vida e a paz que dá vida aos homens. Irmãos e irmãs, apoiemo-nos nisto, demos continuidade ao nosso encontro de hoje, caminhemos juntos! Seremos abençoados pelo Altíssimo e pelas criaturas mais pequeninas e frágeis que são as preferidas d’Ele: os pobres, as crianças e os jovens, que, depois de tantas noites tenebrosas, aguardam o surgir duma alvorada de luz e de paz. Obrigado!


Sexta-feira, 4 de novembro

Encontro ecuménico e oração pela paz

Alteza Real,
Senhor Ministro da Justiça,
obrigado pela vossa presença que nos honra.

«Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus» (At 2, 9-11).

Santidade, caro Irmão Bartolomeu, amados irmãos e irmãs, estas palavras parecem escritas para nós, hoje: de tantos povos e tantas línguas, de tantas partes e tantos ritos, estamos aqui juntos, e fazemo-lo por causa das maravilhas realizadas por Deus! Estamos em paz, como naquela manhã de Pentecostes em que não se compreendia nada! Em Jerusalém, no dia de Pentecostes, apesar de virem de muitas regiões, sentiram-se unidos num só Espírito: hoje, como então, a variedade de origens e línguas não é um problema, mas um recurso. Um autor antigo escreveu: «Se alguém nos diz “se recebeste o Espírito Santo, porque não falas em todas as línguas?”, devemos responder-lhe «falo certamente em todas as línguas, porque sou membro do Corpo de Cristo, isto é, da sua Igreja, que se exprime em todas as línguas”» (Sermão de um Autor africano do século VI: PL 65, 743).

Irmãos, irmãs, isto é válido também para nós, porque, «num só Espírito, fomos todos batizados para formar um só corpo» (1 Cor 12, 13). Infelizmente, com as nossas dilacerações, ferimos o corpo santo do Senhor, mas o Espírito Santo, que une todos os membros, é maior do que as nossas divisões carnais. Por isso é justo afirmar que, quanto nos une, supera em muito quanto nos divide e que, quanto mais caminharmos segundo o Espírito, tanto mais seremos levados a desejar e, com a ajuda de Deus, a restabelecer a plena unidade entre nós.

Voltemos ao texto de Pentecostes. Ao meditar nele, ressoaram em mim dois elementos, que me parecem úteis para o nosso caminho de comunhão, desejando por isso partilhá-los convosco; são a unidade na diversidade e o testemunho de vida.

A unidade na diversidade. No Pentecostes – dizem os Atos dos Apóstolos –, os discípulos «encontravam-se todos reunidos no mesmo lugar» (2, 1). Notemos como o Espírito, apesar de Se pousar sobre cada um, todavia escolhe o momento em que estão todos juntos. Podiam adorar a Deus e fazer bem ao próximo mesmo separadamente, mas é convergindo em unidade que se abrem de par em par as portas à obra de Deus. O povo cristão é chamado a reunir-se, para que aconteçam as maravilhas de Deus. O facto de estar aqui no Bahrein como um pequeno rebanho de Cristo, disperso em vários lugares e confissões, ajuda a sentir a necessidade da unidade, da partilha da fé: assim como neste arquipélago não faltam ligações seguras entre as ilhas, assim aconteça também entre nós, para não estarmos isolados, mas em comunhão fraterna.

Irmãos e irmãs, pergunto-me: Como fazer para aumentar a unidade, se a história, a habituação, as obrigações e as distâncias nos parecem atrair para outras partes? Qual é o «lugar de encontro», o «cenáculo espiritual» da nossa comunhão? É o louvor de Deus, que o Espírito suscita em todos. A oração de louvor não isola, nem nos fecha em nós mesmos e nas nossas necessidades, mas introduz-nos no coração do Pai e, assim, nos liga a todos os irmãos e irmãs. A oração de louvor e adoração é a mais elevada: gratuita e incondicional, atrai a alegria do Espírito, purifica o coração, reconstitui a harmonia, sanifica a unidade. É o antídoto contra a tristeza, a tentação de nos deixarmos turbar pela nossa pequenez interior e pela insignificância exterior dos nossos números. Quem louva, não presta atenção à pequenez do rebanho, mas à beleza de sermos os pequeninos do Pai. O louvor, que permite ao Espírito derramar em nós a sua consolação, é um bom remédio contra a solidão e a nostalgia de casa. Permite-nos notar a proximidade do Bom Pastor, mesmo quando pesa a falta de Pastores próximos, caso frequente nestes lugares. Precisamente nos nossos desertos, o Senhor gosta de abrir novos e inesperados caminhos e fazer brotar fontes de água viva (cf. Is 43, 19). O louvor e a adoração conduzem-nos até lá, até às fontes do Espírito, levando-nos de novo às origens, à unidade.

Será bom continuar a alimentar o louvor de Deus, para serdes ainda mais sinal de unidade para todos os cristãos! Continuai também com o bom costume de colocar à disposição doutras comunidades os edifícios de culto para adorar o único Senhor. Na realidade, não só aqui na terra, mas também no Céu, há um rasto de louvor que nos une: é o rasto dos inúmeros mártires cristãos de várias confissões. Quantos houve, nestes últimos anos, no Médio Oriente e em todo o mundo! Quantos!!! Agora formam um único céu estrelado, que aponta a estrada a quem caminha nos desertos da história: temos a mesma meta, somos todos chamados à plenitude da comunhão em Deus.

Lembremo-nos, porém, de que a unidade para a qual caminhamos sobrevive na diferença. É importante ter isto em consideração: a unidade não é fazer «todos iguais», não! É feita na diferença. A narração de Pentecostes especifica que cada um ouvia os apóstolos falarem «na sua própria língua» (At 2, 6): o Espírito não cunha uma linguagem idêntica para todos, mas permite a cada um falar línguas alheias (cf. 2, 4), de modo que cada um possa ouvir, de outros, o próprio idioma (cf. 2, 11). Em suma, não nos encerra na uniformidade, mas predispõe-nos para nos acolhermos nas diferenças. Isto acontece a quem vive segundo o Espírito: aprende a encontrar cada irmão e irmã na fé como parte do corpo a que pertence. Este é o espírito do caminho ecuménico.

Caríssimos, perguntemo-nos a nós mesmos como avançamos neste caminho. Eu, pastor, ministro, fiel, sou dócil à ação do Espírito? Vivo o ecumenismo como um peso, como um compromisso extra, como um dever institucional, ou então como o desejo veemente de Jesus de que nos tornemos «um só» (Jo 17, 21), como uma missão que brota do Evangelho? Concretamente, que faço eu por aqueles irmãos e irmãs que acreditam em Cristo e não são dos «meus»? Conheço-os, procuro-os, interesso-me por eles? Mantenho as distâncias comportando-me de maneira formal ou então procuro compreender a sua história e apreciar as suas particularidades, sem as considerar obstáculos intransponíveis?

Depois da unidade na diversidade, passemos ao segundo elemento: o testemunho de vida. No Pentecostes, os discípulos abrem-se, saem do Cenáculo. A partir de então, irão a todos os lugares do mundo. Jerusalém, que parecia o seu ponto de chegada, torna-se o ponto de partida duma aventura extraordinária. Já ninguém se recorda do medo que os mantinha, fechados, em casa! Agora vão por todo o lado, não para se distinguir dos outros, nem mesmo para revolucionar a ordem da sociedade e a organização do mundo, mas para irradiar por todos os cantos a beleza do amor de Deus através da sua vida. Com efeito, o nosso anúncio não é tanto um discurso feito de palavras, como sobretudo um testemunho que se há de mostrar com os factos; a fé não é um privilégio que se há de reivindicar, mas um dom a partilhar. Como diz um texto antigo, os cristãos «não têm cidades próprias, não usam uma linguagem peculiar, e a sua vida nada tem de excêntrico (…). Toda a terra estrangeira é sua pátria (…). Habitam na terra, mas a sua cidade é o Céu. Obedecem às leis estabelecidas, mas pelo seu modo de vida superam as leis. Amam a todos» (Epístola a Diogneto, 5). Amam a todos: aqui está o distintivo cristão, a essência do testemunho. O facto de estar aqui, no Bahrein, permitiu a muitos de vós voltar a descobrir e praticar a genuína simplicidade da caridade: penso na assistência aos irmãos e irmãs que chegam, numa presença cristã que com humildade quotidiana testemunha, nos locais de trabalho, compreensão e paciência, alegria e mansidão, benevolência e espírito de diálogo. Numa palavra: paz.

Será bom interrogar-nos também sobre o nosso testemunho, porque, com o passar do tempo, podemos avançar apenas por inércia e esmorecer em mostrar Jesus através do espírito das Bem-aventuranças, a coerência e a bondade da vida, a conduta pacífica. Agora que nos encontramos a rezar juntos pela paz, perguntemo-nos: Somos verdadeiramente pessoas de paz? Estamos possuídos pelo desejo de manifestar, por todo o lado e sem esperar nada em troca, a mansidão de Jesus? Fazemos nossas – trazendo-as no coração e à oração – as fadigas, as feridas e as desuniões que vemos à nossa volta?

Irmãos e irmãs, quis partilhar convosco estes pensamentos sobre a unidade, que o louvor fortalece, e sobre o testemunho, que a caridade fortifica. Unidade e testemunho são coessenciais: não se pode testemunhar verdadeiramente o Deus do amor, se não estivermos unidos entre nós como Ele deseja; e não se pode estar unido seguindo cada um por conta própria, sem se abrir ao testemunho, nem dilatar os confins dos próprios interesses e das próprias comunidades em nome do Espírito que abraça toda a língua e anseia por conquistar a cada um. Permitam-me acrescentar uma reflexão: naquele dia, o Espírito Santo cria uma grande diversidade, que parece uma grande desordem. Mas o mesmo Espírito que dá a diversidade dos carismas é o mesmo que cria a unidade, mas a unidade como harmonia. O Espírito é harmonia, como dizia um grande Padre da Igreja: «Ipse harmonia est – Ele é a harmonia». Por isto é que nós rezamos: para que aconteça entre nós esta harmonia. Ele une e envia, reúne em comunhão e manda em missão. Na oração, confiemos-Lhe o nosso percurso comum e invoquemos sobre nós a sua efusão, um renovado Pentecostes que dê olhares novos e passos pressurosos ao nosso caminho de unidade e paz.


Sábado, 5 de novembro

Santa Missa pela paz e pela justiça

O profeta Isaías diz que Deus fará surgir um Messias que «dilatará o seu domínio com uma paz sem limites» (Is 9, 6). Parece uma contradição! Com efeito, no palco deste mundo, muitas vezes vemos que quanto mais se procura o poder, tanto mais ameaçada está a paz. Ao contrário, o profeta anuncia uma novidade extraordinária: o Messias que vem é verdadeiramente poderoso, mas não como um líder que guerreia e domina sobre os outros, mas como «Príncipe da paz» (9, 5), como Aquele que reconcilia os homens com Deus e entre si. A grandeza do seu poder não se serve da força da violência, mas da debilidade do amor. Este é o poder de Cristo: o amor. E confere também a nós o mesmo poder, o poder de amar, de amar em seu nome, de amar como Ele amou. Como? De modo incondicional: não só quando as coisas correm bem e temos vontade de amar, mas sempre; não apenas aos nossos amigos e vizinhos, mas a todos, mesmo inimigos. Sempre e a todos.

Reflitamos um pouco sobre isto: amar sempre e amar a todos.

Comecemos pela primeira coisa: hoje as palavras de Jesus (cf. Mt 5, 38-48) convidam-nos a amar sempre, isto é, a permanecer sempre no seu amor, a cultivá-lo e praticá-lo qualquer que seja a situação onde vivemos. Mas atenção! O olhar de Jesus é realista; não diz que será fácil nem propõe um amor sentimental ou romântico, como se não houvesse, nas nossas relações humanas, momentos de conflito e não houvesse motivos de hostilidade entre os povos. Jesus não é utópico, mas realista: fala explicitamente de «maus» e de «inimigos» (cf. 5, 39.43). Sabe que acontece uma luta diária entre amor e ódio, no âmbito dos nossos relacionamentos; e, dentro de nós mesmos, verifica-se dia a dia um combate entre a luz e as trevas, entre tantos propósitos e desejos de bem e aquela fragilidade pecadora que muitas vezes nos domina e arrasta para as obras do mal. Sabe também que é o que experimentamos quando, apesar de tantos esforços generosos, nem sempre recebemos o bem que esperávamos, antes, às vezes incompreensivelmente sofremos um dano. Mais, Ele vê e sofre ao contemplar, nos nossos dias e em muitas partes do mundo, exercícios do poder que se nutrem de opressão e violência, procuram aumentar o espaço próprio restringindo o dos outros, impondo o próprio domínio, limitando as liberdades fundamentais, oprimindo os mais frágeis. Concluindo, Jesus bem sabe que há conflitos, opressões, inimizades.

À vista de tudo isto, eis a pergunta importante que se deve pôr: Que havemos de fazer quando nos encontramos em situações do género? A proposta de Jesus é surpreendente, é intrépida, é audaz. Pede aos seus a coragem de arriscar por algo que, na aparência, é perdedor; pede-lhes para permanecerem sempre, fielmente, no amor, apesar de tudo, mesmo perante o mal e o inimigo. Ora a pura e simples reação humana cinge-se ao «olho por olho e dente por dente»; mas isto equivale a fazer-se justiça com as mesmas armas do mal recebido. Jesus ousa propor-nos algo de novo, diferente, impensável, algo de Seu: «Eu, porém, digo-vos: Não oponhais resistência ao mau. Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra» (5, 39). Aqui está o que nos pede o Senhor: que não sonhemos idealisticamente com um mundo animado pela fraternidade, mas que nos comprometamos – principiando nós mesmos – a viver concreta e corajosamente a fraternidade universal, perseverando no bem mesmo quando recebemos o mal, quebrando a espiral da vingança, desarmando a violência, desmilitarizando o coração. Um eco disto mesmo, temo-lo no apóstolo Paulo quando escreve «não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem» (Rm 12, 21).

Assim, o convite de Jesus não tem a ver primariamente com as grandes questões da humanidade, mas com as situações concretas da nossa vida: os nossos laços familiares, as relações na comunidade cristã, os vínculos que cultivamos no trabalho e na sociedade onde nos encontramos. Haverá atritos, momentos de tensão, haverá conflitos, diversidade de perspetivas, mas quem segue o Príncipe da paz deve procurar sempre a paz. E esta não se pode restabelecer se, a uma palavra ofensiva, se responde com outra pior, se a uma bofetada se responde com outra. Isto não! É preciso «desativar«, quebrar a cadeia do mal, romper a espiral da violência, deixar de guardar ressentimento, pôr fim a lamúrias e lamentos acerca da própria sorte. Há que permanecer no amor, sempre: é o caminho de Jesus para dar glória ao Deus do céu e construir a paz na terra. Amar sempre.

Passemos agora ao segundo aspeto: amar a todos. Podemos empenhar-nos no amor, mas não basta se o circunscrevermos à esfera restrita das pessoas de quem recebemos igualmente amor, de quem nos é amigo, dos nossos semelhantes, familiares. Também neste caso, o convite de Jesus é surpreendente, porque amplia os confins da lei e do bom senso: já é difícil, embora razoável, amar o próximo, quem é nosso vizinho. Em geral, é aquilo que uma comunidade ou um povo procura fazer, para conservar a paz no próprio seio: se se pertence à mesma família ou à mesma nação, se se têm as mesmas ideias ou os mesmos gostos, se se professa o mesmo credo, é normal procurar ajudar-se e querer-se bem. Mas que sucede se, quem estava distante, vem para perto de nós, se quem é estrangeiro, diferente ou de outro credo se torna nosso vizinho de casa? Precisamente esta nação é uma imagem viva da convivência na diversidade, do nosso mundo marcado sempre mais pela migração permanente dos povos e pelo pluralismo de ideias, usos e tradições. Então é importante acolher esta provocação de Jesus: «Se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os publicanos?» (Mt 5, 46). O verdadeiro desafio, para ser filhos do Pai e construir um mundo de irmãos, é aprender a amar a todos, mesmo o inimigo: «Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem» (5, 43-44). Na realidade, isto significa escolher não ter inimigos: ver no outro, não um obstáculo a superar, mas um irmão e uma irmã a amar. Amar o inimigo é trazer à terra um reflexo do Céu, é fazer descer sobre o mundo o olhar e o coração do Pai, que não faz distinções nem discrimina, mas «faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores» (5, 45).

Irmãos, irmãs, o poder de Jesus é o amor, e Jesus dá-nos o poder de amar desta maneira, duma forma que nos parece sobre-humana. Na verdade, uma tal capacidade não pode ser fruto apenas dos nossos esforços; é, antes de mais nada, uma graça; uma graça que deve ser pedida com insistência: «Jesus, Vós que me amais, ensinai-me a amar como Vós. Jesus, Vós que me perdoais, ensinai-me a perdoar como Vós. Enviai sobre mim o vosso Espírito, o Espírito do amor». Peçamo-lo! Frequentemente confiamos à atenção do Senhor muitos pedidos, mas o pedido essencial para o cristão é este: saber amar como Cristo. Amar é o dom maior, e recebemo-lo quando damos espaço ao Senhor na oração, quando acolhemos a Presença d’Ele na sua Palavra que nos transforma e na revolucionária humildade do seu Pão partido. Assim, lentamente, vão caindo os muros que nos endurecem o coração e encontramos a alegria de praticar obras de misericórdia para com todos. Então compreendemos que uma vida feliz passa através das Bem-aventuranças e consiste em sermos construtores de paz (cf. Mt 5, 9).

Queridos amigos, hoje quero agradecer o vosso humilde e jubiloso testemunho de fraternidade para ser, nesta terra, sementes do amor e da paz. É o desafio que o Evangelho lança diariamente às nossas comunidades cristãs, a cada um de nós. E a vós, a todos vós que viestes, a esta Celebração, dos quatro países do Vicariato Apostólico da Arábia do Norte – Bahrein, Kuwait, Qatar e Arábia Saudita – e doutros territórios do Golfo, bem como doutros países, hoje trago-vos o carinho e a solidariedade da Igreja universal, que tem os olhos postos em vós e vos abraça, que vos ama e encoraja. Que a Virgem Santa, Nossa Senhora da Arábia, vos acompanhe ao longo do caminho e vos guarde sempre no amor para com todos.

Libreria Editrice Vaticana / Rome Reports