Viagem Apostólica do Papa Francisco ao Canadá

Intervenções do Papa Francisco na Viagem Apostólica ao Canadá (24-30 de julho de 2022).

Segunda-feira, 25 de julho 

Terça-feira, 26 de julho

Quinta-feira, 28 de julho 

Sexta-feira, 29 de julho 


25 de julho

Encontro com as populações indígenas First Nations, Métis e Inuit, em Maskwacis

Senhora Governadora Geral,
Senhor Primeiro-Ministro,
Queridas populações indígenas de Maskwacis e desta terra canadiana,
Queridos irmãos e queridas irmãs!

Aguardava pelo momento de chegar ao vosso meio. Quero iniciar daqui, deste lugar tristemente evocativo, o que tenho em mente fazer: uma peregrinação, uma peregrinação penitencial. Chego às vossas terras nativas para vos exprimir, pessoalmente, o meu pesar, implorar de Deus perdão, cura e reconciliação, manifestar-vos a minha proximidade, rezar convosco e por vós.

Recordo os encontros que tivemos em Roma, há quatro meses. Naquela altura, foram-me entregues, como penhor, dois pares de mocassins, sinal das tribulações sofridas pelas crianças indígenas, particularmente por aquelas que, infelizmente, não mais regressaram a casa das escolas residenciais. Pediram-me para restituir os mocassins quando chegasse ao Canadá; trouxe-os e restituí-los-ei no final destas palavras, inspiradas precisamente neste símbolo que foi reavivando em mim, nos meses passados, o pesar, a indignação e a vergonha. A recordação daqueles meninos infunde consternação e incita a agir para que toda a criança seja tratada com amor, veneração e respeito. Mas estes mocassins falam-nos também dum caminho, dum percurso que desejamos fazer juntos. Caminhar juntos, rezar juntos, trabalhar juntos, para que os sofrimentos do passado deem lugar a um futuro de justiça, cura e reconciliação.

Por isso mesmo, a primeira etapa da minha peregrinação entre vós desenrola-se nesta região que conhece, desde tempos imemoriais, a presença das populações indígenas. É um território que nos fala, que permite fazer memória.

Fazer memória: irmãos e irmãs, vivestes neste território, durante milhares de anos, com estilos de vida que respeitaram a própria terra, herdada das gerações passadas e guardada para as futuras. Tratastes-la como um dom do Criador que há de ser partilhado com os outros e amado na harmonia com tudo o que existe, numa interconexão vital de todos os seres vivos. Assim aprendestes a nutrir um sentido de família e de comunidade, e desenvolvestes laços sólidos entre as gerações, honrando os idosos e cuidando dos pequeninos. Quantos bons costumes e ensinamentos, centrados na atenção pelos outros e no amor pela verdade, na coragem e no respeito, na humildade e na honestidade, na sabedoria de vida!

Mas, se estes foram os primeiros passos dados nestes territórios, a memória leva-nos, tristemente, aos seguintes. O lugar, onde agora nos encontramos, faz repercutir em mim um grito de dor, um brado sufocado que me acompanhou nestes meses. Repasso o drama sofrido por muitos de vós, pelas vossas famílias, pelas vossas comunidades; repasso o que partilhastes comigo sobre as tribulações sofridas nas escolas residenciais. São traumas que, de certo modo, revivem sempre que se evocam, dando-me conta de que também o nosso encontro de hoje pode despertar recordações e feridas e muitos de vós poderiam sentir embaraço enquanto falo. Mas é justo fazer memória, porque o esquecimento leva à indiferença e, como já foi dito, «o contrário do amor não é o ódio, é a indiferença (...), o contrário da vida não é a morte, mas a indiferença face à vida ou à morte» (E. Wiesel). Fazer memória das experiências devastadoras que aconteceram nas escolas residenciais impressiona-nos, indigna-nos e entristece-nos, mas é necessário.

É necessário recordar como as políticas de assimilação e alforria, que incluíam o sistema das escolas residenciais, foram devastadoras para as pessoas destas terras. Quando os colonizadores europeus chegaram aqui pela primeira vez, deparava-se-lhes a grande oportunidade de desenvolver um encontro fecundo entre culturas, tradições e espiritualidades. Mas isso, em grande parte, não aconteceu. E voltam-me à mente os vossos relatos: de como as políticas de assimilação acabaram por marginalizar sistematicamente os povos indígenas; de como as vossas línguas e as vossas culturas, também através do sistema das escolas residenciais, foram denegridas e suprimidas; de como as crianças foram submetidas a abusos físicos e verbais, psicológicos e espirituais; de como foram levadas das suas casas quando eram pequeninas e de como isso afetou indelevelmente a relação entre os pais e os filhos, os avós e os netos.

Agradeço-vos por me terdes feito entrar no coração tudo isto, por terdes mostrado os fardos pesados que carregais no vosso íntimo, por terdes partilhado comigo esta memória sanguinolenta. Encontro-me hoje nesta terra que, a par duma memória antiga, guarda as cicatrizes de feridas ainda abertas. Estou aqui, porque o primeiro passo desta peregrinação penitencial no meio de vós é o de vos renovar o pedido de perdão e dizer com todo o coração que o deploro profundamente: peço perdão pelas formas em que muitos cristãos, infelizmente, apoiaram a mentalidade colonizadora das potências que oprimiram os povos indígenas. Sinto pesar. Peço perdão, em particular pelas formas em que muitos membros da Igreja e das comunidades religiosas cooperaram, inclusive através da indiferença, naqueles projetos de destruição cultural e assimilação forçada dos governos de então, que culminaram no sistema das escolas residenciais.

Embora estivesse presente a caridade cristã e tivesse havido não poucos casos exemplares de dedicação às crianças, as consequências globais das políticas ligadas às escolas residenciais foram catastróficas. A fé cristã diz-nos que se tratou dum erro devastador, incompatível com o Evangelho de Jesus Cristo. Pesa saber que sobre aquele terreno compacto de valores, língua e cultura, que conferiu às vossas populações um genuíno sentido de identidade, se tenha abatido a erosão, de que continuais a pagar as consequências. Perante este mal que indigna, a Igreja ajoelha-se diante de Deus e implora o perdão para os pecados dos seus filhos (cf. S. João Paulo II, Bula Incarnationis mysterium, 29 de novembro de 1998, 11: AAS 91, 1999, 140). Desejo reiterá-lo claramente e com vergonha: peço humildemente perdão pelo mal cometido por tantos cristãos contra as populações indígenas.

Queridos irmãos e irmãs, muitos de vós e dos vossos representantes afirmaram que o pedido de desculpa não é ponto de chegada. Concordo perfeitamente: constituem apenas o primeiro passo, o ponto de partida. Estou ciente, também eu, de que, «olhando para o passado, nunca será suficiente o que se faça para pedir perdão e procurar reparar o dano causado», e de que, «olhando para o futuro, nunca será pouco tudo o que for feito para gerar uma cultura capaz de evitar que essas situações não só não aconteçam, mas que não encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas» (Francisco, Carta ao Povo de Deus, 20 de agosto de 2018). Parte importante deste processo é efetuar uma busca séria da verdade sobre o passado e ajudar os sobreviventes das escolas residenciais a empreender percursos de cura dos traumas sofridos.

Rezo e espero que os cristãos e a sociedade desta terra cresçam na capacidade de acolher e respeitar a identidade e a experiência das populações indígenas. Faço votos de que se encontrem vias concretas para as conhecer e apreciar, aprendendo a caminhar todos juntos. Da minha parte, continuarei a encorajar o empenho de todos os católicos em favor dos povos indígenas. Já o fiz noutras ocasiões e em vários lugares, por meio de encontros, apelos e mesmo através duma Exortação Apostólica. Sei que tudo isto requer tempo e paciência: trata-se de processos que devem penetrar nos corações, e a minha presença aqui e o empenho dos Bispos canadianos dão testemunho da vontade de avançar por este caminho.

Queridos amigos, embora esta peregrinação se estenda por alguns dias e toque lugares distantes entre si, todavia não me permitirá atender a muitos convites recebidos para visitar centros como Kamloops, Winnipeg, vários lugares em Saskatchewan, no Yukon e nos Territórios do Noroeste. Apesar disso não ser possível, sabei que vos tenho a todos no meu pensamento e na minha oração. Sabei que conheço o sofrimento, os traumas e os desafios dos povos indígenas em todas as regiões deste país. As minhas palavras pronunciadas ao longo deste caminho penitencial são dirigidas a todas as comunidades e pessoas nativas, que abraço de coração.

Nesta primeira etapa, quis dar espaço à memória. Hoje, estou aqui a recordar o passado, chorar convosco, contemplar em silêncio a terra, rezar junto das sepulturas. Deixemos que o silêncio nos ajude, a todos, a interiorizar o pesar. Silêncio. E oração: frente ao mal, rezamos ao Senhor do bem; frente à morte, rezamos ao Deus da vida. Dum túmulo – termo último da esperança perante o qual se desvaneceram todos os sonhos ficando apenas pranto, pesar e resignação – o Senhor Jesus Cristo fez o lugar do renascimento, da ressurreição, donde partiu uma história de vida nova e reconciliação universal. Não bastam os nossos esforços para curar e reconciliar, é precisa a sua graça: precisamos da sabedoria serena e forte do Espírito, da ternura do Consolador. Seja Ele a preencher as expetativas dos corações. Seja Ele a tomar-nos pela mão. Seja Ele a fazer-nos caminhar juntos.


25 de julho

Encontro com as populações indígenas e com os membros da comunidade paroquial, na igreja do Sagrado Coração em Edmonton

Queridos irmãos e irmãs, boa tarde!

Estou feliz por me encontrar no vosso meio e rever os rostos de vários representantes indígenas que, há poucos meses, me foram visitar a Roma. Foi muito significativa para mim aquela visita: agora estou eu na vossa casa, como amigo e peregrino, estou na vossa terra, no templo onde vos reunis para louvar a Deus como irmãos e irmãs. Em Roma, depois de vos ter escutado, disse que «um processo de cura eficaz requer gestos concretos» (Discurso às Delegações dos Povos Indígenas do Canadá, 1 de abril de 2022). Apraz-me ver que nesta paróquia, para onde confluem pessoas das diferentes comunidades das Firts Nations, dos Métis e dos Inuit juntamente com população não indígena da localidade e diversos irmãos e irmãs imigrantes, tal processo já começou. Esta é uma casa para todos, aberta e inclusiva como deve ser a Igreja, família dos filhos de Deus, onde a hospitalidade e o acolhimento – valores típicos da cultura indígena – são essenciais; onde se deve sentir bem-vindo cada um, independentemente das vicissitudes passadas e das circunstâncias individuais da vida. Uma coisa que me toca muito e vos quero agradecer: a proximidade concreta a tantos pobres (que são numerosos também neste país rico) através da caridade. É o que deseja Jesus, o Qual nos disse e continua a repetir no Evangelho: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). Neles Jesus está presente.

E ao mesmo tempo não devemos esquecer que, também na Igreja, a cizânia se mistura com o trigo bom. Mesmo na Igreja. Foi precisamente por causa dessa cizânia que desejei fazer esta peregrinação penitencial e iniciá-la, esta manhã, recordando o mal sofrido pelas populações indígenas, da parte de tantos cristãos, e pedindo perdão lamentando-o. Custa-me pensar que católicos tenham contribuído para as políticas de assimilação e alforria que transmitiam um sentido de inferioridade, despojando comunidades e pessoas das suas identidades culturais e espirituais, cortando as suas raízes e alimentando atitudes preconceituosas e discriminatórias, e que isso tenha sido feito também em nome duma educação que se supunha cristã. A educação deve partir sempre do respeito e da promoção dos talentos que já existem nas pessoas. Não é, nem jamais poderá ser, algo pré-confecionado que se há de impor, porque educar é a aventura de explorar e descobrir, juntos, o mistério da vida. Graças a Deus, através do encontro em paróquias como esta, edificam-se dia após dia as bases para a cura e a reconciliação. Cura, reconciliação. Gostaria de dizer algo que não está escrito aqui. Quero agradecer de maneira especial o trabalho que fizeram os Bispos para eu poder vir aqui e para vós poderdes ir lá [a Roma]. Uma Conferência Episcopal unida faz gestos grandes, dá muito fruto. Muito obrigado à Conferência Episcopal!

Reconciliação: sobre esta palavra quero, nesta tarde, partilhar algumas reflexões. Que nos sugere Jesus quando fala de reconciliação? Ou quando nos incute a reconciliação? Que significado tem a reconciliação para nós hoje? Queridos amigos, a reconciliação realizada por Cristo não foi um acordo externo de paz, uma espécie de compromisso para contentar as várias partes. Tampouco foi uma paz caída do Céu, chegada por imposição do alto ou por apropriação do outro. O apóstolo Paulo explica que Jesus reconcilia juntando, fazendo de duas realidades distantes uma única realidade, uma coisa só, um só povo. E como o faz? Por meio da cruz (cf. Ef 2, 14-16). É Jesus que nos reconcilia uns com os outros na cruz, naquela árvore da vida, como gostavam de lhe chamar os antigos cristãos. A cruz, árvore da vida.

Vós, queridos irmãos e irmãs indígenas, tendes muito a ensinar sobre o significado vital da árvore, que, unida à terra pelas raízes, nos dá oxigénio através das folhas e nutre com os seus frutos. E é belo ver a simbologia da árvore representada na fisionomia desta igreja, onde um tronco une ao terreno o altar sobre o qual Jesus nos reconcilia na Eucaristia, «ato de amor cósmico» que «une o céu e a terra, abraça (...) toda a criação» (Francisco, Carta enc. Laudato si’, 236). Este simbolismo litúrgico recorda-me uma frase estupenda pronunciada por São João Paulo II neste país: «Trata-se de fazer que Cristo anime o centro mesmo de toda a cultura. Deste modo, não só o cristianismo é relevante para as populações indígenas, mas Cristo, nos membros do seu Corpo, torna-Se Ele mesmo indígena» (Celebração da Palavra com os Índios do Canadá, 15 de setembro de 1984). Ele reconcilia na cruz; une mesmo o que antes parecia impensável e imperdoável; abraça tudo e todos. Tudo e todos: as populações indígenas atribuem um forte significado cósmico aos pontos cardeais, vistos não só como pontos de referência geográfica, mas também como dimensões que abraçam a realidade inteira e indicam o caminho para a sanar, representado pela chamada «roda da medicina». Este templo assume tal simbologia dos pontos cardeais e dá-lhes um significado cristológico. Através das extremidades da sua cruz, Jesus abraça os pontos cardeais e reúne os povos mais distantes, Jesus tudo sana e pacifica (cf. Ef 2, 14-16). Lá cumpre este desígnio de Deus: «reconciliar todas as coisas» (cf. Col 1, 20).

Irmãos, irmãs, que significa isto para quem carrega dentro de si feridas tão dolorosas? Naqueles que sofreram tremendamente por causa de homens e mulheres que deviam dar testemunho de vida cristã, imagino a dificuldade que podem sentir em divisar qualquer perspetiva de reconciliação. A dignidade violada, o mal suportado, a confiança traída, nada os pode cancelar. Tampouco se deve jamais cancelar a vergonha sentida por nós, crentes. Mas é necessário recomeçar, e Jesus propõe-nos, não palavras e bons propósitos, mas a cruz, aquele amor escandaloso que se deixa trespassar os pés e os pulsos por cravos, e perfurar a cabeça de espinhos. Tal é a direção a seguir: olhar juntos para Cristo, o amor traído e crucificado por nós; olhar para Jesus, crucificado em tantos alunos das escolas residenciais. Se queremos verdadeiramente reconciliar-nos entre nós e dentro de nós, reconciliar-nos com o passado, com as injustiças sofridas e com a memória ferida, com vicissitudes traumatizantes que nenhuma consolação humana pode curar, há que elevar o olhar para Jesus crucificado, a paz deve ser bebida do seu altar. Porque é precisamente na árvore da cruz que o sofrimento se transforma em amor, a morte em vida, a deceção em esperança, o abandono em comunhão, a distância em unidade. A reconciliação não é tanto obra nossa, é uma prenda, é um dom que brota do Crucificado, é paz que vem do Coração de Jesus, é uma graça que deve ser implorada. A reconciliação é uma graça que deve ser pedida.

Há outro aspeto da reconciliação, de que vos quero falar. O apóstolo Paulo explica que Jesus, por meio da cruz, nos reconciliou num só corpo (cf. Ef 2, 14-16). De que corpo fala ele? Fala da Igreja: a Igreja é este corpo vivo de reconciliação. Mas, se o nosso pensamento se fixa no sofrimento incancelável suportado nestes lugares por tantos no seio de instituições eclesiais, a única coisa que sentimos é cólera, a única coisa que sentimos é vergonha. Isso aconteceu quando os crentes se deixaram mundanizar e, em vez de promover a reconciliação, impuseram o seu modelo cultural. Este comportamento, irmãos e irmãs, é difícil fazê-lo morrer, mesmo do ponto de vista religioso. De facto, parecer-nos-ia mais conveniente inculcar Deus nas pessoas, do que permitir que as pessoas se aproximem de Deus: uma contradição! Isto, porém, nunca funciona, porque o Senhor não age assim: não força, não sufoca, nem oprime; pelo contrário, sempre ama, liberta e deixa livres. Não sustenta com o seu Espírito quem subjuga os outros, quem confunde o Evangelho da reconciliação com o proselitismo. Pois não se pode anunciar Deus de modo contrário a Deus. E todavia, quantas vezes sucedeu na história! Enquanto Deus se limita humildemente a propor-Se, nós temos sempre a tentação de O impor e de nos impormos em seu nome. É a tentação mundana de fazê-Lo descer da cruz, para O manifestar com a força e a aparência. Mas Jesus reconcilia na cruz, não descendo da cruz. Em terra, à volta da cruz, estavam aqueles que pensavam em si mesmos e tentavam Cristo repetindo-Lhe que Se salvasse a Si mesmo (cf. Lc 23, 35.36), sem pensar nos outros. Irmãos e irmãs, em nome de Jesus, peço que não se volte mais a proceder assim na Igreja. Que Jesus seja anunciado como Ele deseja, na liberdade e na caridade, e cada pessoa crucificada que encontrarmos não seja para nós um caso a resolver, mas um irmão ou irmã a amar, carne de Cristo a amar. Que a Igreja, Corpo de Cristo, seja corpo vivo de reconciliação!

A própria palavra reconciliação é, praticamente, sinónimo de Igreja. Com efeito, o termo significa «fazer de novo concílio»: reconciliação, fazer um concílio novo. A Igreja é a casa onde conciliar-se de novo, onde reunir-se para recomeçar e crescer juntos. É o lugar onde se deixa de imaginar como indivíduos para se reconhecer como irmãos, fixando-se olhos nos olhos, acolhendo as histórias e a cultura do outro, deixando que a mística do conjunto, que muito agrada ao Espírito Santo, favoreça a cura da memória ferida. Este é o caminho: não decidir pelos outros, não encaixar todos dentro de esquemas pré-estabelecidos, mas colocar-se diante do Crucificado e diante do irmão para aprender a caminhar juntos. Isto é a Igreja, e assim deve ser: o lugar onde a realidade é sempre superior à ideia. Isto é a Igreja, e assim deve ser: não um conjunto de ideias e preceitos a incutir nas pessoas; a Igreja é uma casa acolhedora para todos! Isto é a Igreja, e assim deve ser: um templo com as portas sempre abertas, como ouvimos estes nossos dois irmãs dizer, que esta paróquia é um templo com as portas sempre abertas, onde todos nós, templos vivos do Espírito, nos encontramos, servimos e reconciliamos. Queridos irmãos e irmãs, os gestos e as visitas podem ser importantes, mas a maior parte das palavras e atividades de reconciliação verificam-se a nível local, em comunidades como esta, onde as pessoas e as famílias caminham lado a lado, dia após dia. O rezar juntos, auxiliar juntos, partilhar histórias de vida, alegrias e lutas comuns, abre a porta à obra reconciliadora de Deus.

Para concluir, deixo-vos uma imagem que nos pode ajudar. Neste templo, por cima do altar e do sacrário, vemos os quatro pálios duma típica tenda indígena (soube que se chamava tepee). A tenda tem um grande significado bíblico. Quando Israel caminhava pelo deserto, Deus habitava numa tenda que era montada sempre que o povo fazia uma paragem: era a Tenda do Encontro. Isso lembra-nos que Deus caminha connosco e gosta de nos encontrar juntos, em convénio, em concílio. E quando Se fez homem – escreve literalmente o Evangelho – «colocou a sua tenda no meio de nós» (cf. Jo 1, 14). Deus é Deus da proximidade; em Jesus, ensina-nos a linguagem da compaixão e da ternura. Isto deve ser percebido sempre que vimos à igreja, onde Ele está presente no sacrário, no tabernáculo (palavra que significa, precisamente, tenda). Portanto Deus ergue a sua tenda entre nós, acompanha-nos ao longo dos nossos desertos: não habita em palácios celestes, mas na nossa Igreja, desejando que ela seja casa de reconciliação.

Ó Jesus, crucificado e ressuscitado, que habitais neste povo, que é vosso; Senhor, que desejais resplandecer através das nossas comunidades e das nossas culturas; Jesus, tomai-nos pela mão e, mesmo nos desertos da história, guiai os nossos passos pelo caminho da reconciliação. Amen.


26 de julho

Santa Misa junto ao "Commonwealth Stadium", em Edmonton

Hoje é a festa dos avós de Jesus; o Senhor quis que nos encontrássemos em tão grande número precisamente nesta ocasião muito querida tanto para vós como para mim. Na casa de Joaquim e Ana, o pequenito Jesus conheceu os idosos da sua família e experimentou a proximidade, a ternura e a sabedoria dos avós. Pensemos, também nós, nos nossos avós e reflitamos sobre dois aspetos importantes.

O primeiro: somos filhos duma história que devemos guardar. Não somos indivíduos isolados, não somos ilhas; ninguém vem ao mundo desligado dos outros. As nossas raízes, o amor com que fomos aguardados e que recebemos ao vir ao mundo, os ambientes familiares onde crescemos, fazem parte duma única história, que nos precedeu e gerou. Não a escolhemos nós, mas recebemo-la de prenda; é uma prenda que somos chamados a guardar. Pois, como nos lembrou o livro de Ben Sira, somos «a posteridade» de quem nos precedeu, somos a sua «rica herança» (cf. Sir 44, 11). Uma herança cujo centro, mais do que nas proezas ou na autoridade de uns, na inteligência ou na criatividade do canto e da poesia de outros, está na justiça, na fidelidade a Deus e à sua vontade. E isto no-lo transmitiram. Para acolher verdadeiramente quem somos e quão preciosos somos, precisamos de assumir em nós aqueles de quem descendemos, aqueles que não pensaram só em si mesmos, mas transmitiram-nos o tesouro da vida. Estamos aqui graças aos pais, mas também graças aos avós que nos fizeram experimentar ser bem-vindos no mundo. Muitas vezes foram eles a amar-nos sem reservas e sem nada esperar de nós: tomaram-nos pela mão quando tínhamos medo, tranquilizaram-nos na escuridão da noite, encorajaram-nos quando, à luz do sol, devíamos enfrentar as opções da vida. Graças aos nossos avós, recebemos uma carícia da parte da história que nos precedeu: aprendemos que o bem, a ternura e a sabedoria são raízes sólidas da humanidade. Na casa dos avós, muitos de nós respiramos o perfume do Evangelho, a força duma fé que tem o sabor de casa. Graças a eles, descobrimos uma fé familiar, uma fé doméstica; sim, porque é deste modo que se comunica essencialmente a fé: comunica-se «em dialeto», comunica-se através do afeto e do encorajamento, da solicitude e da proximidade.

Esta é a nossa história que se deve guardar, a história de que somos herdeiros: somos filhos, porque somos netos. Os avós imprimiram em nós o cunho original do seu modo de ser, dando-nos dignidade, confiança em nós e nos outros. Transmitiram-nos algo que não poderá jamais ser cancelado dentro de nós e, ao mesmo tempo, permitiram-nos ser pessoas únicas, originais e livres. Assim, foi precisamente dos avós que aprendemos que o amor nunca é constrição, nunca priva o outro da sua liberdade interior. Joaquim e Ana amaram Maria e Jesus assim; e Maria amou assim Jesus, com um amor que nunca O sufocou nem tolheu, mas encaminhou a fim de abraçar a missão para a que veio ao mundo. Procuremos aprender isto seja como indivíduos, seja como Igreja: nunca oprimir a consciência do outro, nunca acorrentar a liberdade de quem está à nossa frente e sobretudo nunca faltar ao amor e respeito pelas pessoas que nos precederam e estão confiadas, tesouros preciosos que guardam uma história maior do que eles.

E o livro de Ben Sira diz-nos ainda que, guardar a história que nos gerou, significa não ofuscar a «glória» dos antepassados: não perder a sua memória, não nos esquecermos da história que deu à luz a nossa vida, recordarmo-nos sempre daquelas mãos que nos acarinharam e seguraram nos braços, porque é nesta fonte que encontramos consolação nos momentos de desânimo, luz no discernimento, coragem para enfrentar os desafios da vida. Mas guardar a história que nos gerou significa também voltar sempre àquela escola, onde aprendemos e vivemos o amor. Significa perguntar-nos, perante as opções que devemos tomar hoje, que fariam no nosso lugar os idosos mais sábios que conhecemos, que nos aconselham ou aconselhariam os nossos avós e bisavós.

Queridos irmãos e irmãs, perguntemo-nos então: Somos filhos e netos que sabemos guardar a riqueza recebida? Recordamos os bons ensinamentos herdados? Falamos com os nossos idosos, reservamos tempo para os escutar? E ainda: nas nossas casas, cada vez melhor equipadas, modernas e funcionais, sabemos preparar um espaço digno para conservar as suas recordações, um lugar próprio, um pequeno Oratório familiar que nos permita, através de imagens e objetos queridos, elevar também o pensamento e a oração por quem nos precedeu? Conservamos a Bíblia e o terço dos nossos antepassados? Devemos rezar por eles e em união com eles, dedicar tempo a repassá-los na memória, guardar a herança: na bruma do esquecimento que invade os nossos tempos vertiginosos, irmãos e irmãs, é fundamental cuidar das raízes. É assim que cresce a árvore; é assim que se constrói o futuro.

Chegamos assim ao segundo aspeto, sobre o qual queremos refletir: além de filhos duma história a guardar, somos artesãos duma história a construir. Cada um pode reconhecer aquilo que é, com as suas luzes e sombras, conforme o amor que recebeu ou que lhe faltou. O mistério da vida humana é este: todos somos filhos de alguém, gerados e plasmados por alguém, mas, uma vez tornados adultos, somos também chamados a ser geradores, pais, mães e avós de outrem. Por conseguinte, olhando para a pessoa que somos hoje, que queremos fazer de nós mesmos? Os avós de quem descendemos, os idosos que sonharam, esperaram e se sacrificaram por nós, lançam-nos uma pergunta fundamental: Que sociedade queremos construir? Recebemos tanto das mãos de quem nos precedeu, que queremos deixar em herança à nossa posteridade? Uma fé viva ou uma fé tipo «água de colónia», uma sociedade fundada no lucro dos indivíduos ou na fraternidade, um mundo em paz ou em guerra, uma criação devastada ou uma casa ainda acolhedora?

E não nos esqueçamos de que este movimento que dá vida sobe das raízes para os ramos, as folhas, as flores, os frutos da árvore. A verdadeira tradição expressa-se nesta dimensão vertical: de baixo para o alto. Tenhamos cuidado para não cair numa caricatura da tradição, que não se moveria numa linha vertical – das raízes para os frutos –, mas numa linha horizontal – da frente para trás – que nos leva à cultura do «retrogradismo» como um refúgio egoísta e que se limita a encaixar o presente, conservá-lo na lógica do «sempre se fez assim».

No Evangelho que ouvimos, Jesus diz aos discípulos que são bem-aventurados porque podem ver e ouvir o que muitos profetas e justos só puderam desejar (cf. Mt 13, 16-17). Com efeito muitos acreditaram na promessa de Deus sobre a vinda do Messias, prepararam-Lhe o caminho, anunciaram a sua chegada. Mas, agora que o Messias chegou, quantos O podem ver e ouvir são chamados a acolhê-Lo e anunciá-Lo.

Irmãos e irmãs, isto vale também para nós. Aqueles que nos precederam transmitiram-nos uma paixão, uma força e um anseio, um fogo que nos cabe reavivar; não se trata de guardar cinzas, mas reavivar o fogo que eles acenderam. Os nossos avós e os nossos idosos desejaram ver um mundo mais justo, mais fraterno e mais solidário, e lutaram para nos dar um futuro. Agora, a nós, cabe não os dececionar. Cabe-nos cuidar dessa tradição que recebemos, porque a tradição é a fé viva dos nossos mortos. Por favor, não a transformemos em tradicionalismo que, como disse um pensador, é a fé morta dos vivos. Sustentados por eles, pelos nossos idosos, que são as nossas raízes, toca-nos a nós dar fruto. Somos nós os ramos que devem florescer e introduzir sementes novas na história. Coloquemo-nos, pois, uma pergunta concreta: Eu, perante a história de salvação a que pertenço e face a quem me precedeu e amou, que faço? Tenho um papel único e insubstituível na história… que rasto estou a deixar para trás no meu caminho, que estou a fazer, que estou a deixar para quem me segue, que estou a dar de mim? Muitas vezes avalia-se a vida com base no dinheiro que se ganha, na carreira que se faz, no sucesso e consideração que se recebem dos outros. Mas estes não são critérios geradores. O problema é: que estou a gerar? Estou a gerar vida? Estou introduzindo na história um novo e renovado amor? Estou a anunciar o Evangelho onde estou a viver, estou a servir alguém gratuitamente, como fez comigo quem me precedeu? Que faço pela minha Igreja, pela minha cidade e a sociedade? Irmãos e irmãs, é fácil criticar, mas o Senhor não nos quer apenas críticos do sistema, não nos quer fechados, não nos quer «retrógrados», do número daqueles que se voltam para trás, como diz o autor da Carta aos Hebreus (cf. 10, 39) mas quer que sejamos artesãos duma história nova, tecelões de esperança, construtores do futuro, operadores de paz.

Joaquim e Ana intercedam por nós! Ajudem-nos a guardar a história que nos gerou e a construir uma história geradora. Que eles nos lembrem a importância espiritual de honrar os nossos avós e os nossos idosos, aprender com a sua presença para construir um futuro melhor: um futuro onde os idosos não sejam descartados porque «já não são de utilidade»; um futuro que não julgue o valor das pessoas só pelo que produzem; um futuro que não seja indiferente com quem, já em idade avançada, precisa de mais tempo, escuta e solicitude; um futuro onde, para ninguém, se repita a história de violência e marginalização sofrida pelos nossos irmãos e irmãs indígenas. É um futuro possível se, com a ajuda de Deus, não quebrarmos o vínculo com quem nos precedeu e alimentarmos o diálogo com quem virá depois de nós: jovens e idosos, avós e netos, em conjunto. Avancemos juntos, sonhemos juntos. E não esqueçamos o conselho de Paulo ao seu discípulo Timóteo: «Recorda-te da tua mãe e da tua avó» (cf. 2 Tim 1, 5).


26 de julho

Participação na "Lac Ste. Anne Pilgrimage" e Liturgia da Palavra, em Lac Ste. Anne

Queridos irmãos e irmãs, âba-wash-did! Tansi! Oki! [boa tarde]

Como é bom encontrar-me aqui, peregrino convosco e no meio de vós. Nestes dias, sobretudo hoje, fiquei impressionado com o som dos tambores que me acompanharam por onde tenho andado. Neste batimento dos tambores, parecia ecoar o palpitar de muitos corações: os corações que, ao longo dos séculos, vibraram junto destas águas; os corações de tantos peregrinos que concordaram juntos o passo para chegar a este «lago de Deus»! Aqui pode-se verdadeiramente captar a palpitação unânime dum povo peregrino, de gerações que se puseram em caminho rumo ao Senhor, para experimentar a sua obra de cura. Quantos corações chegaram aqui ansiosos e trepidantes, sobrecarregados pelo peso da vida, e junto destas águas encontraram a consolação e a força para continuar! Também aqui, imerso na criação, há outro batimento que podemos escutar: a palpitação materna da terra. E assim como o batimento dos bebés, ainda no seio materno, está em harmonia com o das mães, assim para crescer como seres humanos precisamos de cadenciar os ritmos da existência com os da criação que nos dá vida. Portanto voltemos hoje às nossas fontes de vida: a Deus, aos pais e, neste dia e na casa de Santa Ana, aos avós, que saúdo com grande afeto.

E aqui estamos, agora, transportados por estas palpitações vitais, em silêncio, contemplando as águas deste lago. Isto ajuda-nos a voltar também às fontes da fé. De facto, permite-nos peregrinar idealmente até aos Lugares Santos: imaginar Jesus, que realizou grande parte do seu ministério precisamente nas margens dum lago, o Lago da Galileia. Lá escolheu e chamou os Apóstolos, proclamou as Bem-Aventuranças, contou a maior parte das parábolas, realizou sinais e curas. Ora, aquele lago constituía o coração da «Galileia dos gentios» (Mt 4, 15), uma zona periférica, de comércio, para onde confluíam as mais variadas populações, colorindo a região de tradições e cultos diversos. Tratava-se do lugar mais distante, geográfica e culturalmente, da pureza religiosa que se concentrava em Jerusalém, no templo. Por isso podemos imaginar aquele lago, chamado Mar da Galileia, como um condensado de diferenças: nas suas margens, encontravam-se pescadores e cobradores de impostos, centuriões e escravos, fariseus e pobres, homens e mulheres das mais variadas proveniências e estratos sociais. E foi lá, precisamente, que Jesus pregou o Reino de Deus: não a um escol de pessoas muito devotas, mas a populações diferenciadas que acorriam de várias partes como hoje, pregou acolhendo a todos num cenário natural como este. Deus escolheu aquele contexto poliédrico e heterogéneo para anunciar ao mundo algo revolucionário: por exemplo, «oferecei a outra face, amai os inimigos, vivei como irmãos para serdes filhos do Pai do Céu que faz brilhar o sol sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os injustos» (cf. Mt 5, 38-48). E assim precisamente aquele lago, uma «mestiçagem de diversidades», tornou-se a sede dum inaudito anúncio de fraternidade; duma revolução sem mortos nem feridos, a revolução do amor. E aqui, nas margens deste lago, o som dos tambores que atravessa os séculos e une povos diferentes, remete-nos para aquela época. Recorda-nos que a fraternidade é verdadeira se une os distantes, que a mensagem de unidade que o Céu envia à terra não teme as diferenças e convida-nos à comunhão, à comunhão das diferenças, para recomeçar juntos, porque todos – todos! – somos peregrinos a caminho.

Irmãos e irmãs peregrinos, que podemos receber destas águas? A Palavra de Deus ajuda-nos a descobri-lo. O profeta Ezequiel repetiu, por duas vezes, que as águas que jorram a partir do templo para o povo de Deus «dão vida» e «curam» (cf. Ez 47, 8-9).

Dão vida. Penso nas avós que estão aqui connosco. Tantas! Caríssimas, os vossos corações são fontes donde jorra a água viva da fé, com a qual saciastes a sede de filhos e netos. Impressiona-me o papel vital das mulheres nas comunidades indígenas: ocupam um lugar de relevo enquanto fontes abençoadas de vida, não apenas física, mas também espiritual. E, ao pensar nas vossas kokum, recordo também a minha avó. Dela recebi o primeiro anúncio da fé e aprendi que é assim que se transmite o Evangelho: mediante a ternura do trato e da sabedoria da vida. A fé raramente nasce lendo sozinhos um livro na varanda, mas difunde-se num clima familiar, transmite-se na língua das mães, com o doce canto em dialeto das avós. Inflama-me o coração ver aqui tantos avós e bisavós. Obrigado! Agradeço-vos e quero dizer a quantos têm idosos em casa, na família: tendes um tesouro! Dentro das vossas paredes, guardais uma fonte de vida; por favor, cuidai dela, como se fosse a herança mais preciosa a amar e proteger.

O profeta dizia que as águas, além de dar vida, curam. Este aspeto leva-nos de novo às margens do lago da Galileia, onde Jesus «curou muitos enfermos atormentados por toda a espécie de males» (Mc 1, 34). Lá, «à noitinha, depois do sol-pôr, trouxeram-Lhe todos os enfermos» (1, 32). Nesta tarde, imaginemo-nos ao redor do lago com Jesus, enquanto Ele Se aproxima, inclina-Se com paciência, compaixão e ternura, cura muitos doentes no corpo e no espírito: endemoninhados, leprosos, paralíticos, cegos, mas também pessoas exaustas e desanimadas, transviadas e feridas. Jesus veio, e continua a vir, cuidar de nós, consolar e sarar a nossa humanidade abandonada e exausta. A todos, e também a nós, dirige o mesmo convite: «Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei de aliviar-vos» (Mt 11, 28). Ou, como no texto que ouvimos esta tarde: «Se alguém tem sede, venha a Mim e beba» (Jo 7, 37).

Irmãos, irmãs, todos nós precisamos da cura de Jesus, médico das almas e dos corpos. Senhor, como as pessoas nas margens do Mar da Galileia não tinham medo de dizer em alta voz as suas necessidades. Também nós esta tarde, Senhor, vimos a Vós, com a dor que temos no nosso íntimo. Trazemo-Vos a nossa aridez e as nossas fadigas, trazemo-Vos os traumas das violências sofridas pelos nossos irmãos e irmãs indígenas. Neste lugar abençoado, onde reinam a harmonia e a paz, apresentamo-Vos as desarmonias das nossas histórias, os terríveis efeitos da colonização, a dor indelével de tantas famílias, avós e crianças. Senhor, ajudai-nos a curar as nossas feridas. Sabemos que isto exige empenho, cuidado e factos concretos da nossa parte; mas sabemos também, Senhor, que sozinhos não o conseguimos fazer. Entregamo-nos a Vós e à intercessão da vossa Mãe e da vossa avó.

Sim, Senhor, confiamo-nos à intercessão da vossa Mãe e da vossa avó, porque as mães e as avós ajudam a sarar as feridas do coração. Durante os dramas da conquista, foi Nossa Senhora de Guadalupe que transmitiu a reta fé aos indígenas, falando a sua língua, vestindo os seus trajes, sem violências nem imposições. E pouco depois, com a chegada da imprensa, foram publicadas as primeiras gramáticas e os primeiros catecismos nas línguas indígenas. Quanto bem fizeram os missionários, autenticamente evangelizadores, nesta linha a fim de preservar as línguas e culturas autóctones em tantas partes do mundo! No Canadá, esta «inculturação materna» deu-se por obra de Santa Ana, unindo a beleza das tradições indígenas e a da fé e plasmando-as com a sabedoria duma avó, que é mãe duas vezes. Também a Igreja é mulher, também a Igreja é mãe. De facto, nunca houve um momento na sua história em que a fé não fosse transmitida em língua materna pelas mães e pelas avós. Aliás, parte da dolorosa herança que estamos a enfrentar nasce do facto de se ter impedido às avós indígenas de transmitirem a fé na sua língua e na sua cultura. Sem dúvida, esta perda é uma tragédia, mas a vossa presença aqui é um testemunho de resiliência e de recomeço, de peregrinação rumo à cura, de abertura do coração a Deus que sara o nosso sermos comunidade. Ora todos nós, como Igreja, precisamos de cura: precisamos de ser curados da tentação de nos fecharmos em nós mesmos, de escolhermos a defesa da instituição em vez da busca da verdade, de preferirmos o poder mundano ao serviço evangélico. Queridos irmãos e irmãs, ajudemo-nos a fim de dar a nossa contribuição para construir com a ajuda de Deus uma Igreja mãe como Ele gosta: uma Igreja capaz de abraçar cada filho e filha; aberta a todos e que fale a cada um e a cada uma; que não vai contra ninguém, mas que vai ao encontro de quem quer que seja.

As multidões do lago da Galileia que se aglomeravam à volta de Jesus eram compostas principalmente por gente comum, gente simples, que Lhe apresentava as próprias necessidades e feridas. De forma idêntica, se quisermos cuidar e sanar a vida das nossas comunidades, não podemos começar senão pelos pobres, pelos mais marginalizados. Demasiadas vezes deixamo-nos guiar pelos interesses de alguns que estão bem; é preciso olhar mais para as periferias e pôr-se à escuta do clamor dos últimos; é necessário saber escutar a dor de quantos, muitas vezes em silêncio, gritam nas nossas cidades sobrelotadas e despersonalizadas: «Não nos deixeis sozinhos». É também o grito dos idosos que correm o risco de morrer sozinhos em casa ou abandonados numa instituição, ou dos doentes incómodos que, em lugar do afeto, lhes é subministrada a morte. É o grito sufocado de adolescentes, moços e moças, mais criticados do que escutados, que delegam a sua liberdade a um telemóvel, enquanto nas mesmas ruas outros dos seus coetâneos vagueiam errantes, anestesiados por qualquer diversão, à mercê de dependências que os tornam tristes e ansiosos, incapazes de acreditar em si mesmos, de amar aquilo que são e a beleza da vida que têm. Não nos deixeis sozinhos é o grito de quem quereria um mundo melhor, mas não sabe por onde começar.

Jesus, que nos cura e consola com a água viva do seu Espírito, no Evangelho desta tarde pede-nos que também de nós, do seio de quem acredita, corram «rios de água viva» (cf. Jo 7, 38). E nós... Sabemos saciar a sede dos nossos irmãos e irmãs? Enquanto continuamos a pedir consolação a Deus, sabemos dá-la também aos outros? Quantas vezes nos libertamos de tantos pesos interiores, como por exemplo, o de não nos sentirmos amados e respeitados, precisamente começando a amar de forma gratuita os outros! Nas nossas solidões e ansiedades, Jesus impele-nos a sair, impele-nos a dar, impele-nos a amar. E então pergunto-me: Que faço eu por quem tem necessidade de mim? Concretamente pelas populações indígenas, pensando nas suas histórias e nas tribulações que suportaram, que faço eu por elas? Limito-me a escutar com um pouco de curiosidade mundana, escandalizo-me com tudo o que aconteceu no passado, ou faço algo de concreto por elas? Rezo, encontro, leio, fundamento-me, deixo-me tocar pelas suas histórias? E, olhando para mim mesmo, se me encontro no sofrimento, escuto Jesus que me quer fazer sair do recinto da minha ansiedade e convida-me a recomeçar, a ir mais além, a amar? Às vezes, uma boa maneira de ajudar outra pessoa é não lhe dar imediatamente o que pede, mas acompanhá-la, convidá-la a amar, a doar-se. Pois deste modo, através do bem que puder fazer aos outros, é que descobrirá os seus rios de água viva, descobrirá o tesouro único e precioso que é.

Queridos irmãos e irmãs indígenas, vim como peregrino também para vos dizer quão preciosos sois para mim e para a Igreja. Desejo que entre vós a Igreja esteja tão unida, como estreitos e unidos estão os fios das faixas coloridas que muitos de vós usais. Que o Senhor nos ajude a avançar no processo de cura, rumo a um futuro sempre mais sadio e renovado. Creio que seja também o desejo das vossas avós e dos vossos avôs, das nossas avós e dos nossos avôs. Que os avós de Jesus, São Joaquim e Santa Ana, abençoem o nosso caminho.


27 de julho

Encontro com as autoridades civis, com os representantes das populações indígenas e com o Corpo Diplomático, na "Citadelle de Québec"

Senhora Governadora Geral,
Senhor Primeiro-Ministro,
Distintas Autoridades civis e religiosas,
Amados Representantes das populações indígenas,
Ilustres Membros do Corpo Diplomático,
Senhoras e Senhores!

Saúdo-vos cordialmente e agradeço à senhora Mary Simon e ao senhor Justin Trudeau as suas amáveis palavras. Estou feliz por me dirigir a vós, que tendes a responsabilidade de servir os habitantes deste grande país que, «de mar a mar», oferece um património natural extraordinário. Dentre as muitas belezas, penso nas imensas e espetaculares florestas de aceráceas, que tornam única e colorida a paisagem canadiana. Quero aproveitar precisamente o símbolo por excelência destas terras, a folha de acerácea, que dos brasões do Québec se espalhou rapidamente até se tornar o emblema que sobressai na bandeira do país.

Se isto aconteceu em tempos bastante recentes, as aceráceas guardam a memória de muitas gerações passadas, bem antes de os colonos chegarem ao solo canadiano. As populações nativas extraíam delas a seiva com que faziam xaropes nutrientes. Isto leva-nos a pensar na sua laboriosidade, sempre atentas a salvaguarda a terra e o meio-ambiente, fiéis a uma visão harmoniosa da criação, livro aberto que ensina o homem a amar o Criador e a viver em simbiose com os outros seres vivos. Há muito que aprender disto, a começar pela capacidade de colocar-se à escuta de Deus, das pessoas e da natureza. Temos necessidade disto sobretudo no frenesi vertiginoso do mundo de hoje, caraterizado por uma constante «rapidación», que torna difícil um desenvolvimento realmente humano, sustentável e integral (cf. Francisco, Carta enc. Laudato si’, 18), acabando por gerar uma «sociedade do cansaço e da desilusão» que sente dificuldade em reencontrar o gosto da contemplação, o sabor genuíno das relações, a mística do conjunto. Quanta necessidade temos de nos ouvir uns aos outros e dialogar, para nos afastarmos do individualismo dominante, dos juízos precipitados, da crescente agressividade, da tentação de dividir o mundo em bons e maus! As grandes folhas de acerácea, que absorvem ar poluído e restituem oxigénio, convidam a maravilhar-nos com a beleza da criação e deixar-nos atrair pelos saudáveis valores presentes nas culturas indígenas: estes servem de inspiração para todos nós e podem contribuir para sanar o hábito nocivo de explorar. Explorar a criação, as relações, o tempo, e regular a atividade humana apenas com base na utilidade e no lucro.

Todavia estes ensinamentos vitais foram violentamente combatidos no passado. Penso sobretudo nas políticas de assimilação e alforria, incluindo também o sistema escolar residencial, que prejudicou muitas famílias indígenas, minando a sua língua, cultura e visão de mundo. Naquele deplorável sistema promovido pelas autoridades governamentais da época, que separou tantas crianças das suas famílias, estiveram envolvidas várias instituições católicas locais; exprimo vergonha e pesar por isso e, juntamente com os Bispos deste país, renovo o meu pedido de perdão pelo mal cometido por tantos cristãos contra as populações indígenas. Por tudo isto peço perdão. É trágico quando crentes, como sucedeu naquele período histórico, se adequam mais às conveniências do mundo do que ao Evangelho. Se a fé cristã desempenhou um papel essencial na modelação dos ideais mais elevados do Canadá, que se caraterizam pelo desejo de construir um país melhor para todo o seu povo, é necessário – admitindo as próprias culpas – empenhar-se juntos na realização daquilo que sei que todos vós compartilhais: promover os direitos legítimos das populações nativas e favorecer processos de cura e reconciliação entre elas e os não indígenas do país. Isto reflete-se no vosso empenho por responder adequadamente aos apelos da Comissão em prol da Verdade e da Reconciliação, bem como na solicitude em reconhecer os direitos dos povos indígenas.

A Santa Sé e as comunidades católicas locais nutrem o desejo concreto de promover as culturas indígenas, com caminhos espirituais específicos e adequados, que incluam também a atenção às tradições culturais, costumes, línguas e processos educativos próprios, no espírito da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. É nosso desejo renovar a relação entre a Igreja e as populações indígenas do Canadá, uma relação marcada quer por um amor que deu excelentes frutos, quer – infelizmente – por feridas que nos estamos esforçando por compreender e sanar. Estou muito grato por ter encontrado e ouvido vários representantes das populações indígenas nos meses passados em Roma, e poder reforçar aqui, no Canadá, as boas relações estabelecidas com eles. Os momentos que vivemos juntos deixaram marcas em mim, nomeadamente o firme desejo de dar seguimento à indignação e à vergonha pelos sofrimentos suportados pelos indígenas, levando por diante um caminho fraterno e paciente com todos os canadianos segundo a verdade e a justiça, trabalhando pela cura e a reconciliação, sempre animados pela esperança.

Aquela «história de sofrimento e desprezo», originada por uma mentalidade colonizadora, «não se cura facilmente». Ao mesmo tempo alerta-nos para o facto de que «a colonização não para; embora em muitos lugares se transforme, disfarce e dissimule» (Francisco, Exort. ap. Querida Amazonia, 16). É o caso das colonizações ideológicas. Se outrora a mentalidade colonialista transcurou a vida concreta das pessoas, impondo modelos culturais pré-estabelecidos, também hoje não faltam colonizações ideológicas que afrontam a realidade da existência, sufocam o apego natural aos valores dos povos, tentando desenraizar as suas tradições, a história e os laços religiosos. Trata-se duma mentalidade que, com a presunção de ter superado «as páginas negras da história», abre espaço à cultura do cancelamento que avalia o passado com base apenas em certas categorias atuais. Assim estabelece-se uma moda cultural que uniformiza, torna tudo igual, não tolera diferenças e concentra-se apenas no momento presente, nas necessidades e direitos dos indivíduos, negligenciando muitas vezes os deveres para com os mais débeis e frágeis: pobres, migrantes, idosos, doentes, nascituros… São eles os esquecidos nas sociedades do bem-estar; são eles que, na indiferença geral, acabam descartados como folhas secas para queimar.

A ramagem frondosa e multicolorida das aceráceas lembra-nos, ao contrário, a importância do conjunto, de construir comunidades humanas não uniformizadas, mas realmente abertas e inclusivas. E como cada folha é fundamental para enriquecer a ramagem, assim também cada família, célula essencial da sociedade, há de ser valorizada, porque «o futuro da humanidade passa pela família» (S. João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio, 86). É a primeira realidade social concreta, mas está ameaçada por muitos fatores: violência doméstica, frenesi do trabalho, mentalidade individualista, carreirismo desenfreado, desemprego, solidão dos jovens, abandono dos idosos e dos enfermos... As populações indígenas têm tanto para nos ensinar sobre a guarda e a tutela da família, onde se aprende, já desde criança, a reconhecer o que está certo e o que é errado, dizer a verdade, partilhar, corrigir os erros, recomeçar, animar-se, reconciliar-se. Que o mal sofrido pelos povos indígenas, do qual agora nos envergonhamos, nos sirva hoje de alerta, para que o cuidado e os direitos da família não sejam postos de lado em nome de eventuais exigências produtivas e interesses individuais.

Voltemos à folha de acerácea. Nos tempos de guerra, os soldados usavam-nas como ligaduras e medicamentos para as feridas. Hoje, face à loucura insensata da guerra, precisamos novamente de lenir os extremismos da contraposição e curar as feridas do ódio. Uma testemunha de trágicas violências do passado disse, recentemente, que «a paz tem um seu segredo: nunca odiar ninguém. Se se quer viver, não se deve jamais odiar» («Entrevista a E. Bruck»: Avvenire, 8 de março de 2022). Não precisamos de dividir o mundo em amigos e inimigos, manter as distâncias e voltar a armar-nos até aos dentes: não serão as corridas aos armamentos e as estratégias de dissuasão que trarão paz e segurança. Não há necessidade de perguntar-se como continuar as guerras, mas como pará-las. Há necessidade de impedir que os povos voltem a ser reféns da trituração de espaventosas guerras frias que ainda se alargam. Há necessidade de políticas criativas e clarividentes, que saibam sair dos esquemas de parte para dar resposta aos desafios globais.

De facto, os grandes desafios de hoje, como a paz, as alterações climáticas, os efeitos da pandemia e as migrações internacionais têm em comum uma constante: são globais, são desafios globais, afetam a todos. E se todos eles falam da necessidade do conjunto, a política não pode ficar prisioneira dos interesses de parte. É preciso saber olhar – como ensina a sabedoria indígena – para as sete gerações futuras, e não para as conveniências imediatas, os prazos eleitorais, o apoio dos lóbis. É preciso também valorizar os desejos de fraternidade, justiça e paz das jovens gerações. De facto, tal como é necessário, para recuperar memória e sabedoria, escutar os idosos, assim também, para haver ímpeto e futuro, é preciso abraçar os sonhos dos jovens. Estes merecem um futuro melhor do que aquele que estamos a preparar-lhes, merecem ser envolvidos nas opções para a construção do hoje e do amanhã, particularmente para a salvaguarda da casa comum, para a qual são preciosos os valores e ensinamentos das populações indígenas. A propósito quero manifestar apreço pelo louvável empenho local a favor do meio-ambiente. Poder-se-ia quase dizer que os emblemas tirados da natureza, como o lírio na bandeira desta província do Québec e a folha de acerácea na do país, confirmam a vocação ecológica do Canadá.

Quando a Comissão instituída para o efeito se encontrou a avaliar os milhares de esboços recebidos para a realização da bandeira nacional, muitos dos quais enviados por pessoas comuns, ficou surpreendida por conterem quase todos precisamente a folha de acerácea. A participação em torno deste símbolo compartilhado sugere-me sublinhar uma palavra fundamental para os canadianos: multiculturalismo. Este está na base da coesão duma sociedade tão complexa como variadamente colorida são as ramagens frondosas das aceráceas. A própria folha da acerácea, com a sua multiplicidade de pontas e de lados, faz pensar numa figura poliédrica e diz que vós sois um povo capaz de incluir, de modo que aqueles que chegam podem encontrar lugar nesta unidade multiforme e oferecer-lhe a sua contribuição original (cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 236). O multiculturalismo é um desafio permanente: é acolher e abraçar os diferentes componentes presentes, respeitando ao mesmo tempo a diversidade das suas tradições e culturas, sem pensar que o processo esteja concluído duma vez por todas. Nesta linha, manifesto apreço pela generosidade em hospedar numerosos migrantes ucranianos e afegãos. É preciso trabalhar também para superar a retórica do medo a respeito dos imigrantes e dar-lhes, segundo a capacidade do país, a possibilidade concreta de se envolverem responsavelmente na sociedade. Para se conseguir isto, são indispensáveis os direitos e a democracia. Mas é preciso fazer frente à mentalidade individualista, lembrando que a convivência funda-se em pressupostos que o sistema político, sozinho, não pode gerar. Nisto é de grande ajuda a cultura indígena, ao recordar a importância dos valores da sociabilidade. E também a Igreja Católica, com a sua dimensão universal e a sua solicitude pelos mais frágeis, com o legítimo serviço em favor da vida humana em cada uma das suas fases, desde a conceção até à morte natural, é feliz por oferecer a própria contribuição.

Nestes dias, ouvi falar de numerosas pessoas necessitadas que batem à porta das paróquias. Mesmo num país tão desenvolvido e avançado como o Canadá, que presta muita atenção à assistência social, não são poucos os sem-abrigo que dependem das igrejas e dos bancos alimentares para receber ajudas e agasalhos essenciais, que – nunca o esqueçamos – não são apenas materiais. Estes irmãos e irmãs levam-nos a considerar a urgência de trabalharmos para pôr remédio à radical injustiça que polui o nosso mundo, pelo que a abundância dos dons da criação está repartida de forma muito desigual. É escandaloso que o bem-estar gerado pelo progresso económico não beneficie todos os setores da sociedade. E é triste ver que se registam, precisamente entre os nativos, muitos dos índices de pobreza, a que se vêm juntar outros indicadores negativos, como a baixa frequência escolar, o acesso não fácil à casa e à assistência sanitária. Que o emblema da folha de acerácea, que costuma aparecer nos rótulos dos produtos do país, seja um estímulo para todos realizarem escolhas económicas e sociais tendentes à partilha e ao cuidado dos necessitados.

Trabalhando juntos, de comum acordo, é que se enfrentam os prementes desafios de hoje. Agradeço-vos a hospitalidade, a solicitude e a estima, dizendo-vos com sincero afeto que tenho verdadeiramente no coração o Canadá e o seu povo.


28 de julho

Santa Missa no Santuário Nacional de Santa Ana de Beaupré

A viagem dos discípulos de Emaús, que encontramos na conclusão do Evangelho de São Lucas, é uma imagem do nosso caminho pessoal e da Igreja. Na estrada da vida, e vida de fé, ao levarmos por diante os sonhos, os projetos, os anseios e as esperanças que habitam no nosso coração, embatemos também nas nossas fragilidades e fraquezas, experimentamos derrotas e deceções e, às vezes, ficamos prisioneiros de uma sensação de fracasso que nos paralisa. O Evangelho anuncia-nos que, mesmo em tais momentos, não estamos sozinhos: o Senhor vem ao nosso encontro, coloca-Se ao nosso lado, caminha pela nossa própria estrada com a discrição dum amável viandante que deseja reabrir os olhos e inflamar de novo o nosso coração. E quando o fracasso deixa espaço ao encontro com o Senhor, a vida reabre-se à esperança e podemos reconciliar-nos connosco, com os irmãos e com Deus.

Sigamos então o itinerário deste caminho que poderíamos intitular do fracasso à esperança.

Primeiro, há a sensação de fracasso, que habita o coração destes dois discípulos depois da morte de Jesus. Tinham abraçado um sonho com entusiasmo. Em Jesus, tinham depositado todas as suas esperanças e desejos. Agora, depois da escandalosa morte na cruz, viram costas a Jerusalém para voltar a casa, à vida anterior. A deles é uma viagem de regresso, como se quisessem esquecer aquela experiência que encheu de amargura os seus corações, aquele Messias condenado à morte na cruz como um malfeitor. Voltam a casa abatidos, «com o rosto triste» (Lc 24, 17): as expetativas que cultivavam deram em nada, as esperanças em que acreditavam desfizeram-se em pedaços, os sonhos que teriam querido realizar cedem o lugar à desilusão e à amargura.

Trata-se duma experiência que tem a ver também com a nossa vida e o próprio caminho espiritual, em todas as ocasiões em que somos obrigados a redimensionar os nossos anseios e a lidar com as ambiguidades da realidade, com as obscuridades da vida, com as nossas fraquezas. Acontece-nos sempre que os nossos ideais se deparam com as deceções da existência e os nossos propósitos são menosprezados por causa das nossas fragilidades; quando cultivamos projetos de bem, mas depois não temos a capacidade de os realizar (cf. Rm 7, 18); quando mais cedo ou mais tarde, nas atividades que realizamos ou nas nossas relações, experimentamos alguma derrota, algum erro, um fracasso, uma queda, vendo desabar aquilo em que tínhamos acreditado ou nos tínhamos empenhado e sentindo-nos ao mesmo tempo esmagados pelo nosso pecado e os sentimentos de culpa.

É isto que acontece a Adão e Eva, como escutámos na primeira Leitura. O seu pecado não só os afastou de Deus, mas tornou-os distantes entre si: conseguem apenas acusar-se um ao outro. E vemo-lo também nos discípulos de Emaús, cuja contrariedade por terem visto desabar o projeto de Jesus deixa espaço apenas a uma estéril discussão. E o mesmo pode verificar-se também na vida da Igreja, a comunidade dos discípulos do Senhor representados naqueles dois de Emaús. Apesar de ser a comunidade do Ressuscitado, pode encontrar-se a vagar perdida e desiludida perante o escândalo do mal e a violência do Calvário. Então nada mais consegue fazer senão apertar nas mãos a sensação de fracasso e interrogar-se: Que aconteceu? Porque é que aconteceu? Como pôde acontecer?

Irmãos e irmãs, são as perguntas que cada um põe a si mesmo; e são também os interrogativos ardentes que esta Igreja peregrina no Canadá faz ressoar no seu coração num árduo caminho de cura e reconciliação. Também nós, perante o escândalo do mal e o Corpo de Cristo ferido na carne dos nossos irmãos indígenas, caímos na amargura e sentimos o peso do fracasso. Permiti então que me una espiritualmente a tantos peregrinos que percorrem aqui a «Escada Santa», que evoca a escada subida por Jesus até ao Pretório de Pilatos, e vos acompanhe como Igreja nestas interrogações que brotam dum coração cheio de pesar: Porque é que aconteceu tudo isto? Como pôde isto acontecer na comunidade daqueles que seguem Jesus?

Aqui, porém, devemos ter cuidado com a tentação da fuga, presente nos dois discípulos do Evangelho: fugir, percorrer em sentido inverso o caminho, escapar do lugar onde sucederam os factos, tentar removê-los, procurar um «lugar tranquilo» como Emaús para esquecê-los. Não há nada pior, perante os fracassos da vida, do que fugir para não os enfrentar. É uma tentação do inimigo, que ameaça o nosso caminho espiritual e o caminho da Igreja: ele quer fazer-nos acreditar que aquele fracasso já seja definitivo, quer paralisar-nos na amargura e na tristeza, convencer-nos de que não há mais nada a fazer e, consequentemente, não vale a pena encontrar uma estrada para recomeçar.

O Evangelho, ao contrário, revela-nos que precisamente nas situações de deceção e tristeza, precisamente quando, atónitos, experimentamos a violência do mal e a vergonha da culpa, quando o rio da nossa vida seca no pecado e no fracasso, quando, despojados de tudo, nos parece não ter mais nada, precisamente então é que o Senhor vem ao nosso encontro e caminha connosco. No caminho de Emaús, coloca-Se discretamente ao lado deles para acompanhar e partilhar os passos resignados daqueles discípulos tristes. E que faz? Não oferece palavras genéricas de encorajamento, expressões de circunstância ou consolações fáceis, mas, desvendando nas Sagradas Escrituras o mistério de sua morte e ressurreição, ilumina a sua história e os acontecimentos que viveram. Assim abre os olhos deles para uma nova visão das coisas. Também nós, que partilhamos a Eucaristia nesta Basílica, podemos reler muitos acontecimentos da história. Neste mesmo terreno, já houve anteriormente três templos; e houveram aqueles que não fugiram diante das dificuldades, voltaram a sonhar apesar dos erros próprios e alheios; não se deixaram vencer pelo incêndio devastador de há cem anos e edificaram, com coragem e criatividade, este templo. E quantos partilham aqui a Eucaristia, vindos das vizinhas Planuras de Abraão, podem também aperceber-se do ânimo daqueles que não se deixaram cair reféns do ódio da guerra, da destruição e do sofrimento, mas souberam voltar a planear uma cidade e um país.

Por fim, diante dos discípulos de Emaús, Jesus parte o pão, reabrindo os seus olhos e mostrando-Se mais uma vez como o Deus do amor que oferece a vida pelos seus amigos. Deste modo, ajuda-os a retomar o caminho com alegria, recomeçar, passar do fracasso à esperança. Irmãos e irmãs, o Senhor quer fazer o mesmo com cada um de nós e com a sua Igreja. E como podem ser reabertos os nossos olhos, como pode ainda o coração inflamar-se em nós pelo Evangelho? Que havemos de fazer enquanto nos vemos atribulados por várias provações espirituais e materiais, enquanto procuramos a estrada para uma sociedade mais justa e fraterna, enquanto desejamos recuperar das nossas deceções e fadigas, enquanto esperamos sarar das feridas do passado e reconciliar-nos com Deus e entre nós?

Só há uma estrada, um único caminho: é o caminho de Jesus, é o caminho que é Jesus (cf. Jo 14, 6). Acreditemos que Jesus Se vem juntar ao nosso caminho, deixemo-nos encontrar por Ele; deixemos que seja a sua Palavra a interpretar a história que vivemos como indivíduos e como comunidades, e a indicar-nos o caminho para nos curarmos e reconciliarmos; com fé, partamos juntos o Pão Eucarístico para que, ao redor desta Mesa, possamos redescobrir-nos filhos amados do Pai, chamados a ser todos irmãos. Quando parte o pão, Jesus confirma aquilo que os discípulos já tinham recebido como testemunho das mulheres e em que não quiseram acreditar: que Ele ressuscitou! Nesta Basílica, onde recordamos a mãe da Virgem Maria, e onde se encontra também a cripta dedicada à Imaculada Conceição, não podemos senão pôr em evidência o papel que Deus quis dar à mulher no seu plano de salvação. Santa Ana, a Santíssima Virgem Maria, as mulheres da manhã de Páscoa apontam-nos um novo caminho de reconciliação: a ternura materna de tantas mulheres pode acompanhar-nos – como Igreja – rumo a tempos novamente fecundos, nos quais deixemos para trás tanta esterilidade e tanta morte, e no centro colocar de novo Jesus, o Crucificado Ressuscitado.

De facto, no centro das nossas interrogações, das fadigas que acumulamos, da própria vida pastoral, não podemos colocar-nos a nós mesmos e ao nosso fracasso; devemos colocar a Ele, o Senhor Jesus. No coração de cada coisa, coloquemos a sua Palavra, que ilumina os acontecimentos e reabre-nos os olhos para ver a presença operante do amor de Deus e a possibilidade de bem mesmo em situações aparentemente perdidas; coloquemos o Pão da Eucaristia, que Jesus ainda hoje parte para nós, para partilhar a sua vida com a nossa, abraçar as nossas fragilidades, sustentar os nossos passos cansados e conceder-nos a cura do coração. E, reconciliados com Deus, com os outros e connosco, podemos também nós tornar-nos instrumentos de reconciliação e de paz na sociedade em que vivemos.

Senhor Jesus, nosso caminho, nossa força e consolação, a Vós nos dirigimos como os discípulos de Emaús: «Ficai connosco, Senhor, pois a noite já vai caindo» (Lc 24, 29). Ficai connosco, Senhor, quando a esperança conhece o ocaso e desce, escura, a noite da deceção. Ficai connosco, porque convosco, Jesus, muda o rumo do caminho e, dos becos sem saída da desconfiança, renasce a maravilha da alegria. Ficai connosco, Senhor, porque convosco a noite da tristeza transforma-se em manhã radiosa da vida. Limitemo-nos a dizer: Ficai connosco, Senhor, porque, se Vós caminhais ao nosso lado, o fracasso abre-se à esperança duma nova vida. Amen.


28 de julho

Vésperas com os bispos, os sacerdotes, os diáconos, os consagrados, os seminaristas e os agentes da Pastoral, na Catedral Notre-Dame do Quebec

Amados irmãos Bispos, caros sacerdotes e diáconos, consagrados, consagradas e seminaristas, agentes pastorais, boa tarde!

Agradeço a D. Raymond Poisson as palavras de boas-vindas que me dirigiu e saúdo a todos vós, especialmente quantos tiveram de percorrer um longo caminho para chegar: as distâncias no vosso país são verdadeiramente grandes! Por isso, obrigado! Estou feliz por vos encontrar.

É significativo o nosso encontro nesta Basílica de Notre-Dame do Québec, catedral desta Igreja particular e sede primacial do Canadá, cujo primeiro Bispo, São Francisco de Laval, abriu o Seminário em 1633 tendo-se ocupado, durante todo o seu ministério, da formação dos presbíteros. E dos presbíteros, isto é, dos «anciãos» falou-nos a Leitura Breve que acabámos de ouvir. Assim nos exortou São Pedro: «Apascentai o rebanho de Deus que vos foi confiado, governando-o não à força, mas de boa vontade» (1 Ped 5, 2). Enquanto estamos aqui reunidos como Povo de Deus, recordemo-nos de que Jesus é o Pastor da nossa vida, que cuida de nós porque nos ama de verdade. A nós, pastores da Igreja, é pedida esta mesma generosidade no pastoreio do rebanho, para que se possa manifestar a solicitude de Jesus por todos e a sua compaixão pelas feridas de cada um.

E precisamente porque somos sinal de Cristo, o apóstolo Pedro exorta-nos: Apascentai o rebanho, guiai-o, não deixeis que se extravie enquanto vos ocupais dos próprios afazeres. Cuidai dele com dedicação e ternura. E – acrescenta – fazei-o «de boa vontade», e não à força: não como um dever, não como assalariados religiosos ou funcionários do sagrado, mas com coração de pastores, com entusiasmo. Se olharmos mais para Ele, o Bom Pastor, do que para nós mesmos, descobrimos que somos guardados com ternura, sentimos a proximidade de Deus. Daqui nasce a alegria do ministério e, ainda antes, a alegria da fé: não de ver aquilo que somos capazes de fazer, mas de saber que Deus está próximo, que nos amou primeiro e nos acompanha todos os dias.

Esta, irmãos e irmãs, é a nossa alegria: não uma alegria fácil, como aquela que o mundo às vezes nos oferece iludindo-nos com fogos de artifício; esta alegria não está ligada a riquezas nem seguranças; nem sequer está ligada à persuasão de que tudo nos correrá sempre bem na vida, sem cruzes nem problemas. Antes, a alegria cristã está unida a uma experiência de paz, que permanece no coração mesmo quando somos atingidos por dificuldades e aflições, porque sabemos que não estamos sozinhos, mas acompanhados por um Deus que não fica indiferente à nossa sorte. Como quando o mar está agitado: à superfície é tempestuoso, mas em profundidade permanece calmo e tranquilo. Assim é a alegria cristã: um dom gratuito, a certeza de saber que somos amados, sustentados e abraçados por Cristo em cada situação da vida. Porque é Ele que nos liberta do egoísmo e do pecado, da tristeza da solidão, do vazio interior e do medo, dando-nos um olhar novo sobre a vida, um olhar novo sobre a história: «Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 1).

Então podemos interrogar-nos: Como vai a nossa alegria? Como vai a minha alegria? A nossa Igreja expressa a alegria do Evangelho? Nas nossas comunidades, existe uma fé que atrai pela alegria que comunica?

Se quisermos abordar estas questões na sua raiz, não podemos deixar de refletir sobre o que, na realidade do nosso tempo, ameaça a alegria da fé com o risco de a obscurecer, pondo seriamente em crise a experiência cristã. Pensa-se imediatamente na secularização, que já há muito transformou o estilo de vida das mulheres e homens de hoje, deixando Deus quase no último lugar. Parece que Ele desapareceu do horizonte, que a sua Palavra já não se assemelha a uma bússola de orientação para a vida, para as opções fundamentais, para as relações humanas e sociais. Desde já, porém, há que fazer um esclarecimento: quando observamos a cultura em que estamos imersos, as suas linguagens e os seus símbolos, é preciso estarmos atentos para não ficar prisioneiros do pessimismo e do ressentimento, deixando-nos cair em juízos negativos ou em inúteis nostalgias. Com efeito são possíveis dois olhares a respeito do mundo em que vivemos: um, chamá-lo-ia «olhar negativo»; o outro, «olhar que discerne».

O primeiro, o olhar negativo, nasce com frequência duma fé que, sentindo-se atacada, considera-se como uma espécie de «armadura» para se defender do mundo. Com amargura, acusa a realidade dizendo: «O mundo é mau, reina o pecado», e assim corre o risco de se revestir dum «espírito de cruzada». Tenhamos cuidado com isto, porque não é cristão; efetivamente não é o modo como atua Deus, o Qual – assim no-lo recorda o Evangelho – «tanto amou o mundo, que lhe entregou o seu Filho unigénito, a fim de que todo o que n’Ele crê não se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3, 16). O Senhor, que detesta o mundanismo e tem um olhar bom sobre o mundo. Abençoa a nossa vida, bendiz-nos a nós e à nossa realidade, encarna-Se nas situações da história, não para condenar, mas para fazer germinar a semente do Reino precisamente onde parecem triunfar as trevas. Se, pelo contrário, nos detivermos num olhar negativo, acabaremos por negar a encarnação, porque fugiremos da realidade, em vez de nos encarnarmos nela. Fechar-nos-emos em nós mesmos, choraremos as nossas perdas, lamentar-nos-emos continuamente e cairemos na tristeza e no pessimismo: tristeza e pessimismo que nunca vêm de Deus. Em vez disso, somos chamados a ter um olhar semelhante ao de Deus, que sabe distinguir o bem e é obstinado a procurá-lo, vê-lo e alimentá-lo. Não é um olhar ingénuo, mas um olhar que discerne a realidade.

Para afinar o nosso discernimento sobre o mundo secularizado, deixemo-nos inspirar pelo que escreveu São Paulo VI na Evangelii nuntiandi, Exortação apostólica ainda hoje plenamente atual: para ele, a secularização é «o esforço, em si mesmo justo e legítimo e não absolutamente incompatível com a fé ou com a religião» (Exort. ap. Evangelii nuntiandi, 55), por descobrir as leis da realidade e da própria vida humana estabelecidas pelo Criador. De facto, Deus não nos quer escravos, mas filhos, não quer decidir no nosso lugar, nem oprimir-nos com um poder sacro num mundo governado por leis religiosas. Não! Ele criou-nos livres e pede-nos para sermos pessoas adultas, pessoas responsáveis na vida e na sociedade. Coisa diversa – distinguia São Paulo VI – é o secularismo, uma conceção de vida que separa completamente do vínculo com o Criador, de tal modo que Deus Se torna «supérfluo e embaraçante» e se geram «novas formas de ateísmo», subdolosas e as mais variadas: «uma civilização do consumo, o hedonismo erigido em valor supremo, uma ambição de poder e predomínio, discriminações de todo o género» (Ibidem). Compete-nos a nós, como Igreja e sobretudo como pastores do Povo de Deus, como pastores, como consagradas e consagrados, como seminaristas e como agentes pastorais, saber fazer estas distinções, discernir. Se cedermos ao olhar negativo e julgarmos de forma superficial, arriscamo-nos a fazer passar uma mensagem errada, como se, por trás da crítica da secularização, houvesse da nossa parte a nostalgia dum mundo sacralizado, duma sociedade doutros tempos onde a Igreja e os seus ministros tinham mais poder e relevância social. E esta é uma perspetiva errada.

Ao contrário, como observa um grande estudioso destes temas, o problema da secularização, para nós cristãos, não deve ser o da menor relevância social da Igreja ou da perda de riquezas materiais e privilégios; antes, aquela pede-nos para refletir sobre as mudanças da sociedade, que influíram sobre o modo como as pessoas pensam e organizam a vida. Se nos debruçarmos sobre este aspeto, damo-nos conta de não ser a fé que está em crise, mas certas formas e modos com que a anunciamos. Por isso a secularização é um desafio para a nossa imaginação pastoral, é «a ocasião para a recomposição da vida espiritual em novas formas e para novas maneiras de existir» (C. Taylor, A Secular Age, Cambridge 2007, 437). Assim, o olhar que discerne, ao mesmo tempo que nos mostra as dificuldades que temos na transmissão da alegria da fé, estimula-nos a encontrar uma nova paixão pela evangelização, procurar novas linguagens, mudar algumas prioridades pastorais, ir ao essencial.

Queridos irmãos e irmãs, há necessidade de anunciar o Evangelho, para dar aos homens e mulheres de hoje a alegria da fé. Mas este anúncio não se realiza primariamente por palavras, mas através dum testemunho transbordante de amor gratuito, como Deus faz connosco. É um anúncio que pede para se encarnar num estilo de vida pessoal e eclesial que possa fazer reacender o desejo do Senhor, infundir esperança, transmitir confiança e credibilidade. A propósito disto permiti que vos proponha, com espírito fraterno, três desafios, que podereis desenvolver na oração e no serviço pastoral.

O primeiro desafio: fazer Jesus conhecido. Nos desertos espirituais do nosso tempo, gerados pelo secularismo e pela indiferença, é necessário voltar ao primeiro anúncio. Repito: é necessário voltar ao primeiro anúncio. Não podemos presumir de comunicar a alegria da fé apresentando aspetos secundários a quem ainda não abraçou o Senhor na vida, ou então só repetindo algumas práticas ou copiando formas pastorais do passado. É preciso encontrar novos caminhos para anunciar o coração do Evangelho a quantos ainda não encontraram Cristo. Isto pressupõe uma criatividade pastoral para chegar até às pessoas onde elas vivem, não esperando que sejam elas a vir até nós – lá onde vivem! – encontrando ocasiões de escuta, diálogo e encontro. Precisamos de voltar ao essencial, precisamos de voltar ao entusiasmo dos Atos dos Apóstolos, à beleza de nos sentirmos instrumentos da fecundidade do Espírito hoje. Precisamos de voltar à Galileia. É o encontro com Jesus Ressuscitado: voltar à Galileia para – permiti a expressão – recomeçar depois do fracasso. Voltar à Galileia. E cada um de nós tem a sua própria “Galileia”, aquela do primeiro anúncio. Precisamos de recuperar esta memória.

Mas, para anunciar o Evangelho, é preciso também sermos credíveis. E aqui está o segundo desafio: o testemunho. Anuncia-se o Evangelho de modo eficaz quando é a vida que fala, que revela aquela liberdade que faz livres os outros, aquela compaixão que nada pede em troca, aquela misericórdia que fala de Cristo sem palavras. A Igreja no Canadá começou um percurso novo depois de ter sido ferida e transtornada pelo mal perpetrado por alguns dos seus filhos. Penso em particular nos abusos sexuais cometidos contra menores e pessoas vulneráveis, escândalos que exigem ações fortes e uma luta irreversível. Quero, juntamente convosco, voltar a pedir perdão a todas as vítimas. O pesar e a vergonha que sentimos devem tornar-se ocasião de conversão: que nunca mais aconteçam! E, pensando no caminho de cura e reconciliação com os irmãos e irmãs indígenas, que nunca mais a comunidade cristã se deixe contaminar pela ideia da superioridade duma cultura sobre as outras e da legitimidade de usar meios de coação em relação aos outros. Recuperemos o ardor missionário do vosso primeiro Bispo, São Francisco de Laval, que arremeteu contra todos aqueles que degradavam os nativos, induzindo-os a consumir bebidas para os trufarem. Não permitamos que nenhuma ideologia aliene e confunda os estilos e as formas de vida dos nossos povos procurando demovê-los e dominá-los. Que os novos progressos da humanidade sejam assimiláveis nas suas identidades culturais com as chaves da cultura.

Mas, para derrotar esta cultura da exclusão, é preciso começarmos por nós: que os pastores não se sintam superiores aos irmãos e irmãs do Povo de Deus; que os consagrados vivam a fraternidade e a liberdade na obediência em comunidade; que os seminaristas estejam dispostos a ser servidores dóceis e disponíveis e que os agentes pastorais não vejam o seu serviço como poder. Começa-se daqui. Vós sois os protagonistas e os construtores duma Igreja diferente: humilde, mansa, misericordiosa, uma Igreja que acompanha os processos, que trabalha decidida e serenamente na inculturação, que valoriza cada um e cada diversidade cultural e religiosa. Demos este testemunho!

Finalmente, o terceiro desafio: a fraternidade. Primeiro, fazer Jesus conhecido; segundo, testemunho; terceiro, fraternidade. A Igreja será testemunha tanto mais credível do Evangelho quanto mais os seus membros viverem a comunhão, criando ocasiões e espaços para que toda a pessoa que se aproxima da fé encontre uma comunidade acolhedora, que saiba ouvir, que saiba entrar em diálogo, que promova uma boa qualidade nas relações. Assim dizia o vosso santo Bispo aos missionários: «Muitas vezes uma palavra amarga, uma impaciência, um rosto que repele destruirão num momento aquilo que foi construído durante muito tempo» (Instruções aos Missionários, 1668).

Trata-se de viver numa comunidade cristã que se torne escola de humanidade, onde se aprende a querer-se bem como irmãos e irmãs, dispostos a trabalhar, juntos, pelo bem comum. De facto, no coração do anúncio evangélico, está o amor de Deus, que transforma e torna capaz de comunhão com todos e de serviço a todos. Um teólogo desta terra escreveu: «O amor que Deus nos dá transborda em amor (...). É um amor que impele o bom samaritano a parar e cuidar do viajante assaltado pelos ladrões. É um amor que não tem fronteiras, que busca o reino de Deus (...) e este reino é universal» (B. Lonergan, «The Future of Christianity»: A Second Collection: Papers by Bernard F. J. Lonergan SJ, London 1974, 154). A Igreja é chamada a encarnar este amor sem fronteiras, para construir o sonho que Deus tem para a humanidade: serem todos irmãos. Interroguemo-nos: Como está a fraternidade entre nós? Os Bispos entre si e com os padres, os padres entre si e com o Povo de Deus: somos irmãos ou concorrentes divididos em fações? E como são as nossas relações com quem não é «dos nossos», com quem não crê, com quem possui tradições e usos diferentes? Este é o caminho: promover relações de fraternidade com todos, com os irmãos e irmãs indígenas, com cada irmã e irmão que encontramos, porque, no rosto de cada um, reflete-se a presença de Deus.

Queridos irmãos e irmãs, estes são apenas alguns desafios. Não nos esqueçamos de que só podemos levá-los por diante com a força do Espírito, que sempre devemos invocar na oração. Não deixemos, porém, entrar em nós o espírito do secularismo, pensando que podemos criar projetos que funcionam sozinhos e com as simples forças humanas, sem Deus. Isso é uma idolatria: a idolatria dos projetos sem Deus. E – uma recomendação ainda – não nos fechemos no «retrogradismo», mas avancemos, com alegria!

Ponhamos em prática estas palavras que dirigimos a São Francisco de Laval:

Fostes o homem da partilha, visitando os doentes,
vestindo os pobres, lutando pela dignidade das populações originárias,
apoiando os missionários cansados,
sempre pronto a estender a mão a quem estava pior do que vós.
Quantas vezes os vossos projetos foram derrubados!
Uma vez e outra voltastes a pô-los de pé.
Compreendestes que a obra de Deus não é de pedra,
e que, nesta terra de desânimo,
havia necessidade dum construtor de esperança.

Agradeço-vos tudo o que fazeis e de coração vos abençoo. E por favor, continuai a rezar por mim.


29 de julho

Viagem Apostólica ao Canadá: Encontro com uma delegação de indígenas presentes em Québec

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!

Saúdo-vos cordialmente e agradeço por vos terdes deslocado até aqui, vindos de vários lugares. A vastidão desta terra faz pensar na imensidade do caminho de cura e reconciliação, que estamos a percorrer juntos. De facto, a frase que nos acompanha desde março, desde quando me foram visitar a Roma os delegados indígenas, e que carateriza os momentos da minha visita aqui é Caminhar Juntos: Walking Together / Marcher Ensemble.

Vim ao Canadá como amigo para vos encontrar, para ver, ouvir, aprender, apreciar como vivem as populações indígenas deste país. Não vim como turista, vim como irmão, para descobrir pessoalmente os frutos bons e maus produzidos pelos membros da família católica local, no decurso dos anos. Vim com espírito penitencial, para vos manifestar o pesar que sentimos no coração, enquanto Igreja, pelo mal que não poucos católicos vos causaram apoiando políticas opressivas e injustas aplicadas a vós. Vim como peregrino, com as minhas limitadas possibilidades físicas, para propiciar mais passos em frente convosco e a vosso favor: para que se prossiga na busca da verdade, para que se progrida na promoção de percursos de cura e reconciliação, para que se continue para diante semeando esperança para as futuras gerações de indígenas e não indígenas que desejam viver juntos, fraternalmente, em harmonia.

Mas, já próximo da conclusão desta intensa peregrinação, quero dizer-vos que, se já vinha animado por estes desejos, volto para casa muito mais enriquecido, porque levo no coração o tesouro incomparável feito de pessoas e populações que me marcaram; tesouro de rostos, sorrisos e palavras que permanecem no meu íntimo; de histórias e lugares que não poderei esquecer; de sons, cores e emoções que vibram intensamente dentro de mim. Verdadeiramente posso afirmar que, enquanto vos visitava, as vossas realidades, as realidades indígenas desta terra, visitaram o meu íntimo: entraram em mim e sempre me acompanharão. Ouso dizer – se mo permitis – que de certo modo, agora, também eu me sinto parte da vossa família e disso me sinto honrado. A recordação da festa de Santa Ana, vivida juntamente com diferentes gerações e tantas famílias indígenas, permanecerá indelével no meu coração. Num mundo que muitas vezes, infelizmente, é individualista, quão precioso é este sentido de família e comunidade tão genuíno entre vós! E como é importante cultivar bem o vínculo entre os jovens e os idosos, e manter uma relação sadia e harmoniosa com toda a criação!

Queridos amigos, desejo confiar ao Senhor tudo o que vivemos nestes dias e a prossecução do caminho que nos espera; o que entrego também à cuidadosa solicitude de quem sabe guardar o que conta na vida: penso nas mulheres, particularmente em três delas. Primeiro, em Santa Ana, cuja ternura e proteção pude sentir ao venerá-la juntamente com um povo de Deus que reconhece e honra as avós. Segundo, penso na Santa Mãe de Deus: nenhuma criatura merece mais do que Ela ser definida peregrina, porque sempre – também hoje, mesmo agora – está a caminho: a caminho entre Céu e terra, para cuidar de nós por conta de Deus e para nos conduzir pela mão ao seu Filho. Finalmente, com frequência nestes dias, a minha oração e o meu pensamento detiveram-se numa terceira mulher que nos acompanhou com a sua suave presença e cujos restos mortais se conservam não muito longe daqui: refiro-me a Santa Catarina Tekakwitha. Veneramo-la pela sua vida santa, mas não poderemos pensar que a sua santidade de vida, caraterizada por uma dedicação exemplar à oração e ao trabalho, bem como pela capacidade de suportar com paciência e mansidão tantas provações, tenha sido possível também por certos traços nobres e virtuosos herdados da sua comunidade e do ambiente indígena onde cresceu?

Estas mulheres podem ajudar a compor, voltar a tecer uma reconciliação que garanta os direitos dos mais vulneráveis e saiba olhar a história sem rancores nem cancelamentos. Duas delas, a Santíssima Virgem Maria e Santa Catarina, receberam de Deus um projeto de vida e, sem interpelar homem algum, disseram «sim» com coragem. Estas mulheres teriam podido responder mal a todos aqueles que se opunham àquele projeto, ou então permanecer submissas às normas patriarcais de então e resignar-se, sem lutar pelos sonhos que o próprio Deus imprimira nas suas almas. Não seguiram esta opção, mas abriram o caminho com mansidão e firmeza, com palavras proféticas e gestos decisivos, e cumpriram aquilo para que foram chamadas. Que Elas abençoem o nosso caminho comum, intercedam por nós, por esta grande obra de cura e reconciliação tão agradável a Deus. De coração vos abençoo. E peço-vos, por favor, que continueis a rezar por mim.


29 de julho

Encontro com os jovens e os idosos na praça da escola de ensino fundamental, em Iqaluit

Queridos irmãos e irmãs, boa tarde!

Saúdo cordialmente a Senhora Governadora Geral e todos vós, feliz por vos encontrar. Agradeço as vossas palavras e também as canções, danças e músicas de que muito gostei!

Há pouco, escutei vários de vós, ex-alunos das escolas residenciais: obrigado pelo que tiveram a coragem de dizer, contando grandes sofrimentos, que eu não teria imaginado. Isso despertou em mim a indignação e a vergonha que, há meses, me acompanham. Também hoje e aqui quero dizer-vos o grande pesar que sinto; e desejo pedir perdão pelo mal cometido nas escolas por não poucos católicos que contribuíram para as políticas de assimilação cultural e de alforria. Mamianak (lamento). Veio-me ao pensamento o testemunho dum idoso em que descrevia a beleza do clima que reinava nas famílias indígenas antes da chegada do sistema das escolas residenciais. Aquela estação em que avós, pais e filhos se encontravam juntos em harmonia, comparava-a à primavera, quando os passarinhos cantam felizes ao redor da mãe. Mas de repente – dizia ele – o canto parou: as famílias foram desagregadas, os pequeninos levados para longe do seu ambiente; sobre tudo, caiu o inverno.

Tais palavras, ao mesmo tempo que geram tristeza, provocam também escândalo; e mais ainda quando as confrontamos com a Palavra de Deus, que manda: «Honra o teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias sobre a terra que o Senhor, teu Deus, te dá» (Ex 20, 12). Esta possibilidade não foi dada a muitas das vossas famílias, falhou quando os filhos foram separados dos pais e sentiram o seu país como um país perigoso e alheio. Estas assimilações forçadas evocam outra página bíblica: a história do justo Nabot (cf. 1 Re 21, 1-16); este recusara-se a ceder a vinha herdada dos seus pais a quem, governando, estava disposto a usar todos os meios para lha arrebatar. E vêm à mente também aquelas palavras fortes de Jesus contra quem escandaliza os pequeninos e despreza nem que seja um só deles (cf. Mt 18, 6.10). Quanto mal faz o romper os laços entre pais e filhos, ferir os afetos mais queridos, prejudicar e escandalizar os pequeninos!

Queridos amigos, estamos aqui com a vontade de percorrer, juntos, um itinerário de cura e reconciliação, que, com a ajuda do Criador, nos ajude a projetar luz sobre o que aconteceu e superar o passado obscuro. A propósito de derrotar a escuridão, também agora, como tínheis feito no nosso encontro do final de março, acendestes o qulliq. Este, além de dar luz durante as longas noites de inverno, permitia, com o calor que difundia, resistir ao rigor do clima, tornando-se essencial para viver. Também hoje continua a ser um símbolo muito belo de vida, dum viver luminoso que não se rende à escuridão da noite. Assim sois vós, testemunho perene da vida que não se apaga, duma luz que brilha e que ninguém conseguiu sufocar.

Sinto-me transbordar de gratidão pela oportunidade de estar aqui no Nunavut, no interior do Inuit Nunangat. Depois do nosso encontro em Roma, tentei imaginar estas imensidades que habitais desde tempos imemoriais e que, para outros, seriam hostis. Soubestes amá-las, respeitá-las, guardá-las e valorizá-las, transmitindo de geração em geração valores fundamentais, como o respeito pelos idosos, um sentido genuíno de fraternidade e o cuidado pelo meio-ambiente. Há uma bela e harmoniosa correspondência entre vós e a terra que habitais, porque também esta é forte e resiliente, e responde com tanta luz à escuridão que a envolve durante grande parte do ano. Mas mesmo esta terra, como toda a pessoa e população, é delicada, e precisa dos nossos cuidados. Cuidar, transmitir os cuidados: é a isto, em particular, que são chamados os jovens, apoiados pelo exemplo dos idosos! Cuidar da terra, cuidar das pessoas, cuidar da história.

Quero então dirigir-me a ti, jovem Inuit, futuro desta terra e presente da sua história. Desejo dizer-te, citando um grande poeta: «Aquilo que herdaste dos pais, reconquista-o se queres possuí-lo de verdade» (J. W. von Goethe, Faust, I, Nacht). Não basta viver da renda, é preciso reconquistar o que se recebeu em dom. Por isso não tenhas medo de ouvir uma vez e outra os conselhos dos mais idosos, abraçar a tua história para escreveres novas páginas, apaixonar-te, tomar posição perante os factos e as pessoas, envolver-te! E para te ajudar a fazer brilhar a lâmpada da tua existência, quero dar-te, também eu como irmão idoso, três conselhos.

O primeiro: caminha para o alto. Habitas nestas vastas regiões do Norte; que elas te recordem a tua vocação de tenderes para o alto, sem te deixares arrastar terra a terra por quem pretende fazer-te crer que é melhor pensares só em ti próprio e usares o tempo de que dispões apenas para as tuas diversões e interesses. Amigo, não estás feito para ires vivendo, para passar os dias equilibrando deveres e prazeres, estás feito para voares para o alto, rumo aos desejos mais verdadeiros e belos que abrigas no coração, rumo a Deus que deves amar e ao próximo que deves servir. Não penses que os grandes sonhos da vida sejam céus inatingíveis. Estás feito para voar, abraçar a coragem da verdade e promover a beleza da justiça, para «elevar a tua têmpera moral, ser compassivo, servir aos outros e construir relações» (cf. Inunnguiniq Iq Principles 3-4), para semear paz e solicitude onde te encontras; para acender o entusiasmo de quem vive ao teu lado; para ir mais longe, e não para nivelar por baixo tudo o que és e fazes.

Entretanto, poder-me-ias dizer: viver assim é mais árduo do que voar. Claro, não é fácil! Porque está sempre à espreita aquela «força de gravidade espiritual» que nos puxa para baixo, paralisa os desejos, esmorece a alegria. Então, pensa na andorinha do Ártico a que chamamos «charrán»: ela não deixa que os ventos contrários ou as bruscas mudanças de temperatura a impeçam de ir duma extremidade à outra da terra; às vezes escolhe rotas que não são diretas, aceita fazer desvios, adapta-se a certos ventos... mas sempre mantém clara a meta, sempre se dirige para o destino. Encontrarás pessoas que tentarão anular os teus sonhos, dir-te-ão para te contentares com pouco, lutares só pelo que te convém. Então perguntar-te-ás: Porque é que me devo esforçar por aquilo em que os outros não acreditam? E ainda: Como posso levantar voo no âmbito dum mundo que parece precipitar sempre mais em baixo por entre escândalos, guerras, enrodilhadas, falta de justiça, destruição do meio-ambiente, indiferença pelos mais frágeis, deceções vindas da parte de quem deveria dar o exemplo? Perante estas perguntas, qual é a resposta?

Quero dizer-te a ti jovem, a ti irmão e irmã jovem: tu és a resposta. Tu, irmão; tu, irmã. Não só porque, se te rendes, já perdeste à partida, mas também porque o futuro está nas tuas mãos. Estão nas tuas mãos a comunidade que te gerou, o ambiente onde vives, a esperança dos teus coetâneos, de quem – mesmo sem to pedir – espera de ti o bem original e irrepetível que podes inserir na história, porque «cada um de nós é único» (cf. Principle 5). O mundo em que vives é a riqueza que herdaste: ama-o, como te amou quem te deu a vida e as alegrias maiores, como te ama Deus, que criou para ti o que existe de belo e não cessa, nem sequer por um brevíssimo instante, de confiar em ti. Ele crê nos teus talentos. Cada vez que O procurares, compreenderás como o caminho, que te chama a percorrer, sempre tende para o alto. Senti-lo-ás quando, a rezar, fixares o céu e sobretudo quando ergueres o olhar para o Crucificado. Compreenderás que Jesus, da cruz, nunca aponta o dedo contra ti, mas abraça-te e encoraja-te, porque crê em ti, mesmo quando tu deixaste de crer em ti próprio. Então, nunca percas a esperança, luta, dá tudo por tudo, e não te arrependerás. Avança no caminho «passo a passo, rumo ao melhor» (cf. Principle 6). Orienta o navegador da tua existência para uma meta grande, para o alto!

O segundo conselho: vem à luz. Nos momentos de tristeza e desalento, pensa no qulliq: contém uma mensagem para ti. Qual? Que existes para vir à luz cada dia. Não só no dia do teu nascimento, quando não dependia de ti, mas cada dia. Diariamente és chamado a levar uma luz nova ao mundo: a dos teus olhos, do teu sorriso, do bem que tu, e só tu, podes oferecer. Ninguém o pode fazer por ti. Mas, para vir à luz, tens de lutar todos os dias com a escuridão. Sim, há uma luta diária entre luz e trevas, que acontece, não lá fora num lugar qualquer, mas dentro de cada um de nós. O caminho da luz pede opções de coração corajosas contra a escuridão das falsidades, pede para «desenvolver bons costumes para se viver bem» (cf. Principle 1), não seguir rastos luminosos que desaparecem rapidamente, fogos de artifício que deixam apenas fumaça. São «ilusões, paródias da felicidade», como disse aqui no Canadá São João Paulo II: «Sem dúvida, não existem trevas mais densas do que aquelas que se insinuam na alma dos jovens, quando os falsos profetas extinguem neles a luz da fé, da esperança e da caridade» (Homilia na Missa de encerramento da XVII Jornada Mundial da Juventude, Toronto, 28 de julho de 2002). Irmão, irmã, Jesus está perto de ti e deseja iluminar o teu coração para te fazer vir à luz. Ele disse: «Eu sou a luz do mundo» (Jo 8, 12), mas disse também aos seus discípulos: «Vós sois a luz do mundo» (Mt 5, 14). Por isso também tu és a luz do mundo e chegarás a sê-lo cada vez mais, se lutares para afastar do coração a triste escuridão do mal.

Para aprender a fazê-lo, há que assimilar uma arte contínua, que exige «superar as dificuldades e as contradições através duma busca contínua de soluções» (cf. Principle 2). É a arte de separar cada dia a luz das trevas. Para criar um mundo bom – diz a Bíblia – Deus começou precisamente assim: separando a luz das trevas (cf. Gn 1, 4). Também nós, se nos quisermos tornar melhores, devemos aprender a distinguir a luz das trevas. E por onde se começa? Podes começar interrogando-te: O que é que se me apresenta reluzente e sedutor, mas depois deixa um grande vazio dentro de mim? Isto é treva! Ao contrário, o que é que me faz bem e deixa paz no coração, embora primeiro me peça para sair de certas comodidades e dominar certos instintos? Isto é luz! E vem-me uma nova pergunta: Qual é a força que nos permite separar dentro de nós a luz das trevas, que nos faz dizer «não» às tentações do mal e «sim» às ocasiões do bem? É a liberdade. Uma liberdade que não consiste em fazer tudo o que me apraz e vem à cabeça; não é aquilo que posso fazer não obstante os outros, mas pelos outros; não é total arbítrio, mas responsabilidade. A liberdade é o dom maior que o nosso Pai celestial nos deu juntamente com a vida.

Por fim, o terceiro conselho: faz equipa. Os jovens fazem grandes coisas juntos; não, sozinhos. Porque vós, jovens, sois como as estrelas do céu, que aqui brilham maravilhosamente: a sua beleza nasce do conjunto, das constelações que compõem e que dão luz e orientação nas noites do mundo. Também vós, chamados às alturas do céu e a resplandecer na terra, sois feitos para brilhar juntos. É preciso possibilitar aos jovens que façam grupo, estejam em movimento: não podem passar os dias isolados, mantidos como reféns por um telemóvel! Os grandes glaciares destas terras fazem-me vir à mente o desporto nacional do Canadá: o hóquei no gelo. Como consegue o Canadá conquistar todas aquelas medalhas olímpicas? Como conseguem Sarah Nurse ou Marie-Philip Poulin marcar aqueles golos todos? O hóquei combina bem disciplina e criatividade, tática e força física; mas o que faz a diferença é sempre o espírito de equipa, pressuposto indispensável para enfrentar as circunstâncias imprevisíveis de jogo. Fazer equipa significa acreditar que, para se alcançar grandes objetivos, não se pode ir para diante sozinhos; é preciso mover-se em conjunto, ter a paciência de tecer densas redes de passagens. E significa também deixar espaço para os outros, sair rapidamente quando é a própria vez e apoiar os companheiros. Eis o espírito de equipa!

Amigos, caminhai para o alto, vinde à luz cada dia, fazei equipa! E fazei tudo isso na vossa cultura, na bela língua inuktut. Faço votos de que, escutando os idosos e bebendo na riqueza das vossas tradições e da vossa liberdade, possais abraçar o Evangelho guardado e transmitido pelos vossos antepassados e encontrar o rosto Inuk de Jesus Cristo. De coração vos abençoo e digo: qujannamiik! [obrigado!].

Libreria Editrice Vaticana / Rome Reports