Viagem apostólica do Papa Francisco à República Democrática do Congo e Sudão do Sul

O Papa Francisco iniciou a viagem apostólica à Republica Democrática do Congo, que recebe um Pontífice após 37 anos. Já o Sudão do Sul receberá a visita de um Papa pela primeira vez. "Uma bela viagem" para levar "uma palavra de paz", disse o diretor da Sala de Imprensa do Vaticano, Matteo Bruni.

Terça-feira, 31 de janeiro de 2023

ROMA - KINSHASA

7h55
Partida do Aeroporto Internacional de Roma/Fiumicino para Kinshasa
15h
Chegada ao Aeroporto Internacional "Ndjili" de Kinshasa
15h
Receção oficial
16h30
Cerimónia de boas-vindas no "Palais de la Nation"
16h45
Visita de cortesia ao Presidente da República na "Salle Présidentielle" do "Palais de la Nation"
17h30

Quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

KINSHASA

9h30
Santa Missa no Aeroporto "Ndolo"
16h30
18h30

Quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

KINSHASA

9h30
Encontro com os jovens e os catequistas no "Estádio dos Mártires"
16h30
18h30
Encontro privado com os Membros da Companhia de Jesus na Nunciatura Apostólica

Sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

KINSHASA - JUBA

8h30
Encontro com os Bispos na sede da CENCO
10h10
Cerimónia de despedida no Aeroporto Internacional "Ndjili" de Kinshasa
10h40

Partida do Aeroporto Internacional "Ndjili" de Kinshasa para Juba

A viagem para o Sudão do Sul será realizada na companhia do Arcebispo de Canterbury e do Moderador da Assembleia Geral da Igreja na Escócia

15h
Chegada ao Aeroporto Internacional de Juba
15h
Cerimónia de boas-vindas
15h45
Visita de cortesia ao Presidente da República no Palácio Presidencial
16h15
Encontro com os Vice-Presidentes da República
17h

Sábado, 4 de fevereiro de 2023

JUBA

9h
11h
Encontro privado com os Membros da Companhia de Jesus na Nunciatura Apostólica
16h30
18h
Oração Ecuménica junto ao Mausoléu "John Garang"

Domingo, 5 de fevereiro de 2023

JUBA - ROMA

8h45
Santa Missa no Mausoléu "John Garang"
11h
Cerimónia de despedida no Aeroporto Internacional de Juba
11h30
Partida do Aeroporto Internacional de Juba para Roma
17h30
Chegada ao Aeroporto Internacional de Roma/Fiumicino

Terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Encontro com as Autoridades, a Sociedade Civil e o Corpo Diplomático no jardim do "Palais de la Nation"

Senhor Presidente da República,
Ilustres Membros do Governo e do Corpo Diplomático,
Distintas Autoridades religiosas e civis,
Insignes Representantes da sociedade civil e do mundo da cultura,
Senhoras e Senhores!

Saúdo-vos cordialmente e agradeço ao Senhor Presidente as palavras que me dirigiu. Estou feliz por estar aqui, nesta terra tão bela, vasta e fértil, que abraça a floresta equatorial ao norte, planaltos e savanas arborizadas ao centro e para o sul, colinas, montanhas, vulcões e lagos ao leste, e a oeste grandes águas com o rio Congo que encontra o oceano. No vosso país, que é como um continente no grande continente africano, parece que toda a terra respira. Mas, se a geografia deste pulmão verde é tão rica e matizada, já a história não se mostrou igualmente generosa: atormentada pela guerra, a República Democrática do Congo continua a padecer, dentro das suas fronteiras, conflitos e migrações forçadas e a sofrer terríveis formas de exploração, indignas do homem e da criação. Este país imenso e cheio de vida, este diafragma da África, atingido pela violência como se fosse um murro no estômago, parece há muito sem fôlego. O Senhor Presidente mencionou este genocídio esquecido, que a República do Congo está a sofrer.

E enquanto vós, congoleses, lutais para salvaguardar a vossa dignidade e a vossa integridade territorial contra condenáveis tentativas de fragmentar o país, venho até junto de vós, em nome de Jesus, como um peregrino de reconciliação e de paz. Muito desejei estar aqui e, finalmente, venho trazer-vos a solidariedade, o afeto e a consolação de toda a Igreja e aprender do vosso exemplo de paciência, coragem e luta.

Quero falar-vos servindo-me duma imagem, que bem simboliza a luminosa beleza desta terra: a imagem do diamante. Queridas mulheres e homens congoleses, o vosso país é verdadeiramente um diamante da criação; mas vós, todos vós, sois infinitamente mais preciosos do que qualquer bem que brote deste solo fecundo! Estou aqui para vos abraçar e recordar que tendes um valor inestimável, que a Igreja e o Papa têm confiança em vós, acreditam no vosso futuro, num futuro que esteja nas vossas mãos e no qual mereceis poder investir os vossos dotes de inteligência, sagacidade e laboriosidade. Coragem, irmão e irmã congoleses! Levanta-te, retoma nas mãos, como um diamante puríssimo, aquilo que és, a tua dignidade, a tua vocação de guardar na harmonia e na paz a casa que habitas. Revive o espírito do teu hino nacional, sonhando e pondo em prática as suas palavras: «Através dum trabalho duro, construiremos um país mais belo do que antes; em paz».

Prezados amigos, os diamantes, habitualmente raros, aqui abundam. Se isto vale para as riquezas materiais escondidas no subsolo, com maior razão vale para as riquezas espirituais encerradas nos corações. E é precisamente a partir dos corações que a paz e o desenvolvimento continuam a ser possíveis, porque, com a ajuda de Deus, os seres humanos são capazes de justiça e perdão, de concórdia e reconciliação, de compromisso e perseverança em pôr a render os talentos recebidos. Desejo, pois, ao início da minha viagem lançar um apelo: que cada congolês se sinta chamado a fazer a sua parte! Que a violência e o ódio não tenham mais lugar no coração e nos lábios de ninguém, porque são sentimentos anti-humanos e anticristãos, que paralisam o desenvolvimento e fazem retroceder para um passado sombrio.

A propósito de desenvolvimento obstruído e retorno ao passado, é trágico que estes lugares, e o continente africano em geral, padeçam ainda de várias formas de exploração. Existe aquele lema que vem do inconsciente de muitas culturas e de muitas pessoas: «África deve ser explorada». Isto é terrível! De facto, depois da exploração política, desencadeou-se um «colonialismo económico» igualmente escravizador. Assim, largamente saqueado, este país não consegue beneficiar suficientemente dos seus recursos imensos: chegou-se ao paradoxo de os frutos da sua terra o tornarem «estrangeiro» para os próprios habitantes. O veneno da ganância tornou os seus diamantes ensanguentados. É um drama face ao qual, muitas vezes, o mundo economicamente mais desenvolvido fecha os olhos, os ouvidos e a boca. Mas este país e este continente merecem ser respeitados e ouvidos, merecem espaço e atenção: tirem as mãos da República Democrática do Congo, tirem as mãos da África! Basta com este sufocar a África: não é uma mina para explorar, nem uma terra para saquear. Que a África seja protagonista do seu destino! Que o mundo recorde os desastres perpetrados ao longo dos séculos em prejuízo das populações locais, e não esqueça este país e este continente. Que a África, sorriso e esperança do mundo, conte mais: fale-se mais sobre ela, tenha mais peso e representatividade entre as Nações!

Abra-se caminho a uma diplomacia do homem a favor do homem, dos povos a favor dos povos, onde estejam no centro, não o controle das áreas e recursos, nem as ambições de expansão e o aumento dos lucros, mas as oportunidades de crescimento das pessoas. Olhando para este povo, fica-se com a impressão de que a Comunidade Internacional se tenha quase resignado com a violência que o devora. Não podemos habituar-nos ao sangue que, há décadas, corre neste país ceifando milhões de vidas, sem que muitos o saibam. Seja conhecido tudo o que acontece aqui. Os processos de paz em curso, que encorajo com todas as forças, sejam sustentados com factos, e os compromissos sejam mantidos. Graças a Deus, não falta quem contribua para o bem da população local e para um efetivo desenvolvimento através de projetos eficazes: não meras intervenções assistenciais, mas planos tendentes a um crescimento integral. Expresso imensa gratidão aos países e às organizações que fornecem ajudas substanciais nessa linha, ajudando na luta contra a pobreza e as doenças, apoiando o estado de direito, promovendo o respeito pelos direitos humanos. Faço votos de que possam continuar a desempenhar plena e corajosamente esta nobre função.

Voltemos à imagem do diamante. Uma vez trabalhado, a sua beleza deriva também da sua forma, de numerosas faces harmoniosamente dispostas. De igual modo este país, enriquecido pelo seu típico pluralismo, possui um caráter poliédrico. É uma riqueza que deve ser salvaguardada, evitando cair no tribalismo e na contraposição. A adesão obstinada à própria etnia ou a interesses particulares, alimentando espirais de ódio e violência, reverte em detrimento de todos, já que bloqueia a necessária «química do conjunto». A propósito de química, um dado interessante é a constituição dos diamantes formada por simples átomos de carbono; mas, se estes forem diversamente interligados, formam a grafite: na prática, a diferença entre a luminosidade dum diamante e a obscuridade da grafite deve-se ao modo como os simples átomos estão dispostos no interior da molécula. Metáfora aparte; o problema não é a natureza dos homens ou dos grupos étnicos e sociais, mas o modo em que se decide estar juntos: querer ou não encontrar-se, reconciliar-se e recomeçar, marca a diferença entre a obscuridade do conflito e um luminoso futuro de paz e prosperidade.

Queridos amigos, o Pai do Céu quer que nos saibamos acolher como irmãos e irmãs duma única família e trabalhar para um futuro que seja vivido juntamente com os outros, não contra os outros. «Bintu bantu»: assim, de forma muito expressiva, um provérbio vosso recorda que a verdadeira riqueza são as pessoas e as boas relações com elas. Chamadas a contribuir para isso são de modo especial as religiões, com o seu património de sabedoria, esforçando-se diariamente por renunciar a toda a agressividade, proselitismo e coação, meios indignos da liberdade humana. Quando degeneram na imposição, lançando-se à caça de seguidores de modo indiscriminado com o engano ou a força, saqueiam a consciência alheia e viram costas ao verdadeiro Deus, porque – não o esqueçamos – «onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade» (2 Cor 3, 17) e, onde não está a liberdade, aí não está o Espírito do Senhor. No empenho por construir um futuro de paz e fraternidade, também os membros da sociedade civil – alguns deles aqui presentes – desempenham um papel essencial. Muitas vezes, à custa de grandes sacrifícios, deram provas de saber opor-se à injustiça e à degradação para defender os direitos humanos, a necessidade duma sólida educação para todos e duma vida mais digna para cada um. De coração agradeço às mulheres e aos homens, especialmente os jovens deste país, que tiveram em variada medida de sofrer por causa disso, e presto-lhes homenagem.

O diamante, na sua transparência, refrata de maneira maravilhosa a luz que recebe. Muitos de vós brilham pelo papel que desempenham. Assim, quem detém responsabilidades civis e governamentais é chamado a atuar com clareza cristalina, vivendo o encargo recebido como um meio para servir a sociedade. De facto, o poder só tem sentido se se torna serviço. Como é importante agir com este espírito, fugindo do autoritarismo, da busca do lucro fácil e da ganância do dinheiro, que o apóstolo Paulo define «raiz de todos os males» (1 Tm 6, 10); e procurando, ao mesmo tempo, promover eleições livres, transparentes, credíveis; alargar ainda mais a participação nos processos de paz às mulheres, aos jovens e a diversos grupos, aos grupos marginalizados; buscar mais o bem comum e a segurança das pessoas do que os interesses pessoais ou de grupo; reforçar a presença do Estado em todas as partes do território; cuidar das inúmeras pessoas deslocadas e refugiadas. Não se deixem manipular nem comprar por quem quer manter o país na violência para o explorar e fazer negócios vergonhosos: isto só traz descrédito e vergonha, juntamente com morte e miséria. Ao contrário, é bom aproximar-se das pessoas, para se dar conta do modo como vivem. As pessoas fiam-se quando sentem que o indivíduo que as governa se faz realmente próximo, não por cálculo nem exibicionismo, mas por serviço.

Na sociedade, muitas vezes o que obscurece a luz do bem são as trevas da injustiça e da corrupção. Já há séculos se perguntava Santo Agostinho, nascido neste continente: «Se não se respeita a justiça, que são os Estados senão grandes bandos de ladrões?» (De civitate Dei, IV, 4). Deus está da parte de quem tem fome e sede de justiça (cf. Mt 5, 6). É preciso não se cansar de promover, em cada setor, o direito e a equidade contrastando a impunidade e a manipulação das leis e da informação.

Um diamante sai da terra genuíno mas em estado bruto, carecendo de ser trabalhado. Assim, também os diamantes mais preciosos da terra congolesa, que são os filhos desta nação, devem poder usufruir de válidas oportunidades educativas, que lhes permitam fazer frutificar plenamente os brilhantes talentos que possuem. A educação é fundamental: é o caminho para o futuro, o caminho a percorrer para se alcançar a plena liberdade deste país e do continente africano. É urgente investir nela para preparar sociedades que só serão consolidadas se bem instruídas, só serão autónomas se plenamente conscientes das suas potencialidades e capazes de as desenvolver com responsabilidade e perseverança. Mas há muitas crianças que não vão à escola: quantas, em vez de receberem uma digna instrução, são exploradas! Muitas morrem, sujeitas a trabalhos escravizadores nas minas. Não se poupem esforços para denunciar o flagelo do trabalho infantil e acabar com ele. Quantas adolescentes são marginalizadas e violadas na sua dignidade! As crianças, as donzelas, os jovens que são o presente da esperança, são a esperança: não permitamos que seja extinta, mas cultivemo-la com paixão!

Dom da terra, o diamante faz apelo à salvaguarda da criação, à proteção do meio ambiente. Situada no coração da África, a República Democrática do Congo abriga um dos maiores pulmões verdes do mundo, que deve ser preservado. Como na paz e no desenvolvimento, também neste campo é importante uma colaboração ampla e profícua, que permita intervir eficazmente, sem impor modelos externos, mais úteis a quem ajuda do que a quem é ajudado. Muitos pediram à Africa o seu empenhamento e ofereceram-lhe ajuda para contrastar as alterações climáticas e o coronavírus. Trata-se, sem dúvida, de oportunidades que se devem aproveitar, todavia há necessidade sobretudo de modelos sanitários e sociais que deem resposta não só às urgências do momento, mas contribuam para um efetivo crescimento social: há necessidade de estruturas sólidas e de pessoal honesto e competente para superar os graves problemas que bloqueiam logo ao nascer o desenvolvimento, como a fome e as doenças.

Finalmente, o diamante é o mineral de origem natural com maior dureza; é muito alta a sua resistência aos agentes químicos. A contínua repetição de ataques violentos e as numerosas situações de transtorno poderiam enfraquecer a resistência dos congoleses, minar a sua força de ânimo, levá-los a desanimar e fechar-se na resignação. Mas em nome de Cristo, que é o Deus da esperança, o Deus de todas as possibilidades que sempre dá a força para recomeçar, em nome da dignidade e do valor dos diamantes mais preciosos desta terra que são os seus cidadãos, quero convidar a todos para um recomeço social corajoso e inclusivo. No-lo pede a história luminosa mas ferida do país, no-lo suplicam sobretudo os jovens e as crianças. Estou unido a vós e, com a oração e a proximidade, acompanho todos os esforços por um futuro pacífico, harmonioso e próspero deste grande país. Deus abençoe toda a nação congolesa!


Quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Santa Missa no Aeroporto "Ndolo"

Bandeko, boboto [irmãos e irmãs, paz] R/ Bondeko [fraternidade].

Bondeko [fraternidade] R/ Esengo [alegria].

Esengo – alegria! A alegria de vos ver e encontrar é grande; muito desejei este momento (fez-nos esperar um ano!). Obrigado por terdes vindo aqui!

O Evangelho acaba de nos dizer que também a alegria dos discípulos era grande na tarde de Páscoa, e que esta alegria brotou ao «verem o Senhor» (Jo 20, 20). Naquele clima de alegria e maravilha, o Ressuscitado fala aos seus. E que lhes diz? Começa por quatro palavras: «A paz esteja convosco!» (20, 19). Trata-se de uma saudação, mas é mais do que uma saudação: é um dom. Porque a paz, aquela paz anunciada pelos anjos na noite de Belém (cf. Lc 2, 14), aquela paz que Jesus prometeu deixar aos seus (cf. Jo 14, 27), é agora, pela primeira vez, entregue solenemente aos discípulos. A paz de Jesus, que também nos é dada em cada Missa, é pascal: chega com a ressurreição, porque antes o Senhor devia derrotar os nossos inimigos, o pecado e a morte, e reconciliar o mundo com o Pai; devia experimentar a nossa solidão e o nosso abandono, os nossos infernos, abraçar e preencher as distâncias que nos separavam da vida e da esperança. Agora, superadas as distâncias entre Céu e terra, entre Deus e homem, a paz de Jesus é dada aos discípulos.

Metamo-nos, pois, na pele deles. Naquele dia, estavam completamente atordoados pelo escândalo da cruz, feridos interiormente por terem abandonado Jesus pondo-se em fuga, dececionados com o epílogo do seu caso, temerosos de acabar como Ele. Havia neles sentimentos de culpa, frustração, tristeza, medo... Pois bem! Jesus proclama a paz enquanto no coração dos discípulos existem os escombros, anuncia a vida enquanto eles sentem dentro a morte. Por outras palavras, a paz de Jesus chega no momento em que, para eles, tudo parecia acabado, no momento menos aguardado e mais inesperado, quando não havia vislumbres de paz. Assim faz o Senhor: surpreende-nos, estende-nos a mão quando estamos prestes a afundar, levanta-nos quando tocamos o fundo. Irmãos, irmãs, com Jesus o mal nunca triunfa, nunca tem a última palavra. «Com efeito, Ele é a nossa paz» (Ef 2, 14), e a sua paz vence sempre. Por isso nós que pertencemos a Jesus, não podemos deixar prevalecer em nós a tristeza, não podemos permitir que se insinuem resignação e fatalismo. Se ao nosso redor se respira este clima, que não seja por nossa causa: num mundo desanimado com a violência e a guerra, os cristãos fazem como Jesus. Ele, como que insistindo, repetiu para os discípulos: Paz! A paz esteja convosco! (cf. Jo 20, 19.21); e nós somos chamados a assumir e proclamar ao mundo este inesperado e profético anúncio do Senhor, anúncio de paz.

Mas, podemos perguntar-nos: Como guardar e cultivar a paz de Jesus? Ele próprio nos indica três nascentes de paz, três fontes para continuar a alimentá-la. São o perdão, a comunidade e a missão.

Vejamos a primeira fonte: o perdão. Jesus diz aos seus: «Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados» (20, 23). Mas Ele, antes de dar aos apóstolos o poder de perdoar, perdoa-os; não com palavras, mas com um gesto, o primeiro que o Ressuscitado realiza diante deles. Como diz o Evangelho, «mostrou-lhes as mãos e o peito» (20, 20). Ou seja, mostra as chagas, oferece-lhas, porque o perdão nasce das feridas. Nasce quando as feridas sofridas não deixam cicatrizes de ódio, mas tornam-se o lugar onde se dá espaço aos outros acolhendo as suas debilidades. Então as fragilidades tornam-se oportunidades, e o perdão torna-se o caminho da paz. Não se trata de esquecer tudo como se nada fosse, mas de abrir aos outros o próprio coração com amor. É assim que faz Jesus: diante da miséria de quem O renegou e abandonou, mostra as feridas e abre a fonte da misericórdia. Não usa muitas palavras, mas abre de par em par o seu coração ferido, para nos dizer que Ele está sempre ferido de amor por nós.

Irmãos, irmãs, quando a culpa e a tristeza nos oprimem, quando as coisas não correm bem, sabemos para onde olhar: para as chagas de Jesus, pronto a perdoar-nos com o seu amor ferido e infinito. Ele conhece as tuas feridas, conhece as feridas do teu país, do teu povo, da tua terra! São feridas que ardem, continuamente infetadas pelo ódio e a violência, enquanto o remédio da justiça e o bálsamo da esperança parecem nunca mais chegar. Irmão, irmã, Jesus sofre contigo, vê as feridas que carregas dentro e deseja consolar-te e curar-te, oferecendo-te o seu Coração ferido. Ao teu coração, Deus repete as palavras que disse hoje por meio do profeta Isaías: «Hei de curá-lo e guiá-lo, prodigando-lhe reconforto» (Is 57, 18).

Hoje, juntos, acreditamos que, com Jesus, sempre temos a possibilidade de ser perdoados e de recomeçar, bem como a força de nos perdoarmos a nós mesmos, aos outros e à história! É isto que Cristo deseja: ungir-nos com o seu perdão, para nos dar a paz e a coragem de por nossa vez perdoar, a coragem de realizar uma grande amnistia do coração. Faz-nos tão bem limpar o coração da ira, dos remorsos, de todo o rancor e ódio! Queridos amigos, que hoje seja o momento de graça para acolher e viver o perdão de Jesus! Seja o momento certo para ti, que carregas um fardo pesado no coração e precisas que seja tirado para voltar a respirar. E que seja o momento propício para ti, que, neste país, te dizes cristão e todavia praticas a violência; a ti diz o Senhor: «Depõe as armas, abraça a misericórdia». E a todos os feridos e oprimidos deste povo, diz: «Não tenhais medo de colocar as vossas feridas nas minhas, as vossas chagas nas minhas chagas»! Façamo-lo, irmãos e irmãs! Não tenhais medo de retirar o Crucifixo do pescoço e dos bolsos, pegar nele na mão e estreitá-lo ao coração para partilhar as vossas feridas com as de Jesus. Ao regressar a casa, tomai também o Crucifixo que tendes e abraçai-o. Demos a Cristo a possibilidade de nos sarar o coração, entreguemos-Lhe o passado, todo o medo e aflição. Como é bom abrir à sua paz as portas do coração e as de casa! E por que não escrever no vosso quarto, na vossa roupa, no exterior da vossa casa as suas palavras: A paz esteja convosco? Mostrai-as; serão uma profecia para o país, a bênção do Senhor sobre quem encontrais. A paz esteja convosco: deixemo-nos perdoar por Deus e perdoemo-nos entre nós!

Vejamos agora a segunda fonte da paz: a comunidade. Jesus ressuscitado não Se dirige a cada um dos discípulos, mas encontra-os juntos: fala-lhes no plural, e confia a sua paz à primeira comunidade. Não há cristianismo sem comunidade, tal como não há paz sem fraternidade. Mas como comunidade, para onde caminhar? Aonde ir para encontrar a paz? Voltemos a fixar os discípulos. Antes da Páscoa, seguiam Jesus, mas raciocinavam ainda de forma demasiado humana: tinham as suas esperanças num Messias conquistador que expulsaria os inimigos, realizaria prodígios e milagres, aumentaria o prestígio e o sucesso deles. Mas estes desejos mundanos deixaram-nos de mãos vazias; pior, tiraram a paz à comunidade, gerando discussões e oposições (cf. Lc 9, 46; 22, 24). E o mesmo risco existe também para nós: estar juntos, mas caminhar sozinhos, procurando na sociedade, mas também na Igreja, o poder, a carreira, as ambições... Assim, porém, segue-se o próprio eu em vez do verdadeiro Deus e acaba-se como aqueles discípulos: fechados em casa, vazios de esperança e cheios de medo e desilusão. Mas na Páscoa voltam a encontrar o caminho da paz graças a Jesus, que sopra sobre eles dizendo: «Recebei o Espírito Santo» (Jo 20, 22). Graças ao Espírito Santo, deixarão de olhar para aquilo que os divide, mas fixar-se-ão no que os une; irão pelo mundo não a pensar em si mesmos, mas nos outros; não para ter visibilidade, mas para dar esperança; não para ganhar apoiantes, mas para gastar jubilosamente a vida pelo Senhor e pelos outros.

Irmãos, irmãs, o nosso perigo é seguir o espírito do mundo, e não o de Cristo. E qual é o caminho para não cair nas ciladas do poder e do dinheiro, para não ceder às divisões, às lisonjas do carreirismo que corroem a comunidade, às falsas ilusões do prazer e da feitiçaria que nos encerram em nós mesmos? O Senhor no-lo sugere, mais uma vez através do profeta Isaías, dizendo: «Estou com as pessoas acabrunhadas e humilhadas, para reanimar os humildes, para reanimar o coração dos deprimidos» (57, 15). O caminho é partilhar com os pobres: tal é o melhor antídoto contra a tentação de nos dividir e mundanizar. Ter a coragem de olhar para os pobres e escutá-los, porque são membros da nossa comunidade, e não estranhos que devem ser abolidos da vista e da consciência. Abrir o coração aos outros, em vez de o fechar nos próprios problemas ou nas próprias vaidades. Recomecemos dos pobres e descobriremos que todos compartilhamos a pobreza interior; que todos precisamos do Espírito de Deus para nos libertar do espírito do mundo; que a humildade é a grandeza do cristão, e a fraternidade a sua verdadeira riqueza. Acreditemos na comunidade e, com a ajuda de Deus, edifiquemos uma Igreja vazia de espírito mundano e cheia de Espírito Santo, livre de riquezas para nós mesmos e repleta de amor fraterno!

Chegamos, enfim, à terceira fonte da paz: a missão. Jesus diz aos discípulos: «Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós» (Jo 20, 21). Envia-nos como o Pai O enviou a Ele. E como foi que o Pai O enviou ao mundo? Enviou-O para servir e dar a vida em resgate pela humanidade (cf. Mc 10, 45), para manifestar a sua misericórdia por cada um (cf. Lc 15), para procurar os que andam longe (cf. Mt 9, 13). Numa palavra, enviou-O para todos: não só para os justos, mas para todos. Ressoam neste sentido ainda as palavras de Isaías: «Paz para os de longe e os de perto – diz o Senhor» (57, 19). Em primeiro lugar, aos distantes e também aos vizinhos; não só aos «nossos», mas a todos.

Irmãos, irmãs, somos chamados a ser missionários de paz, e isto nos encherá de paz. Trata-se duma opção: é dar espaço a todos no coração, é acreditar que as diferenças étnicas, regionais, sociais, religiosas e culturais vêm em segundo lugar e não são obstáculo; que os outros são irmãos e irmãs, membros da mesma comunidade humana; que cada um é destinatário da paz trazida ao mundo por Jesus. É acreditar que nós, cristãos, somos chamados a colaborar com todos, a romper a espiral da violência, a desmantelar os enredos do ódio. É verdade! Enviados por Cristo, os cristãos são chamados, por definição, a ser consciência de paz no mundo: não só consciências críticas, mas sobretudo testemunhas de amor; não pretendentes dos próprios direitos, mas dos do Evangelho, que são a fraternidade, o amor e o perdão; não indivíduos à procura dos próprios interesses, mas missionários daquele amor louco que Deus tem por cada um dos seres humanos.

A paz esteja convosco: diz Jesus hoje a cada família, comunidade, etnia, bairro e cidade deste grande país. A paz esteja convosco: deixemos que ressoem no coração, em silêncio, estas palavras de nosso Senhor. Ouçamo-las dirigidas a nós e escolhamos ser testemunhas de perdão, protagonistas na comunidade, pessoas em missão de paz no mundo.

Moto azalí na matoi ma koyoka [Quem tem ouvidos para ouvir]

R/ Ayoka [ouça]

Moto azalí na motema mwa kondima [Quem tem coração para aderir]

R/Andima [adira].


Encontro com as vítimas do leste do país na Nunciatura Apostólica

Queridos irmãos e irmãs!

Obrigado! Obrigado pela coragem destes testemunhos. Perante a violência desumana que vistes com os vossos olhos e experimentastes na própria pele, fica-se chocado. Só nos resta chorar, sem palavras, permanecendo em silêncio. Bunia, Beni-Butembo, Goma, Masisi, Rutshuru, Bukavu, Uvira… são lugares que os meios de comunicação internacionais quase nunca mencionam: lá e noutros lugares, tantos irmãos e irmãs nossos, filhos da mesma humanidade, são reféns da arbitrariedade do mais forte, de quem tem na mão as armas mais potentes, armas que continuam a circular. O meu coração está hoje no Leste deste imenso país, que não terá paz enquanto esta não for alcançada lá, na sua parte oriental.

A vós, queridos habitantes do Leste, quero dizer: estou unido convosco. As vossas lágrimas são as minhas lágrimas, a vossa dor é a minha dor. A cada família enlutada ou desalojada por causa de aldeias incendiadas e outros crimes de guerra, aos sobreviventes das violências sexuais, a cada criança e adulto ferido, digo: estou convosco, quero trazer-vos a carícia de Deus. O seu olhar terno e compassivo pousa sobre vós. Enquanto os violentos vos tratam como objetos, o Pai que está nos Céus vê a vossa dignidade e diz a cada um de vós: «És precioso aos meus olhos, estimo-te e amo-te» (Is 43, 4). Irmãos e irmãs, a Igreja está e estará sempre da vossa parte. Deus ama-vos, não Se esqueceu de vós; oxalá se recordem de vós também os homens!

Em nome d’Ele e juntamente com as vítimas e quantos se empenham pela paz, a justiça e a fraternidade, condeno as violências das armas, os massacres, os estupros, a destruição e ocupação de aldeias, a pilhagem de campos e de gado que continuam a ser perpetrados na República Democrática do Congo; e também a exploração sangrenta e ilegal da riqueza deste país, bem como as tentativas de dividi-lo para o poder controlar. Enche de indignação saber que a insegurança, a violência e a guerra que tragicamente atingem tantas pessoas são, vergonhosamente, alimentadas não só por forças externas mas também de dentro, para daí tirarem proveito e vantagem. Volto-me para o Pai que está nos Céus e nos quer ver a todos como irmãos e irmãs na terra, humildemente inclino a cabeça e, com a tristeza no coração, peço-Lhe perdão pela violência do homem sobre o homem: Pai, tende piedade de nós! Consolai as vítimas e quantos sofrem. Convertei os corações de quem pratica tão cruéis atrocidades, que envergonham toda a humanidade. E abri os olhos àqueles que propositadamente os fecham ou passam ao largo para não ver estas abominações.

Trata-se de conflitos que obrigam milhões de pessoas a abandonar suas casas, provocam gravíssimas violações dos direitos humanos, desintegram o tecido socioeconómico, causam feridas difíceis de cicatrizar. São lutas de parte nas quais se entrelaçam dinâmicas étnicas, territoriais e de grupo; conflitos que têm a ver com a posse da terra, a ausência ou debilidade das instituições, ódios nos quais se infiltra, em nome dum falso deus, a blasfémia da violência. Mas é, sobretudo, a guerra desencadeada por uma insaciável ganância de matérias-primas e de dinheiro, que alimenta uma economia de guerra que exige instabilidade e corrupção. Que escândalo, que hipocrisia: as pessoas são estupradas e assassinadas, enquanto os negócios que provocam violências e mortes continuam a prosperar!

Dirijo um sentido apelo a todas as pessoas, a todas as entidades, internas e externas, que movem os cordelinhos da guerra na República Democrática do Congo, saqueando-a, flagelando-a e desestabilizando-a. Enriqueceis-vos mediante a exploração ilegal dos bens deste país e o sacrifício cruento de vítimas inocentes. Escutai o grito do seu sangue (cf. Gn 4, 10), prestai ouvidos à voz de Deus, que vos chama à conversão, e à voz da vossa consciência: fazei silenciar as armas, acabai com a guerra. Basta! Basta de se enriquecer na pele dos mais frágeis, basta de se enriquecer com recursos e dinheiro manchados de sangue!

Queridos irmãos e irmãs, e nós que podemos fazer? Donde começar? Como agir para promover a paz? Quero humildemente propor-vos que se recomece de dois «nãos» e dois «sins».

Antes de mais nada, não à violência, sempre e em todo o caso, sem «se» nem «mas». Não à violência! Amar o próprio povo não significa nutrir ódio contra os outros. Pelo contrário, amar o próprio país significa recusar a envolver-se com quantos incitam ao uso da força. É um trágico engano: o ódio e a violência nunca são aceitáveis, nunca são justificáveis, nunca são toleráveis… e, com maior força de razão, nunca o são para quem é cristão. O ódio só gera mais ódio, e violência outra violência. Então há que dizer um claro e forte «não» a quem os propaga em nome de Deus esta violência, este ódio. Queridos congoleses, não vos deixeis seduzir por pessoas ou grupos que incitam à violência em nome de Deus. Deus é Deus da paz, e não da guerra. Pregar o ódio é uma blasfémia e o ódio sempre corrói o coração do homem. De facto, quem vive de violência, nunca vive bem: pensa salvar a própria vida e, em vez disso, acaba engolido numa voragem de maldade que, levando-o a combater os irmãos e irmãs com quem cresceu e viveu durante anos, o mata por dentro.

Mas, para se dizer verdadeiramente «não» à violência, não basta evitar atos violentos; é preciso extirpar as raízes da violência: penso na ganância, na inveja e, sobretudo, no rancor. Ao mesmo tempo que me curvo respeitosamente diante dos sofrimentos suportados por tantos, quero pedir a todos que se comportem como nos sugeristes vós testemunhas corajosas, ou seja, que tenham a coragem de desarmar o coração. Peço-o a todos em nome de Jesus, que perdoou a quem Lhe trespassou com pregos os pulsos e os pés, prendendo-O a uma cruz: peço-vos para desarmar o coração. Isto não quer dizer deixar de se indignar perante o mal e não o denunciar… é forçoso fazê-lo! Tampouco significa impunidade e remissão das atrocidades, continuando para diante como se nada tivesse acontecido. O que nos é pedido, em nome da paz, em nome do Deus da paz, é desmilitarizar o coração: tirar o veneno, rejeitar o ódio, desativar a ganância, cancelar o ressentimento; dizer «não» a tudo isso parece fazer-nos débeis, mas na realidade torna-nos livres, porque dá paz. Sim, a paz nasce dos corações, dos corações libertos do rancor.

Há depois um segundo «não» que devemos dizer: não à resignação. A paz pede para se combater o desânimo, o desalento e a desconfiança que nos levam a crer que é melhor suspeitar de todos, é melhor viver separados e afastados do que dar as mãos e caminhar juntos. Mais uma vez, em nome de Deus, renovo o convite a quantos vivem na República Democrática do Congo para que não desistam, mas se empenhem por construir um futuro melhor. Um futuro de paz não vai cair do céu, mas poderá chegar se se eliminarem dos corações o fatalismo resignado e o medo de se envolver com os outros. Um futuro diferente virá se for de todos e não de um, se for para todos e não contra alguém. Um futuro novo virá se o outro, seja ele tutsi ou hutu, deixar de ser um adversário ou um inimigo, passando a ser um irmão e uma irmã em cujo coração (assim é preciso acreditar) existe, embora oculto, o mesmo desejo de paz. Também no Leste, a paz é possível! Acreditemos nisto e trabalhemos sem delegar para outro a mudança!

Não se pode construir o futuro, permanecendo fechados nos próprios interesses particulares, retraídos nos próprios grupos, etnias e clãs. Assim o ensina um provérbio suaíli: «jirani ni ndugu – o vizinho é um irmão»; por conseguinte, irmão, irmã, todos os teus vizinhos são teus irmãos, seja ele burúndio, ugandês ou ruandês. Somos todos irmãos, porque filhos do mesmo Pai: assim nos ensina a fé cristã, professada por grande parte da população. Então levante-se o olhar para o Céu e não se fique prisioneiro do medo: o mal que cada um sofreu precisa de ser convertido em bem para todos; o desalento que paralisa dê lugar a um renovado ardor, a uma luta indómita pela paz, a propósitos corajosos de fraternidade, à beleza de gritar juntos nunca mais… nunca mais violência, nunca mais rancor, nunca mais resignação!

E eis-nos, finalmente, aos dois «sins» pela paz. Em primeiro lugar, sim à reconciliação. Amigos, é maravilhoso aquilo que estais prestes a fazer. Quereis assumir o compromisso de vos perdoardes mutuamente e de repudiardes as guerras e os conflitos para solucionar as distâncias e as diferenças. E decidistes fazê-lo, daqui a pouco, rezando juntos, reunidos ao redor da árvore da Cruz, sob a qual, com grande coragem, desejais depor os sinais das violências que vistes e sofrestes: uniformes, catanas, martelos, machados, facas... Também a cruz era um instrumento de sofrimento e de morte, o mais terrível no tempo de Jesus, mas, atravessada pelo seu amor, tornou-se instrumento universal de reconciliação, árvore de vida.

Quero dizer-vos: sede também vós árvores de vida. Fazei como as árvores, que absorvem ar poluído e devolvem oxigénio. Ou, segundo um provérbio, «na vida faz como a palmeira que recebe pedras e devolve tâmaras». Esta é profecia cristã: responder ao mal com o bem, ao ódio com o amor, à divisão com a reconciliação. A fé traz consigo uma nova ideia de justiça, que não se contenta com punir, mas renuncia à vingança, quer reconciliar, impedir novos conflitos, extinguir o ódio, perdoar. E tudo isso é mais forte do que o mal. Sabeis porquê? Porque transforma a realidade a partir de dentro, em vez de a destruir de fora. Só assim se derrota o mal, como fez Jesus na árvore da cruz, assumindo-o e transformando-o com o seu amor. Assim a dor transformou-se em esperança. Amigos, só o perdão abre as portas ao amanhã, porque abre as portas a uma nova justiça que, sem esquecer, desintegra o círculo vicioso da vingança. Reconciliar-se é gerar o amanhã: é crer no futuro em vez de ficar ancorados no passado; é apostar na paz em vez de se resignar com a guerra; é escapar da prisão das próprias razões para se abrir aos outros e saborear, juntos, a liberdade.

Depois o último «sim», decisivo: sim à esperança. Se é possível representar a reconciliação como uma árvore, como uma palmeira que dá fruto, a esperança é a água que a torna mimosa. Esta esperança tem uma fonte, e esta fonte tem um nome, que quero proclamar aqui juntamente convosco: Jesus! Jesus: com Ele, o mal já não tem a última palavra sobre a vida; com Ele, que, dum túmulo – estação final do trajeto humano – fez o início duma nova história, abrem-se sempre novas possibilidades. Com Ele, cada túmulo pode transformar-se num berço, cada calvário num jardim pascal. Com Jesus, nasce e renasce a esperança: para quem sofreu o mal e até para quem o cometeu. Irmãos e irmãs do Leste do país, esta esperança é para vós; tendes direito a ela. Mas é um direito que também deve ser conquistado. Como? Semeando-a cada dia, com paciência. Volto à imagem da palmeira. Diz um provérbio: «Quando comes a tâmara, vês a palmeira, mas quem a plantou, há muito tempo que voltou à terra». Por outras palavras, para se obter os frutos esperados, é preciso trabalhar com o mesmo espírito dos plantadores de palmeiras, pensando nas gerações futuras e não nos resultados imediatos. Semear o bem faz-nos bem: liberta da lógica estreita do ganho pessoal e dá de prenda a cada dia o seu porquê; traz à vida o respiro da gratuidade e torna-nos mais semelhantes a Deus, semeador paciente que irradia esperança sem nunca Se cansar.

Hoje agradeço e abençoo a todos os semeadores de paz que trabalham no país: as pessoas e as instituições que se prodigalizam na ajuda e na luta pelas vítimas da violência, da exploração e das calamidades naturais, as mulheres e os homens que vêm aqui animados pelo desejo de promover a dignidade das pessoas. Alguns perderam a vida enquanto serviam a paz, como o Embaixador Luca Attanasio, o polícia Vittorio Iacovacci e o condutor Mustapha Milambo assassinados há dois anos no Leste do país. Eram semeadores de esperança; o seu sacrifício não será esquecido.

Irmãos, irmãs, filhos e filhas do Itúrio, do Kivu do Norte e do Sul, estou unido convosco, abraço-vos e abençoo a todos. Abençoo cada criança, adulto, idoso, cada pessoa ferida pela violência na República Democrática do Congo, em particular cada mulher e cada mãe. E rezo para que a mulher, toda a mulher seja respeitada, protegida e valorizada: cometer violência contra uma mulher e uma mãe é fazê-lo ao próprio Deus, que assumiu a condição humana de uma mulher, de uma mãe. Jesus, nosso irmão, Deus da reconciliação que plantou a árvore de vida que é a cruz no coração das trevas do pecado e do sofrimento, Jesus, Deus da esperança que acredita em vós, no vosso país e no vosso futuro, abençoe a todos vós e vos console; derrame a sua paz nos vossos corações, nas vossas famílias e em toda a República Democrática do Congo. Obrigado!


Encontro com os representantes de algumas obras de caridade na Nunciatura Apostólica

Queridos irmãos e irmãs!

Saúdo-vos cordialmente e agradeço os cânticos, os testemunhos e quanto me contastes, mas principalmente tudo o que fazeis! Neste país, onde há tanta violência que ribomba como o estrondo duma árvore derrubada, vós sois a floresta que cresce dia a dia em silêncio e torna o ar melhor, respirável. Claro, faz mais barulho a árvore que cai, mas Deus ama e cultiva a generosidade que silenciosamente germina e dá fruto, e pousa o olhar com alegria sobre quem serve os necessitados. Assim cresce o bem, na simplicidade de mãos e corações estendidos para os outros, com a coragem dos pequenos passos para se aproximar dos mais frágeis em nome de Jesus. É mesmo verdadeiro, o provérbio que Cecília citou: «Mil passos começam sempre com o primeiro»!

Houve uma coisa que me impressionou! É que não vos limitastes a elencar os problemas sociais nem a enumerar dados sem conta sobre a pobreza, mas sobretudo falastes com carinho dos pobres. Referistes a vossa relação com pessoas que, antes, não conhecíeis e agora se vos tornaram familiares: nomes e rostos. Obrigado por este olhar que sabe reconhecer Jesus nos seus irmãos mais pequeninos. O Senhor deve ser procurado e amado nos pobres e, como cristãos, devemos ter cuidado com nos distanciar deles, porque há algo errado quando um crente se mantém à distância dos prediletos de Cristo.

Hoje, enquanto muitos os descartam, vós abraçai-los; enquanto o mundo os explora, vós promovei-los. A promoção contra a exploração: esta é a floresta que cresce enquanto avança, violenta, a desflorestação do descarte! Quero dar voz àquilo que fazeis, favorecer o crescimento e a esperança na República Democrática do Congo e neste continente. Vim aqui animado pelo desejo de dar voz a quem a não tem. Como gostaria que os meios de comunicação dessem mais espaço a este país e à África inteira! Oxalá se conheçam os povos, as culturas, os sofrimentos e as esperanças deste jovem continente do futuro! Descobrir-se-ão imensos talentos e histórias de verdadeira grandeza humana e cristã, histórias nascidas num clima genuíno, que conhece bem o respeito pelos mais pequeninos, os idosos e a criação.

É bom poder dar-vos voz aqui na Nunciatura, porque as Representações Pontifícias, as «casas do Papa» espalhadas pelo mundo, são e devem ser amplificadores de promoção humana, cruzamentos de caridade, na vanguarda da diplomacia da misericórdia favorecendo ajudas concretas e promovendo redes de cooperação. Isto já acontece, sem alarde e há muito tempo, aqui e em muitas partes do mundo. Há decénios que esta casa é uma presença vizinha: inaugurada há noventa anos como Delegação Apostólica, celebrará dentro de poucos dias o sexagésimo aniversário da sua elevação a Nunciatura.

Irmãos e irmãs que amais este país e vos dedicais ao seu povo, aquilo que fazeis é maravilhoso, mas nada fácil. Apetece chorar ao ouvir histórias, como as que me contastes, de pessoas que sofrem condenadas pela indiferença geral a uma vida errante que as leva a viver na rua, expondo-as ao risco de violências físicas e abusos sexuais e até à acusação de bruxaria, quando estão apenas carentes de amor e de cuidados. Impressionou-me aquilo que nos disseste tu, Tekadio: por causa da lepra, ainda hoje – em 2023 – te sentes «discriminado, visto com desprezo e humilhado», enquanto as pessoas, levadas por um misto de vergonha, incompreensão e medo, se apressam a limpar o próprio trilho onde passou a tua sombra. A pobreza e a rejeição ofendem o homem, desfiguram a sua dignidade: são como cinzas que apagam o fogo que se traz dentro. Na verdade em cada pessoa, enquanto criada à imagem de Deus, resplandece um fogo luminoso, mas só o amor remove as cinzas que o cobrem: só devolvendo dignidade é que se restitui humanidade! Entristeceu-me ouvir que também aqui, como em muitas partes do mundo, crianças e idosos são descartados. Além de escandaloso, isso é nocivo para a sociedade inteira, que se constrói precisamente a partir do cuidado pelos idosos e as crianças, pelas raízes e o futuro. Lembremo-nos de que um progresso verdadeiramente humano não pode prescindir de memória e de futuro: a memória proporcionada pelos idosos, o futuro pelos jovens.

Irmãos, irmãs, hoje quero partilhar convosco e, por vosso intermédio, com os inúmeros obreiros do bem neste grande país, duas perguntas. A primeira: isto vale a pena? Vale a pena comprometer-se à vista de um oceano de carências em constante e dramático aumento? Não será trabalhar em vão, para além de se mostrar muitas vezes desanimador? Ajuda-nos o que disse a Irmã Maria Celeste: «Apesar da nossa pequenez, o Senhor crucificado deseja ter-nos ao seu lado para suportar o drama do mundo». É verdade! A caridade sintoniza com Deus, e Ele surpreende-nos com prodígios inesperados que acontecem através de quem ama. As vossas histórias estão cheias de acontecimentos estupendos, conhecidos pelo coração de Deus e impossíveis para as simples forças humanas. Penso naquilo que nos contaste tu, Pierre, dizendo que, no deserto da impotência e da indiferença, no mar da tribulação, descobriste, juntamente com os teus amigos, que Deus não vos esquecera, tendo enviado pessoas que não passaram ao largo na estrada onde estáveis. Assim, no rosto delas, descobristes o de Jesus e agora quereis fazer o mesmo pelos outros. O bem é assim: é difusivo, não se deixa paralisar pela resignação e pelas estatísticas, mas convida a dar aos outros aquilo que gratuitamente recebemos: eu recebi e, por minha vez, dou. É preciso que sobretudo os jovens vejam isto: rostos que superam a indiferença fixando as pessoas nos olhos, mãos que não pegam em armas e não manuseiam dinheiro, mas estendem-se a quem está caído por terra e o levantam para a sua dignidade, a dignidade de filha e filho de Deus. Trata-se do único caso em que é lícito olhar de cima para abaixo uma pessoa: para ajudá-la a levantar-se. Fora disso, nunca se pode olhar uma pessoa de cima para baixo.

Concluindo, vale a pena! E é um bom sinal que as Autoridades, através dos acordos recentes com a Conferência Episcopal, tenham reconhecido e valorizado a obra de quantos se empenham em campo sociocaritativo. Com certeza, isto não significa que se possa delegar sistematicamente ao voluntariado o cuidado dos mais frágeis, bem como o empenho na saúde e na instrução. São tarefas prioritárias de quem governa, com o cuidado de assegurar os serviços fundamentais também à população que vive longe dos grandes centros urbanos. Ao mesmo tempo, os crentes em Cristo nunca devem manchar o testemunho da caridade, que é testemunho de Deus, com a busca de privilégios, prestígio, visibilidade e poder. Esta é um coisa má, que nunca se deve fazer. Nunca! Os meios, os recursos e os bons resultados são para os pobres, e quem se ocupa deles é chamado a recordar-se sempre de que o poder é serviço e que a caridade não permite repousar sobre os triunfos, mas exige urgência e concretismo. Neste sentido, entre as muitas coisas que se hão de fazer, quero sublinhar um desafio que diz respeito a todos, e não pouco a este país: o que causa a pobreza não é tanto a ausência de bens e de oportunidades, mas a sua iníqua distribuição. Quem é abastado, particularmente se cristão, sinta-se interpelado a repartir o que possui com quem carece do necessário, sobretudo se pertence ao mesmo povo. Não é uma questão de bondade, mas de justiça. Não é filantropia, mas fé; pois, como diz a Escritura, «a fé sem obras está morta» (Tg 2, 26).

E aqui surge a segunda pergunta precisamente acerca da obrigação e urgência do bem: como fazê-lo? Como praticar a caridade e que critérios seguir? A propósito, gostava de vos oferecer três pontos simples; são aspetos que as instituições sociocaritativas aqui operantes já conhecem, mas é bom recordá-los para que o serviço a Jesus nos pobres seja um testemunho cada vez mais fecundo.

Antes de mais nada, a caridade requer exemplaridade: de facto, não é apenas algo que se faz, mas expressão daquilo que se é. É um estilo de vida; é viver o Evangelho. Por isso, são necessárias credibilidade e transparência: penso na gestão financeira e administrativa dos projetos, mas também no empenho por oferecer serviços condignos e qualificados. Este é precisamente o espírito que carateriza tantas obras eclesiais de que beneficia este país e que marcaram a sua história. Haja sempre exemplaridade!

O segundo ponto: clarividência, isto é, saber olhar ao longe. É fundamental que as iniciativas e as boas obras, além de responder às necessidades imediatas, sejam sustentáveis e duradouras. Não simplesmente assistencialistas, mas realizadas com base naquilo que realmente se pode fazer e com uma perspetiva de longo prazo, para que perdurem no tempo e não acabem com quem as iniciou. Neste país, por exemplo, existe um solo incrivelmente fecundo, uma terra extremamente fértil; a generosidade de quem ajuda não pode deixar de atender a esta caraterística, favorecendo o desenvolvimento interno de quantos povoam esta terra, ensinando-lhes a cultivá-la, dando vida a projetos de desenvolvimento que ponham o futuro nas suas mãos. Mais do que distribuir bens, que aliás serão necessários sempre, é preferível transmitir conhecimentos e dar instrumentos que tornem o progresso autónomo e sustentável. A propósito, penso inclusivamente no grande contributo oferecido pelos Serviços de Saúde católicos que neste país, como em tantos outros no mundo, dão alívio e esperança à população, indo gratuita e seriamente ao encontro de quem sofre, procurando sempre socorrer – como justamente deve ser – através de instrumentos modernos e adequados.

Exemplaridade, clarividência e finalmente – terceiro elemento – conexão. Irmãos e irmãs, é preciso construir rede, não apenas de forma virtual, mas concretamente, como sucede na sinfonia de vida da grande floresta deste país e sua variegada vegetação. Fazer rede: trabalhar cada vez mais juntos, estar em constante sinergia entre vós, em comunhão com as Igrejas locais e com o território. Trabalhar em rede: cada qual com o seu carisma, mas juntos, interligados, partilhando as urgências, as prioridades, as necessidades, sem fechamentos nem autorreferencialidades, prontos a juntar-se a outras comunidades cristãs e outras religiões e aos inúmeros organismos humanitários presentes. Tudo, para benefício dos pobres. Fareis rede com todos.

Queridos irmãos e irmãs, deixo-vos estas ideias e agradeço-vos tudo o que depusestes hoje no meu coração. Sim, muito obrigado porque me tocastes o coração. Sois preciosos. Abençoo-vos e peço-vos, por favor: continuai a rezar por mim, que preciso. Obrigado!


Quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Encontro com os jovens e os catequistas no "Estádio dos Mártires"

Obrigado pela vossa amizade, a vossa dança e as vossas palavras! Estou feliz por ter podido fixar-vos nos olhos, saudar-vos e abençoar-vos, enquanto as vossas mãos levantadas para o céu faziam festa.

Agora quero pedir-vos para durante alguns momentos olhardes, não para mim, mas concretamente para as vossas mãos: abri as palmas das mãos e fixai nelas os olhos. Amigos, Deus colocou nas vossas mãos o dom da vida, o futuro da sociedade e deste grande país. Irmão, irmã, as tuas mãos parecem-te pequenas e frágeis, vazias e inaptas para tarefas tão grandes? Quero, porém, fazer-te notar uma coisa: todas as mãos são semelhantes, mas não há nenhuma igual a outra; ninguém tem mãos iguais às tuas. Por isso, tu és uma riqueza única, irrepetível e incomparável. Ninguém, na história, te pode substituir. Pergunta-te então: Para que servem estas minhas mãos? Para construir ou destruir, dar ou reter, amar ou odiar? Vê! Podes apertar a mão e fechá-la, torna-se um punho; ou podes abri-la e colocá-la à disposição de Deus e dos outros. Aqui está a opção fundamental, desde os tempos antigos, desde Abel que ofereceu com generosidade os frutos do seu trabalho, enquanto Caim levantou a mão contra o irmão e o matou (cf. Gn 4, 8). Jovem que sonhas com um futuro diferente, é das tuas mãos que nasce o amanhã; das tuas mãos, pode vir a paz que falta a este país. Mas, concretamente, como fazer? Quero sugerir-vos alguns «ingredientes para construir o futuro»: justamente cinco, que podeis associar aos dedos duma mão.

Ao polegar, o dedo mais próximo do coração, corresponde a oração, que faz pulsar a vida. Pode parecer uma coisa abstrata, distante da realidade concreta dos problemas. Mas a oração é o primeiro ingrediente, e o fundamental, porque sozinhos nada conseguimos fazer. Não somos omnipotentes e, quando alguém julga que o é, acaba por falhar miseravelmente. É como uma árvore desenraizada: mesmo que seja grande e robusta, sozinha não se aguenta de pé. Por isso mesmo, é preciso radicar-se na oração, na escuta da Palavra de Deus, que nos permite crescer cada dia em profundidade, dar fruto e transformar o ar poluído que respiramos em oxigénio vivificante. Para o conseguir, cada árvore precisa dum elemento simples e essencial: a água. Pois bem! A oração é «a água da alma»: é humilde, não se vê, mas dá vida. Quem reza, amadurece interiormente e sabe erguer o olhar para o Alto, lembrando-se de que foi feito para o Céu.

Irmão, irmã, há necessidade de oração, duma oração viva. Não te dirijas a Jesus como a um ser distante e estranho de quem se tem medo, mas como ao maior amigo, que deu a vida por ti. Conhece-te, confia em ti e ama-te, sempre. Se O contemplas suspenso na cruz para te salvar, compreendes quanto vales para Ele. E podes confiar-Lhe, colocando sobre a sua cruz as tuas cruzes, os teus medos, as tuas preocupações. Abraçá-los-á; já o fez há dois mil anos, e aquela cruz, que hoje suportas, já fazia parte da d’Ele. Portanto, não tenhas medo de tomar o crucifixo nas mãos e apertá-lo ao peito, de derramar as tuas lágrimas por Jesus. E não te esqueças de fixar o seu rosto, o rosto dum Deus jovem, vivo, ressuscitado! Sim, Jesus venceu o mal; fez, da cruz, a ponte para a ressurreição. Por isso, cada dia levanta as mãos para Ele a fim de O louvar e bendizer; grita-Lhe as esperanças do teu coração, confia-Lhe os segredos mais íntimos da vida: a pessoa que amas, as feridas que guardas dentro, os sonhos que tens no coração. Fala-Lhe do teu bairro, dos vizinhos, dos professores, dos companheiros, dos amigos e colegas; do teu país. Deus gosta desta oração viva, concreta, feita com o coração. Permite-Lhe intervir, entrar nos sulcos da vida dum modo especial, ou seja, com a sua «força de paz». Esta tem um nome; sabeis quem é? É o Espírito Santo, Aquele que consola e dá vida. É o motor da paz, é a verdadeira força de paz. Por isso mesmo, a oração é a arma mais poderosa que existe. Transmite-te o conforto e a esperança de Deus. Abre-te sempre novas possibilidades e ajuda-te a superar os medos. É verdade! Quem reza vence o medo e assume o próprio futuro. Acreditais nisto? Quereis escolher a oração como vosso segredo, como água da alma, como única arma a trazer convosco, como companheira de viagem todos os dias?

Agora fixemos o segundo dedo, o indicador. Com ele, indicamos algo aos outros. Os outros, a comunidade: aqui está o segundo ingrediente. Amigos, não deixeis que a vossa juventude seja arruinada pela solidão e o isolamento. Imaginai-vos sempre juntos, e sereis felizes, porque a comunidade é o caminho para estar bem connosco mesmos, para ser fiéis à própria vocação. As escolhas individualistas, pelo contrário, no início parecem aliciadoras, mas depois deixam dentro apenas um grande vazio. Pensai nas drogas: escondes-te dos outros, da vida verdadeira, para te sentires omnipotente; e, no fim, encontras-te privado de tudo. Mas pensai também na dependência do ocultismo e da feitiçaria, que enredam nas grinfas do medo, da vingança e da raiva. Não vos deixeis fascinar por falsos paraísos egoístas, construídos sobre aparências, ganhos fáceis ou religiosidades distortas.

E guardai-vos da tentação de apontar o dedo contra alguém, de excluir o outro por ser de origem diferente da vossa; guardai-vos do regionalismo, do tribalismo, que parecem reforçar-vos no vosso grupo quando, pelo contrário, representam a negação da comunidade. Sabeis como acontece: primeiro, crê-se nos preconceitos sobre os outros, depois justifica-se o ódio e em seguida a violência, no fim encontramo-nos no meio da guerra. Mas tu – pergunto – já terias falado com pessoas dos outros grupos ou sempre estiveste fechado no teu? Terias já escutado as histórias dos outros, debruçando-te sobre as suas tribulações? Claro, é mais fácil condenar alguém do que compreendê-lo; mas o caminho que Deus indica para construir um mundo melhor passa pelo outro, pelo conjunto, pela comunidade. É fazer Igreja, alargar os horizontes, ver em cada um o meu próximo, cuidar do outro. Vês alguém sozinho, atribulado, negligenciado? Aproxima-te dele, não para lhe fazeres ver como és bom, mas para lhe dar o teu sorriso e oferecer-lhe a tua amizade.

David, disseste que vós jovens quereis, e justamente, estar conectados com os outros, mas que as redes sociais frequentemente vos confundem. É verdade! O mundo virtual não é suficiente, não nos podemos contentar em interagir com pessoas distantes ou mesmo falsas. A vida real não se toca com um dedo no ecrã. É triste ver jovens que passam horas diante dum telemóvel: depois de largarem aquele espelho, se olhares para o seu rosto, verás que não sorri, o olhar tornou-se cansado e enjoado. Nada e ninguém pode substitui a força de estar juntos, a luz dos olhos, a alegria da partilha! É essencial falar e ouvirmo-nos: não vos contenteis com o ecrã onde cada um procura o que lhe interessa; em vez disso descobri cada dia a beleza de vos deixardes maravilhar pelos outros, as suas histórias e as suas experiências.

Tentemos agora experimentar o que significa fazer comunidade. Durante alguns momentos, por favor, dai a mão a quem está ao vosso lado. Senti-vos uma única Igreja, um único Povo. Sente que o teu bem depende do bem do outro, que é multiplicado se for posto em conjunto. Sente-te guardado pelo irmão e pela irmã, por alguém que te aceita assim como és e quer cuidar de ti. E sente-te responsável pelos outros, parte viva duma grande rede de fraternidade, onde nos apoiamos reciprocamente e tu és indispensável. Sim! És indispensável e responsável pela tua Igreja e pelo teu país; fazes parte duma história maior, que te chama a ser protagonista: criador de comunhão, campeão de fraternidade, corajoso sonhador dum mundo mais unido.

Nesta aventura, não estais sozinhos; apoia-vos a Igreja inteira, espalhada por todo o mundo. Trata-se dum desafio difícil, mas possível. E tendes também amigos que, das bancadas do Céu, vos impelem para estas metas. Sabeis quem são? Os santos. Penso, por exemplo, no Beato Isidoro Bakanja, na Beata Maria Clementina Anuarita, em São Kizito e nos seus companheiros: testemunhas da fé, mártires que nunca cederam à lógica da violência, mas confessaram, com a vida, a força do amor e do perdão. Os seus nomes, escritos no Céu, ficarão na história, enquanto o fechamento e a violência sempre revertem em detrimento de quem os comete. Sei que já várias vezes demonstrastes saber erguer-vos para defender, mesmo à custa de grandes sacrifícios, os direitos humanos e a esperança duma vida melhor para todos no país. Agradeço-vos por isso e honro a memória de tantos que perderam a vida ou a saúde por estas nobres causas. E encorajo-vos: avançai juntos, sem medo, como comunidade!

Oração, comunidade… E chegamos ao dedo central, que se alonga um pouco mais além dos outros para de certo modo nos lembrar uma coisa imprescindível. É o ingrediente fundamental para um futuro que esteja à altura das vossas expectativas. É a honestidade! Ser cristão é testemunhar Cristo. Ora o primeiro modo de o fazer é viver retamente, como Ele quer. Isto significa não se deixar enredar nos laços da corrupção. O cristão só pode ser honesto, senão trai a sua identidade. Sem honestidade, não somos discípulos e testemunhas de Jesus; somos pagãos, idólatras que se adoram a si próprios em vez de Deus, que se servem dos outros em vez de servir os outros.

Mas – pergunto – como se vence o câncer da corrupção, que parece expandir-se sem nunca parar? São Paulo ajuda-nos, com uma frase simples e genial, que podeis repetir até a recordar de cor. É esta: «Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem» (Rm 12, 21). Não te deixes vencer pelo mal: não vos deixeis manipular por indivíduos ou grupos que procuram servir-se de vós para manter o vosso país na espiral da violência e da instabilidade, para continuarem a controlá-lo sem consideração por ninguém. Mas vence o mal com o bem: sede vós os transformadores da sociedade, os conversores do mal em bem, do ódio em amor, da guerra em paz. Quereis sê-lo? Se quiserdes, é possível… E sabeis porquê? Porque cada um de vós tem um tesouro que ninguém vos pode roubar: são as vossas opções. Sim! Tu és o resultado das opções que realizas, e sempre podes escolher a coisa certa a fazer. Somos livres para escolher: não permitais que a vossa vida seja arrastada pela torrente poluída, não vos deixeis levar como tronco seco num rio sujo. Indignai-vos, sem nunca ceder aos aliciamentos persuasivos, mas envenenados, da corrupção.

Vem-me à mente o testemunho dum jovem como vós, Floribert Bwana Chui: há quinze anos – contava ele apenas 26 – foi morto em Goma por ter bloqueado a passagem de alimentos estragados, que teriam danificado a saúde das pessoas. Poderia deixar correr, não o teriam descoberto e ainda ganharia qualquer coisa naquilo. Mas, como cristão, rezou, pensou nos outros e escolheu ser honesto, dizendo não à imundície da corrupção. Isto é conservar as mãos limpas, enquanto as mãos, que ganham em tráficos ilícitos, ficam ensanguentadas. Se alguém te entregar um envelope prometendo favores e riquezas, não caias na armadilha, não te deixes enganar, não te deixes engolir pelo pântano do mal. Não te deixes vencer pelo mal, não acredites nas tramoias obscuras do dinheiro, que te fazem precipitar na noite. Ser honesto é brilhar como de dia, é espalhar a luz de Deus, é viver a bem-aventurança da justiça: vence o mal com o bem!

Passamos ao quarto dedo: o anular. Nele se colocam as alianças nupciais. Mas, se pensarmos bem, o anular é também o dedo mais frágil, aquele que tem mais dificuldade para se levantar. Lembra-nos que as grandes metas da vida, a começar pelo amor, passam por fragilidades, canseiras e dificuldades. Devem ser vividas, enfrentadas com paciência e confiança, sem nos sobrecarregarmos com problemas inúteis, como, por exemplo, transformar o valor simbólico do dote num valor quase de mercado. Mas nas nossas fragilidades, nas crises, qual é a força que nos faz continuar? O perdão. Pois perdoar quer dizer saber recomeçar. Perdoar não significa esquecer o passado, mas não se resignar com o facto de poder repetir-se. É mudar o curso da história. É levantar quem caiu. É aceitar a ideia de que ninguém é perfeito e que todos – e não só eu – têm o direito de recomeçar.

Amigos, para criar um futuro novo, precisamos de dar e receber o perdão. É o que faz o cristão: não se limita a amar aqueles que o amam, mas sabe interromper, com o perdão, a espiral das vinganças pessoais e tribais. Penso no Beato Isidoro Bakanja, um irmão vosso que foi torturado longamente porque não renunciara a testemunhar a sua piedade e propusera o cristianismo a outros jovens. Nunca cedeu a sentimentos de ódio e, ao dar a vida, perdoou ao seu carrasco. Quem perdoa leva Jesus mesmo aonde não é acolhido, introduz amor onde o amor é rejeitado. Quem perdoa constrói o futuro. Mas como tornar-se capaz de perdão? Deixando-se perdoar por Deus. Sempre que nos confessamos, somos os primeiros a receber em nós aquela força que muda a história. Da parte de Deus, somos perdoados sempre e gratuitamente; quanto a nós, é-nos dito – como se lê no Evangelho – «vai e faz tu também o mesmo» (Lc 10, 37). Caminha, pondo fim ao rancor, sem veneno, sem ódio. Caminha, assumindo o estilo de Deus, o único que renova a história. Caminha e acredita que, com Deus, sempre se pode recomeçar, sempre se pode voltar a partir, sempre se pode perdoar!

Oração, comunidade, honestidade, perdão. Chegamos ao último dedo: o mindinho. Tu poderias dizer: sou pequeno, e o bem que possa fazer não passa duma gota no oceano. Mas é precisamente a pequenez, o fazer-se pequenino que atrai Deus. Há uma palavra-chave neste sentido: serviço. Quem serve, faz-se pequenino. Como uma semente minúscula que parece desaparecer na terra e, em vez disso, dá fruto. Segundo Jesus, o serviço é o poder que transforma o mundo. Deste modo, a simples pergunta que poderias até atar ao dedo, para não te esqueceres de a fazer cada dia, é esta: Eu, que posso fazer pelos outros? Ou seja: como posso servir a Igreja, a minha comunidade, o meu país? Olivier, disseste-nos que nalgumas regiões isoladas sois vós, os catequistas, que servis diariamente a comunidade dos fiéis e que isto, na Igreja, deve ser «tarefa de todos». É verdade! E é belo servir os outros, cuidar deles, fazer algo gratuitamente, como Deus faz connosco. Quero agradecer-vos, queridos catequistas: para muitas comunidades, sois vitais como a água! Fazei-as crescer sempre com a clareza da vossa oração e do vosso serviço. Servir não é ficar de braços cruzados, é mobilizar-se. Muitos movem-se, porque seduzidos pelos próprios interesses; vós não tendes medo de vos mobilizar em prol do bem, investir no bem, no anúncio do Evangelho, preparando-vos com paixão e adequadamente, dando vida a projetos organizados e de longo prazo. E não tendes medo de fazer ouvir a vossa voz, porque, nas vossas mãos, está o futuro e também o presente. Vós estais mesmo no ponto central do presente!

Amigos, deixei-vos cinco conselhos para identificar prioridades no meio das inúmeras e persuasivas vozes que circulam. Muitas vezes na vida, como na circulação estradal, é a desordem que cria engarrafamentos e inúteis bloqueios, que fazem perder tempo e energias e alimentam a cólera. Ao contrário, faz-nos bem, mesmo na confusão, dar ao coração e à vida pontos firmes, direções estáveis, para iniciar um futuro diferente, sem se deixar levar pelos ventos do oportunismo. Queridos amigos, jovens e catequistas, agradeço-vos pelo que sois e fazeis: pelo vosso entusiasmo, a vossa luz e a vossa esperança. Quero dizer-vos uma última coisa: nunca desanimeis! Jesus confia em vós e nunca vos deixa sozinhos. A alegria que hoje tendes, guardai-a e não deixeis que se apague. Como dizia Floribert aos seus amigos, quando estavam deprimidos: «Pega no Evangelho e lê-o! Consolar-te-á, dar-te-á alegria». Juntos, saí do pessimismo, que paralisa. A República Democrática do Congo espera, das vossas mãos, um futuro diverso, porque o futuro está nas vossas mãos. O vosso país voltará a ser, graças a vós, um jardim fraterno, o coração de paz e liberdade da África! Obrigado!


Encontro de oração com os Sacerdotes, os Diáconos, os Consagrados, as Consagradas e os Seminaristas na Catedral de Nossa Senhora do Congo

Queridos irmãos sacerdotes, diáconos e seminaristas,
Amados consagrados e consagradas, boa tarde e uma santa festa!

Estou feliz por me encontrar convosco precisamente hoje, na festa da Apresentação do Senhor, dia em que rezamos de modo especial pela vida consagrada. Todos nós, como Simeão, esperamos a luz do Senhor para iluminar as trevas da nossa vida; e, mais ainda, todos desejamos viver a mesma experiência que ele teve no Templo de Jerusalém: tomar Jesus nos braços. Tomá-Lo nos braços para O podermos ter diante dos olhos e sobre o coração. Assim, colocando Jesus no centro, muda a perspetiva da nossa vida e, mesmo no meio das dificuldades e canseiras, sentimo-nos envolvidos pela sua luz, consolados pelo seu Espírito, encorajados pela sua Palavra, sustentados pelo seu amor.

Digo isto pensando nas palavras de boas-vindas pronunciadas pelo Cardeal Ambongo, que agradeço; falou de «enormes desafios» a enfrentar para viver o compromisso sacerdotal e religioso nesta terra, marcada por «condições difíceis e muitas vezes perigosas», terra de tanto sofrimento. E contudo, como recordava, há também tanta alegria com o serviço ao Evangelho e são numerosas as vocações ao sacerdócio e à vida consagrada. Aqui vemos a abundância da graça de Deus, que opera precisamente na fraqueza (cf. 2 Cor 12, 9) e vos torna capazes, juntamente com os fiéis leigos, de gerar esperança nas situações frequentemente dolorosas do vosso povo.

A certeza que nos acompanha, mesmo nas dificuldades, é-nos dada pela fidelidade de Deus. Diz Ele mediante o profeta Isaías: «Vou abrir um caminho no deserto e fazer correr rios na estepe» (43, 19). Pensei propor-vos algumas reflexões justamente a partir destas palavras de Isaías: Deus abre caminhos nos nossos desertos e nós, ministros ordenados e pessoas consagradas, somos chamados a ser sinal desta promessa e realizá-la na história do Povo santo de Deus. Mas, em concreto, a que é que somos chamados? A servir o povo como testemunhas do amor de Deus. Isaías ajuda-nos a compreender como fazê-lo.

Pela boca do profeta, o Senhor vem ter com o seu povo num momento dramático, quando os israelitas foram deportados para Babilónia e reduzidos à escravidão. Movido pela compaixão, Deus quer consolá-los. De facto, esta parte da obra de Isaías é conhecida como o «Livro da Consolação», porque o Senhor dirige ao seu povo palavras de esperança e promessas de salvação. Começa por recordar o vínculo de amor que O une ao seu povo: «Nada temas, porque Eu te resgatei, e te chamei pelo teu nome; tu és Meu. Se tiveres de atravessar as águas, estarei contigo, e os rios não te submergirão. Se caminhares pelo fogo, não te queimarás, e as chamas não te consumirão» (43, 1-2). Assim o Senhor revela-Se como Deus da compaixão e garante que nunca nos deixará sozinhos, que estará sempre ao nosso lado como refúgio e força nas dificuldades. Deus é compassivo. Os três nomes de Deus, os três traços típicos de Deus são misericórdia, compaixão e ternura. Pois tudo isto faz a proximidade de Deus: um Deus próximo, compassivo e terno.

Queridos sacerdotes e diáconos, consagradas e consagrados, seminaristas: por vosso intermédio, também hoje o Senhor quer ungir o seu povo com o óleo da consolação e da esperança. Sois chamados a fazer-vos eco desta promessa de Deus, a recordar que Ele nos plasmou e a Ele pertencemos, a animar o caminho da comunidade e a acompanhá-la na fé ao encontro d’Aquele que já caminha ao nosso lado. Deus não permite que as águas nos submerjam, nem que o fogo nos queime. Sintamo-nos portadores deste anúncio no meio das tribulações do povo. Isto é ser servidores do povo: padres, irmãs, missionários que experimentaram a alegria do encontro libertador com Jesus e oferecem-na aos outros. Lembremo-nos disto: o sacerdócio e a vida consagrada tornam-se áridos, se os vivemos para «nos servirmos» do povo em vez de «servi-lo». Não se trata de uma profissão para ganhar ou ter uma posição social, nem para colocar em situação confortável a família de origem, mas é a missão de ser sinais da presença de Cristo, do seu amor incondicional, do perdão com que nos quer reconciliar, da compaixão com que deseja cuidar dos pobres. Fomos chamados para oferecer a vida pelos irmãos e irmãs, levando-lhes Jesus, o único que sara as feridas do coração.

Para vivermos assim a nossa vocação, nunca faltarão desafios a enfrentar, nem tentações a vencer. Quero deter-me brevemente nestas três: a mediocridade espiritual, a comodidade mundana, a superficialidade.

Antes de mais nada, vencer a mediocridade espiritual. E como? A Apresentação do Senhor, designada no Oriente cristão como «festa do encontro», recorda-nos a prioridade da nossa vida: o encontro com o Senhor, especialmente na oração pessoal, porque a relação com Ele é o fundamento do nosso agir. Não esqueçamos que o segredo de tudo é a oração, porque o ministério e o apostolado não são, primariamente, obra nossa nem dependem apenas dos meios humanos. Dir-me-eis: É verdade! Mas os compromissos, as urgências pastorais, as canseiras apostólicas, o cansaço, etc. fazem-nos correr o risco de ficar sem tempo e sem energias suficientes para a oração. Quero, por isso, compartilhar alguns conselhos: em primeiro lugar, mantenhamo-nos fiéis a certos ritmos litúrgicos da oração que cadenciam o dia, desde a Missa até à Liturgia das Horas. A Celebração Eucarística diária é o coração pulsante da vida sacerdotal e religiosa. A Liturgia das Horas permite-nos rezar com a Igreja e de o fazermos de forma regular: nunca a descuidemos! E não descuremos também a Confissão: sempre precisamos de ser perdoados, para poder dar misericórdia. Outro conselho: como se sabe, não podemos limitar-nos à recitação ritual das orações, mas é preciso reservar diariamente um tempo intenso de oração, para comunicar de coração a coração com o Senhor: um momento prolongado de adoração, de meditação da Palavra, a reza do Santo Terço; um encontro íntimo com Aquele que amamos acima de todas as coisas. Além disso, quando estamos em plena atividade, podemos também recorrer à oração do coração, a breves «jaculatórias» – estas são um tesouro –, palavras de louvor, de agradecimento e de invocação que se hão de repetir ao Senhor onde quer que nos encontremos. A oração tira-nos a nós do centro, abre-nos a Deus, levanta-nos porque nos coloca nas mãos d’Ele. Cria em nós o espaço para experimentarmos a proximidade de Deus, para que a sua Palavra se torne familiar a nós e, por nosso intermédio, a todos quantos encontramos. Sem oração, não se vai longe… Por fim, para superar a mediocridade espiritual, nunca nos cansemos de invocar Nossa Senhora – é nossa Mãe – e d’Ela aprender a contemplar e seguir Jesus.

O segundo desafio é vencer a tentação da comodidade mundana, duma vida cómoda na qual seja possível organizar mais ou menos todas as coisas e continuar em frente por inércia, procurando o nosso conforto e arrastando-nos sem entusiasmo. Mas, assim, perde-se o coração da missão, que é sair do espaço do eu e encaminhar-se para os irmãos e irmãs exercendo, em nome de Deus, a arte da proximidade. Há um grande risco associado à mundanidade, especialmente num contexto de pobreza e sofrimento: aproveitar-se da função que temos para satisfazer as nossas carências e comodidades. É triste, muito triste, quando nos fechamos em nós mesmos, tornando-nos frios burocratas do espírito. Então, em vez de servir o Evangelho, preocupamo-nos em administrar as finanças e realizar qualquer negócio que nos traga vantagem. Irmãos e irmãs, isto é escandaloso, quando acontece na vida dum padre ou dum religioso, que deveria ser modelo de sobriedade e liberdade interior. Ao contrário, como é belo manter-se transparente nas intenções e livre de compromissos com o dinheiro, abraçando alegremente a pobreza evangélica e trabalhando junto dos pobres! E como é belo ser luminoso vivendo o celibato como sinal de total disponibilidade para o Reino de Deus! Não suceda que em nós se encontrem, bem enraizados, aqueles vícios que queremos extirpar nos outros e na sociedade. Por favor, vigiemos sobre a comodidade mundana.

Finalmente, o terceiro desafio é vencer a tentação da superficialidade. Se o Povo de Deus espera ser alcançado e consolado pela Palavra do Senhor, tem necessidade de padres e religiosos preparados, formados, apaixonados pelo Evangelho. Foi-nos colocado um dom nas mãos e, da nossa parte, seria presunçoso pensar que podemos viver a missão para a qual Deus nos chamou sem trabalharmos diariamente sobre nós mesmos e sem nos formarmos de forma adequada tanto na vida espiritual como na preparação teológica. As pessoas não precisam de funcionários do sagrado nem de doutores afastados do povo. Somos chamados a entrar no coração do mistério cristão, aprofundar a sua doutrina, estudar e meditar a Palavra de Deus; e, ao mesmo tempo, permanecer abertos às inquietações do nosso tempo, às questões cada vez mais complexas da nossa época, para poder compreender a vida e as exigências das pessoas, para compreender como tomá-las pela mão e acompanhá-las. Por isso, a formação do clero não é facultativa. Digo isto aos seminaristas, mas vale para todos: a formação é um caminho a percorrer sempre ao longo de toda a vida. Chama-se formação permanente: formação sempre, por toda a vida.

Os desafios de que vos falei, temos de os enfrentar se quisermos servir o povo como testemunhas do amor de Deus, porque só é eficaz o serviço se passar através do testemunho. Não esqueçais esta palavra: o testemunho. De facto, depois de pronunciar palavras de consolação, o Senhor acrescenta: «Quem dentre eles anunciou isto, trazendo aos nossos ouvidos acontecimentos antigos? (…) As minhas testemunhas sois vós» (Is 43, 9.10). Testemunhas. Para ser bons sacerdotes, diáconos, consagradas e consagrados, não bastam as palavras e as intenções: antes de tudo, é a própria vida que fala, a vida própria. Queridos irmãos e irmãs, vendo-vos, dou graças a Deus, porque sois sinais da presença de Jesus que passa pelas estradas deste país e toca a vida do povo, as feridas da sua carne. Mas continua a haver necessidade de jovens que digam «sim» ao Senhor, de outros sacerdotes e religiosos que deixem, com a própria vida, transparecer a sua beleza.

Nos vossos testemunhos, lembrastes-me como é difícil viver a missão numa terra tão rica de belezas naturais e recursos, mas ferida pela exploração, a corrupção, a violência e a injustiça. Mas falastes também da parábola do bom samaritano: é Jesus que passa ao longo das nossas estradas, especialmente através da sua Igreja, detém-Se e cuida das feridas dos oprimidos. Caríssimos, este é precisamente o ministério a que sois chamados: mostrar proximidade e consolação, como uma luz sempre acesa no meio de tanta escuridão. Aprendamos do Senhor, que está próximo, sempre. E, para ser irmãos e irmãs de todos, começai por sê-lo entre vós: testemunhas de fraternidade, nunca em guerra; testemunhas de paz, aprendendo a superar até as particularidades das culturas e das proveniências étnicas, porque, como afirmou Bento XVI aos sacerdotes africanos, «o vosso testemunho de vida pacífica, ultrapassando fronteiras tribais e raciais, pode tocar os corações» (Exort. ap. pós-sinodal Africæ munus, 108).

Como diz um provérbio, «o vento não quebra o que sabe curvar-se». A história de muitos povos deste continente foi, infelizmente, vergada e chagada por feridas e violências e, por isso, se há um desejo que sobe do coração, é não ter de o fazer mais, não mais ter de submeter-se à prepotência do mais forte, não mais dever curvar a cabeça sob o jugo da injustiça. Mas podemos acolher as palavras do provérbio principalmente em sentido positivo: há um curvar-se que não é sinónimo de fraqueza, de ser cobarde, mas de fortaleza; então significa ser flexível, superando a rigidez; significa cultivar uma humanidade dócil, que não se feche no ódio e no rancor; significa estar disponível para se deixar mudar, sem se fechar nas próprias ideias e posições. Se nos curvarmos humildemente diante de Deus, Ele faz-nos semelhantes a Si, obreiros de misericórdia. Quando permanecemos dóceis nas mãos de Deus, Ele molda-nos e faz de nós pessoas reconciliadas, que sabem abrir-se e dialogar, acolher e perdoar, lançar rios de paz nas estepes áridas da violência. Deste modo, quando soprarem impetuosos os ventos dos conflitos e das divisões, tais pessoas não podem ser quebradas, porque estão repletas do amor de Deus. Sede vós também assim: dóceis ao Deus da misericórdia, nunca quebrados pelos ventos das divisões.

Irmãos e irmãs, de coração vos agradeço pelo que sois e fazeis, agradeço pelo testemunho que dais à Igreja e ao mundo. Não desanimeis; há necessidade de vós! Sois preciosos, importantes: vo-lo digo em nome da Igreja inteira. Espero que sejais sempre canais da consolação do Senhor e testemunhas jubilosas do Evangelho, profecia de paz nas espirais da violência, discípulos do Amor prontos a cuidar das feridas dos pobres e atribulados. Muito obrigado, irmãs e irmãos! Obrigado mais uma vez pelo vosso serviço e zelo pastoral. Abençoo-vos e levo-vos no coração. E vós, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Obrigado!


Sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Encontro com os Bispos na sede da CENCO

Amados irmãos Bispos, bom dia!

Estou feliz por poder encontrar-vos e, de coração, agradeço a calorosa receção. Obrigado a D. Utembi Tapa pela saudação que me dirigiu e por vos ter dado voz com as suas palavras: agradeço-vos a coragem com que anunciais a consolação do Senhor, caminhando no meio do povo, partilhando as suas canseiras e esperanças.

Foi bom para mim passar estes dias na vossa terra, que representa, com a sua grande floresta, o «coração verde» da África, um pulmão para o mundo inteiro. A importância deste património ecológico recorda-nos que somos chamados a salvaguardar a beleza da criação e a defendê-la das feridas causadas pelo egoísmo rapace. Mas esta imensa extensão verde que é a vossa floresta constitui também uma imagem que fala à nossa vida cristã: como Igreja, temos necessidade de respirar o ar puro do Evangelho, expulsar o ar poluído da mundanidade, guardar o coração jovem da fé. É assim que imagino a Igreja africana e vejo esta Igreja congolesa: uma Igreja jovem, dinâmica, alegre, animada pelo anseio missionário, pelo anúncio de que Deus nos ama e que Jesus é o Senhor. A vossa é uma Igreja presente na história concreta deste povo, radicada de forma capilar na realidade, protagonista de caridade; uma comunidade capaz de atrair e contagiar com o seu entusiasmo e por isso, à semelhança das vossas florestas, com tanto «oxigénio»: Obrigado por serdes um pulmão que dá fôlego à Igreja universal!

Não é bonito começar um parágrafo com a palavra «purtroppo (infelizmente)», mas aqui tenho de o fazer. Infelizmente, a comunidade cristã desta terra – bem o sei – apresenta também outra face. De facto, o vosso rosto jovem, luminoso e belo aparece sulcado pela tristeza e o cansaço, marcado às vezes pelo medo e o desânimo. É o rosto duma Igreja que sofre pelo seu povo, é um coração no qual palpita, com trepidação, a vida das pessoas com as suas alegrias e tribulações. É uma Igreja sinal visível de Cristo que ainda hoje é rejeitado, condenado e desprezado nos inúmeros crucificados do mundo, e chora as nossas próprias lágrimas. É uma Igreja que, como Jesus, também quer enxugar as lágrimas do povo, empenhando-se em assumir as feridas materiais e espirituais das pessoas e fazendo correr sobre elas a água viva e salutar do lado de Cristo.

Convosco, irmãos, vejo Jesus sofredor na história deste povo, povo crucificado, povo oprimido, transtornado por uma violência que não poupa ninguém, marcado pela dor inocente, constrangido a conviver com as águas turvas da corrupção e da injustiça, que poluem a sociedade, e a padecer em tantos dos seus filhos a pobreza. Ao mesmo tempo, porém, vejo um povo que não perdeu a esperança, que abraça com entusiasmo a fé e imita os seus Pastores, que sabe voltar para o Senhor e entregar-se nas suas mãos, para que a ansiada paz, sufocada pela exploração, por egoísmos de parte, pelos venenos dos conflitos e das verdades manipuladas, possa finalmente chegar como uma dádiva do Alto.

E surge a pergunta: Como exercer o ministério nesta situação? Quando pensava em vós, Pastores do Povo santo de Deus, veio-me à mente a história de Jeremias, um profeta chamado a viver a sua missão num momento dramático da história de Israel, por entre injustiças, abominações e sofrimentos. Passou a vida a anunciar que Deus nunca abandona o seu povo e dá continuidade aos seus desígnios de paz mesmo em situações que parecem perdidas e irrecuperáveis. Mas, este anúncio consolador de fé, viveu-o Jeremias pessoalmente: foi ele o primeiro a experimentar a proximidade de Deus. Só assim pôde levar aos outros uma corajosa profecia de esperança. Também o vosso ministério episcopal vive entre estas duas dimensões, de que vos quero falar: a proximidade de Deus e a profecia para o povo.

Antes de mais nada gostava de vos dizer: Deixai-vos tocar e consolar pela proximidade de Deus. Ele está próximo de nós. A primeira palavra que o Senhor dirige a Jeremias é esta: «Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia» (Jer 1, 5). É uma declaração de amor, que Deus grava no coração de cada um de nós e ninguém a pode apagar, tornando-se fonte de conforto no meio das tempestades da vida. Para nós, que recebemos a vocação de ser Pastores do Povo de Deus, é importante basear-nos nesta proximidade do Senhor, «estruturar-nos na oração», passando horas diante d’Ele. Só assim se aproxima do Bom Pastor o povo que nos está confiado e só assim nos tornamos verdadeiramente Pastores, porque nós, sem Ele, nada podemos fazer (cf. Jo 15, 5). Poderemos até ser empresários, «professores», mas não seguimos a vocação do Senhor. Sem Ele nada podemos fazer. Oxalá não suceda imaginar-nos autossuficientes e, muito menos, ver no episcopado a possibilidade de escalar posições sociais e exercer o poder (como é feio este espírito de «carreirismo»)! E sobretudo que não entre o espírito da mundanidade, que nos faz ver o ministério segundo os critérios remuneradores da própria conta bancária, que nos torna frios e distantes na gestão daquilo que nos está confiado, que leva servir-se da função em vez de servir os outros, e a deixar de cuidar da relação indispensável que é a relação humilde e quotidiana da oração. Não esqueçamos que o pior que pode acontecer à Igreja é a mundanidade; é o pior. Sempre me impressionou aquele final do livro do cardeal Henry de Lubac sobre a Igreja, concretamente as últimas três, quatro páginas, onde ele diz o seguinte: a mundanidade espiritual é o pior que pode acontecer, pior ainda que o período dos Papas mundanos e vivendo em concubinato. É pior. E a mundanidade está sempre à espreita. Estejamos atentos!

Amados irmãos Bispos, cultivemos a proximidade com o Senhor para ser suas testemunhas credíveis e porta-vozes do seu amor junto do povo. É por nosso intermédio que Ele quer ungi-lo com o óleo da consolação e da esperança! Sois a voz com que Deus quer dizer aos congoleses: sois «um povo consagrado ao Senhor, vosso Deus» (Dt 7, 6). O anúncio do Evangelho, a animação da vida pastoral, a liderança do povo não se podem resolver com princípios alheios à realidade da vida diária, mas devem tocar as feridas e comunicar a proximidade divina, para que as pessoas descubram a sua dignidade de filhos de Deus e aprendam a caminhar de cabeça erguida, sem nunca a abaixar perante as humilhações e a opressão. Por vosso intermédio, este povo tem a graça de ouvir, dirigidas a si, palavras semelhantes às que o Senhor deu a Jeremias: És um povo abençoado; pensei em ti, conheci-te, amei-te, já antes de te formar no ventre materno! Se cultivarmos a proximidade com Deus, sentir-nos-emos impelidos para o povo e nunca deixaremos de sentir compaixão por quantos nos estão confiados. Esta atitude de compaixão não é mero sentimento, mas um sofrer com (patire cum). Animados e fortalecidos pelo Senhor, tornamo-nos, por nossa vez, instrumentos de consolação e reconciliação para os outros, para tratar as chagas de quem sofre, aliviar o sofrimento de quem chora, exaltar os pobres, libertar as pessoas de tantas formas de escravidão e opressão. Por outras palavras, a proximidade a Deus torna-nos profetas para o povo, capazes de semear a Palavra que salva na história ferida da própria terra.

E para penetrar neste segundo ponto – a profecia para o povo –, fixemos novamente a experiência de Jeremias. Depois de ter recebido a Palavra amorosa e consoladora de Deus, ele é chamado a ser «profeta das nações» (cf. Jer 1, 5), enviado a levar a luz onde há escuridão, a dar testemunho num contexto de violência e corrupção. E Jeremias, que come a Palavra do Senhor, tornando-se para ele gozo e alegria do coração (cf. 15, 16), confessa que esta mesma Palavra gera nele uma inquietação irreprimível e leva-o a encontrar os outros para serem tocados pela presença de Deus. «No meu coração – escreve ele –, a sua palavra era um fogo devorador, encerrado nos meus ossos. Esforçava-me por contê-lo, mas não podia» (20, 9). Não podemos guardar só para nós a Palavra de Deus, não podemos conter a sua força: ela é um fogo que queima a nossa apatia e acende em nós o desejo de iluminar quem está na escuridão. A Palavra de Deus é um fogo que abrasa dentro e nos impele a sair para fora! Eis a nossa identidade episcopal: abrasados pela Palavra de Deus, em saída para o Povo de Deus, com zelo apostólico!

Mas – podemos perguntar-nos – em que consiste este anúncio profético da Palavra, este ardor? Ao profeta Jeremias, o Senhor diz: «Eis que ponho as minhas palavras na tua boca; a partir de hoje, dou-te poder sobre os povos e sobre os reinos, para arrancares e demolires, para arruinares e destruíres, para edificares e plantares» (1, 9-10). São verbos fortes: primeiro, arrancar e demolir para poder, enfim, edificar e plantar. Trata-se de colaborar para uma história nova, que Deus deseja construir no meio dum mundo de perversão e injustiça. De igual modo também vós sois chamados a fazer ouvir a vossa voz profética, para que as consciências se sintam interpeladas e possa cada qual tornar-se protagonista e responsável por um futuro diferente. É necessário, pois, arrancar as plantas venenosas do ódio e do egoísmo, do rancor e da violência; demolir os altares consagrados aos ídolos do dinheiro e da corrupção; edificar uma convivência baseada na justiça, na verdade e na paz; e, finalmente, plantar sementes de renascimento, para que o Congo de amanhã seja verdadeiramente aquele que o Senhor sonha: uma terra abençoada e feliz, nunca mais violentada, oprimida nem ensanguentada.

Mas atenção! Não se trata duma ação política. A profecia cristã encarna-se em tantas ações políticas e sociais, mas a tarefa dos Bispos, e dos pastores em geral, não é esta. É a do anúncio da Palavra para acordar as consciências, para denunciar o mal, para alentar os angustiados e desesperados. «Consolai, consolai o meu povo»: esta frase aparece uma vez e outra; é um convite do Senhor para se consolar o povo: «consolai, consolai o meu povo». É um anúncio feito não só de palavras, mas também de proximidade e testemunho: proximidade em primeiro lugar aos presbíteros (os padres são o primeiro próximo dum bispo), escuta dos agentes pastorais, encorajamento no espírito sinodal para se trabalhar juntos. E testemunho, porque os Pastores devem ser os mais credíveis em tudo, em particular no cultivar a comunhão, na vida moral e na administração dos bens. Neste sentido, é essencial saber construir harmonia, sem se erguer num pedestal, sem asperezas, mas dando bom exemplo no apoio e perdão recíprocos, trabalhando juntos como modelos de fraternidade, paz e simplicidade evangélica. Oxalá nunca suceda que, enquanto o povo padece a fome, se possa dizer de vós: «eles sem se importarem, foram um para o seu campo, outro para o seu negócio» (cf. Mt 22, 5). Os negócios, por favor, deixemo-los fora da vinha do Senhor! Um pastor não pode ser um homem de negócios; não pode! Sejamos Pastores e servos do povo de Deus, não administradores de coisas nem homens de negócios, mas pastores! A administração do bispo deve ser a do pastor: à frente do rebanho, no meio do rebanho, atrás do rebanho. À frente do rebanho, para indicar o caminho; no meio do rebanho, para sentir o odor do rebanho e não o perder; atrás do rebanho, para ajudar aqueles que andam mais devagar, e também para deixar por um pouco sozinho o rebanho e ir ver onde encontra pastagens. O pastor deve mover-se nestas três posições.

Amados irmãos Bispos, partilhei convosco o que sentia no coração: cultivar a proximidade com o Senhor para ser sinais proféticos da sua compaixão pelo povo. Peço-vos para não transcurardes o diálogo com Deus e não deixardes que o fogo da profecia se apague por cálculos ou posições ambíguas com o poder, nem por uma vida cómoda e rotineira. À vista do povo que sofre e da injustiça, o Evangelho pede que levantemos a voz. Quando levantamos a voz segundo Deus, arriscamos. Fê-lo um vosso irmão, o servo de Deus D. Christophe Munzihirwa, pastor corajoso e voz profética, que protegeu o seu povo com a oferta da própria vida. No dia antes de morrer, enviou uma mensagem a todos dizendo: «Nestes dias, que mais podemos ainda fazer? Permaneçamos firmes na fé. Tenhamos confiança que Deus não nos abandonará e que de qualquer lado há de surgir para nós uma pequena luz de esperança. Deus não nos abandonará, se nos empenharmos por respeitar a vida dos nossos vizinhos, independentemente da etnia a que pertençam». No dia seguinte, foi morto numa praça da cidade, mas a sua semente, plantada nesta terra, juntamente com a de muitos outros, dará fruto. É bom recordar, com gratidão, grandes Pastores que marcaram a história do vosso país e da vossa Igreja, de quem vos evangelizou e precedeu na fé. Irmãos, são as vossas raízes, que vos robustecem no ardor evangélico. Penso no bem que recebi conhecendo o Cardeal Laurent Monsengwo Pasinya.

Queridos amigos, não tenhais medo de ser profetas de esperança para o povo, vozes unânimes da consolação do Senhor, testemunhas e arautos jubilosos do Evangelho, apóstolos de justiça, samaritanos de solidariedade: testemunhas de misericórdia e de reconciliação no meio de violências desencadeadas não só pela exploração dos recursos e dos conflitos étnicos e tribais, mas também e sobretudo pela força obscura do maligno, inimigo de Deus e do homem. Mas nunca desanimeis! O Crucificado ressuscitou, Jesus vence, aliás já venceu o mundo (cf. Jo 16, 33) e deseja brilhar em vós, na vossa obra preciosa, na vossa fecunda semente de paz. Irmãos, quero agradecer-vos pelo vosso serviço, o vosso zelo pastoral, o vosso testemunho.

E, chegados ao fim desta viagem, quero exprimir-vos todo o meu reconhecimento a vós e a quantos aqui a prepararam. Tivestes a paciência de esperar um ano, sois estupendos! Obrigado por isso. Precisastes de trabalhar duas vezes, porque, na primeira vez, a visita foi anulada, mas sei que sois misericordiosos com o Papa. Sinceramente, obrigado! No próximo mês de junho, celebrareis o Congresso Eucarístico Nacional em Lubumbashi: Jesus está realmente presente e operante na Eucaristia; lá reconcilia e cura, consola e une, ilumina e transforma; lá inspira, apoia e torna eficaz o vosso ministério. Que a presença de Jesus, Pastor manso e humilde de coração, vencedor do mal e da morte, transforme este grande país e seja sempre a vossa alegria e a vossa esperança. De coração vos abençoo.

Quero acrescentar apenas uma coisa! Disse-vos: «sede misericordiosos». A misericórdia. Perdoar sempre. Quando um fiel vem confessar-se, vem pedir perdão, vem pedir uma carícia ao Pai. Entretanto encontra-nos a nós, com dedo acusador: «Quantas vezes? E como o fizeste?…». Assim não. Perdoar. Sempre. «Sim, mas não sei… porque o Código diz…». O Código, devemos observá-lo, porque é importante; mas o coração do pastor vai mais além! Arriscai; pelo perdão, arriscai. Sempre. Perdoai sempre, no Sacramento da Reconciliação. E assim semeareis perdão para toda a sociedade.

De coração vos abençoo. E, por favor, continuai a rezar por mim, porque é um pouco difícil este serviço! Mas confio em vós. Obrigado.


Encontro com as Autoridades, com a Sociedade Civil e com o Corpo Diplomático no Jardim do Palácio Presidencial

Senhor Presidente da República,
Senhores Vice-Presidentes,
Ilustres Membros do Governo e do Corpo Diplomático,
Distintas Autoridades religiosas,
Insignes Representantes da sociedade civil e do mundo da cultura,
Senhoras e Senhores!

Obrigado, Senhor Presidente, pelas suas palavras! Sinto-me feliz por estar nesta terra que trago no coração. Agradeço-lhe, Senhor Presidente, o acolhimento que me reservou. Saúdo cordialmente cada um dos presentes e, em vós, a todas as mulheres e homens que povoam este jovem e querido país. Venho como peregrino de reconciliação, com o sonho de vos acompanhar no vosso caminho de paz: caminho tortuoso, mas inadiável. Não cheguei aqui sozinho, porque na paz, como na vida, caminha-se juntos; por isso eis-me aqui acompanhado por dois irmãos: o Arcebispo de Cantuária e o Moderador da Assembleia Geral da Igreja da Escócia, a quem agradeço tudo o que nos dirão. Juntos, apresentamo-nos em nome de Jesus Cristo, Príncipe da Paz, estendendo as mãos a cada um de vós e a este povo.

De facto, empreendemos esta peregrinação ecuménica de paz depois de ter escutado o clamor dum povo inteiro que, com grande dignidade, chora pela violência que padece, pela perene falta de segurança, pela pobreza que o aflige e pelos desastres naturais que assolam. Estes anos de guerras e conflitos parecem não ter fim, e ainda recentemente – até mesmo ontem – se verificaram duros confrontos, enquanto os processos de reconciliação parecem paralisados e as promessas de paz permanecem por cumprir. Que não seja em vão este sofrimento extenuante; que a paciência e os sacrifícios do povo sul-sudanês, desta gente jovem, humilde e corajosa, interpelem a todos e, como sementes que, enterradas, dão vida à planta, vejam desabrochar rebentos de paz que produzam fruto. Irmãos e irmãs, é a hora da paz!

Frutos e vegetação abundam aqui, graças ao grande rio que atravessa o país. Aquilo que o antigo historiador Heródoto dizia do Egito – é um «dom do Nilo» – vale também para o Sudão do Sul. Verdadeiramente esta, como aqui se diz, é a «terra da grande abundância». Quero, pois, deixar-me levar pela imagem do grande rio que atravessa este país, recente mas com uma história antiga. Ao longo dos séculos, os exploradores penetraram neste território onde nos encontramos, para subir o Nilo Branco à procura das nascentes do rio mais comprido do mundo. E é precisamente a partir da busca das fontes da convivência que pretendo começar o meu percurso convosco. Com efeito esta terra, que abunda de tantos bens quer no subsolo quer sobretudo nos corações e nas mentes dos seus habitantes, hoje precisa de ser novamente dessedentada por fontes frescas e vitais.

Distintas Autoridades, vós sois estas fontes, as fontes que irrigam a convivência geral, os pais e as mães deste país-menino. Vós sois chamados a regenerar a vida social, como fontes transparentes de prosperidade e de paz, pois é disto que necessitam os filhos do Sudão do Sul: necessitam de pais, não patrões; de passos firmes de desenvolvimento, não quedas contínuas... Os anos que se seguiram ao nascimento do país, marcados por uma meninice ferida, deem lugar a um crescimento pacífico: é hora! Ilustres Autoridades, os vossos «filhos» e a própria história hão de recordar-vos pelo bem que tiverdes feito a esta população, que vos foi confiada para a servirdes. As gerações futuras honrarão ou apagarão a memória dos vossos nomes com base naquilo que agora fizerdes, pois, assim como o rio deixa as nascentes para começar o seu curso, assim também o curso da história deixará para trás os inimigos da paz e nobilitará quem trabalha pela paz. De facto, como ensina a Escritura, «o homem de paz terá descendência» (cf. Sal 37, 37).

Ao contrário, a violência faz retroceder o curso da história. O mesmo Heródoto destacava os transtornos geracionais, observando como, na guerra, já não são os filhos que sepultam os pais, mas os pais que enterram os filhos (cf. Storie, I, 87). Para que esta terra não se reduza a um cemitério, mas volte a ser um jardim florido, peço-vos, de todo o coração, que acolhais uma palavra simples: não minha, mas de Cristo. E pronunciou-a precisamente num jardim – no Getsémani –quando, à vista de um dos seus discípulos que desembainhara a espada, disse: «Basta!» (Lc 22, 51). Senhor Presidente, Senhores Vice-Presidentes, em nome de Deus, do Deus a Quem rezamos juntos em Roma, do Deus manso e humilde de coração (cf. Mt 11, 29) em Quem tanta gente deste querido país acredita, é a hora de dizer basta… sem «se» nem «mas»: basta de sangue derramado, basta de conflitos, basta de violências e recíprocas acusações sobre quem as comete, basta de deixar à mingua de paz este povo dela sedento. Basta de destruição; é a hora de construir! Deixe-se para trás o tempo da guerra e surja um tempo de paz! A propósito, Senhor Presidente, trago no coração aquele colóquio noturno que tivemos, há alguns anos, no Uganda: palpava-se a sua vontade de paz... Prossigamos com isso!

Voltemos às nascentes do rio, à água que simboliza a vida. Nas fontes deste país, há outra palavra que designa o rumo empreendido pelo povo sul-sudanês em 9 de julho de 2011: República. Mas que significa ser uma res publica? Significa reconhecer-se como realidade pública, isto é, afirmar que o Estado é de todos; e consequentemente quem, dentro dele, detém maiores responsabilidades, presidindo-o ou governando-o, não pode deixar de pôr-se ao serviço do bem comum. Esta é a finalidade do poder: servir a comunidade. A tentação que está sempre à espreita é, pelo contrário, servir-se dele para os próprios interesses. Por isso não basta chamar-se República; é preciso sê-lo, a começar pelos bens primários: os abundantes recursos com que Deus abençoou esta terra não sejam reservados a poucos, mas regalia de todos; e, aos planos de retoma económica, correspondam projetos para uma distribuição equitativa das riquezas.

Para a vida duma República, é fundamental o desenvolvimento democrático. Este defende uma benéfica distinção dos poderes, de modo que, por exemplo, quem administra a justiça possa exercê-la sem condicionamentos por parte de quem legisla ou governa. Além disso, a democracia pressupõe o respeito dos direitos humanos, e em particular a liberdade de exprimir as próprias ideias, devendo aqueles ser salvaguardados pela lei e sua aplicação. De facto, é preciso lembrar-nos que, sem justiça, não há paz (cf. S. João Paulo II, Mensagem para a celebração do XXXV Dia Mundial da Paz, 01/I/2002), mas, também sem liberdade, não há justiça. Por isso há de ser dada a cada cidadã e cidadão a possibilidade de dispor do dom único e irrepetível que é a existência, com os meios adequados para a realizar. Como escreveu o Papa João XXIII, «o ser humano tem direito à existência, à integridade física, aos recursos correspondentes a um digno padrão de vida» (Carta Enc. Pacem in terris, 11).

O rio Nilo deixa as nascentes e, depois de passar por algumas encostas íngremes que criam cascatas e rápidos, entra na planície sul-sudanesa, bem perto de Juba, tornando-se navegável para adiante se embrenhar em zonas mais pantanosas. De maneira análoga almejo que o trajeto de paz da República não proceda com altos e baixos, mas, a partir desta capital, possa avançar sem cair empantanado na inércia. Amigos, é tempo de passar das palavras aos atos. É tempo de virar página; é o tempo do empenho em prol duma transformação urgente e necessária. O processo de paz e reconciliação exige um novo salto. Deem-se as mãos para levar a bom termo o Acordo de paz, bem como o seu Roteiro. Num mundo marcado por divisões e conflitos, este país acolhe uma peregrinação ecuménica de paz, que constitui uma raridade; que isto represente uma mudança de ritmo, a ocasião para o Sudão do Sul recomeçar a navegar em águas tranquilas, retomando o diálogo sem fingimentos nem oportunismos. Seja para todos uma ocasião para relançar a esperança: não só para o Governo, mas para todos. Possa cada cidadão compreender que já não é tempo de se deixar levar pelas águas insalubres do ódio, do tribalismo, do regionalismo e das diferenças étnicas. Irmãos e irmãs, é tempo de navegar juntos rumo ao futuro! Sim, «juntos»… Não se deve esquecer esta palavra: «juntos»!

O percurso do grande rio pode ainda ajudar-nos, sugerindo a modalidade. Avançando ele, ao chegar ao lago No une-se a outro rio, dando vida ao chamado Nilo Branco. A claridade límpida das águas brota do encontro. Este é o caminho, irmãos e irmãs: respeitar-se, conhecer-se, dialogar. Com efeito, se por trás de cada violência há ira e rancor, e por trás de cada ira e rancor há a memória não curada de feridas, humilhações e injustiças, a única direção a tomar para se sair disso só pode ser o encontro, a cultura do encontro: acolher os outros como irmãos e dar-lhes espaço, inclusive sabendo recuar alguns passos. Esta atitude, essencial para os processos de paz, é indispensável também para o desenvolvimento coeso da sociedade. E passar da incivilidade do conflito à civilidade do encontro decisivo é o papel que podem e querem desempenhar os jovens. Por conseguinte, sejam-lhes assegurados espaços livres de encontro para se juntarem e discutirem; e possam tomar nas suas mãos, sem medo, o futuro que lhes pertence. Sejam mais envolvidas mesmo nos processos políticos e decisórios também as mulheres, as mães que sabem como se gera e guarda a vida. Haja respeito por elas, porque quem comete violência contra uma mulher, comete-a contra Deus, que encarnou de uma mulher.

Cristo, o Verbo encarnado, ensinou-nos que, quanto mais pequenos nos fazemos dando espaço aos outros e acolhendo todo o próximo como irmão, tanto maiores nos tornamos aos olhos do Senhor. A jovem história deste país, dilacerado por conflitos étnicos, tem necessidade de voltar a encontrar a mística do encontro, a graça do conjunto. Precisa de olhar mais além dos grupos e das diferenças, para caminhar como um único povo, para o qual, à semelhança do Nilo, os vários «afluentes» trazem riqueza. Foi precisamente através do rio que os primeiros missionários, há mais de um século, desembarcaram nestas praias; à sua presença, veio juntar-se ao longo dos anos a de muitos agentes humanitários: a todos, quero agradecer pela preciosa obra que realizam. Mas penso também nos missionários que, infelizmente, encontram a morte enquanto semeiam a vida. Não os esqueçamos! E não esqueçamos também de garantir a eles e aos agentes humanitários a devida segurança e, às suas benfazejas atividades, a ajuda necessária, para que continue a singrar o rio do bem.

Todavia, às vezes um grande rio pode transbordar e provocar desastres. Nesta terra, infelizmente, experimentaram-no as numerosas vítimas de inundações, às quais expresso a minha solidariedade, fazendo apelo para que não lhes deixem faltar a devida ajuda. As calamidades naturais falam duma criação ferida e arruinada que, de fonte de vida, pode converter-se em ameaça de morte. Precisamos de cuidar dela, com um olhar clarividente a pensar nas gerações futuras. Penso, em particular, na necessidade de combater a desflorestação causada pela ganância do lucro.

Para se prevenir os transbordamentos dum rio, é necessário manter limpo o seu leito. Metáfora aparte, a limpeza de que precisa o curso da vida social é o combate à corrupção. Iníquos circuitos de dinheiro, enredos ocultos para se enriquecer, negócios clientelares, falta de transparência: este é o fundal poluído da sociedade humana, que faz faltar os recursos necessários àquilo para que mais servem, a começar pelo combate à pobreza, que constitui o terreno fértil onde se enraízam ódios, divisões e violência. A urgência dum país civilizado é cuidar dos seus cidadãos, particularmente dos mais frágeis e desfavorecidos. Penso sobretudo nos milhões de deslocados que aqui vivem: quantos tiveram de abandonar a sua casa encontrando-se relegados à margem da vida na sequência de confrontos e deslocações forçadas!

Para que as águas de vida não se transformem em perigo de morte, é fundamental dotar um rio de diques apropriados. O mesmo vale para a convivência humana. Em primeiro lugar há que impedir a chegada de armas que, não obstante todas as proibições, continuam a surgir em muitos países da área, incluindo o Sudão do Sul: aqui há necessidade certamente de muitas coisas, mas não de mais instrumentos de morte. Outros diques são imprescindíveis para garantir o curso da vida social: refiro-me ao desenvolvimento de políticas de saúde adequadas, à necessidade de infraestruturas vitais e, de modo especial, ao papel primário do alfabetismo e da instrução, única via para que os filhos desta terra tomem nas próprias mãos o seu futuro. Eles, como todas as crianças deste continente e do mundo, têm o direito de crescer tendo na mão cadernos e brinquedos, não ferramentas de trabalho e armas.

Por fim, o Nilo Branco deixa o Sudão do Sul, atravessa outros Estados, encontra-se com o Nilo Azul e chega ao mar: o rio não conhece fronteiras, mas une territórios. De modo semelhante, para se alcançar um desenvolvimento adequado, é essencial, hoje mais do que nunca, cultivar relações positivas com outros países, a começar pelos vizinhos. Penso também no precioso contributo prestado pela Comunidade Internacional a este país: exprimo-lhe reconhecimento pelo empenho tendente a favorecer a sua reconciliação e desenvolvimento. Estou convencido de que, para se trazer contribuições proveitosas, é indispensável uma efetiva compreensão das dinâmicas e dos problemas sociais. Não basta observá-los e denunciá-los de fora; é preciso envolver-se com paciência e determinação, e em geral resistir à tentação de impor modelos pré-estabelecidos, mas estranhos à realidade local. Como disse São João Paulo II há trinta anos, no Sudão, «devem-se encontrar soluções africanas para os problemas africanos» (Discurso na cerimónia de acolhimento, Cartum, 10/II/1993).

Senhor Presidente, distintas Autoridades, seguindo o percurso do Nilo, quis adentrar-me no caminho deste país tão jovem e tão querido. Sei que algumas minhas expressões podem ter sido ousadas e diretas, mas peço-vos para acreditardes que isto nasce da estima e preocupação com que acompanho as vossas vicissitudes, juntamente com os irmãos que me acompanharam até aqui, peregrino de paz. Desejamos sinceramente oferecer a nossa oração e o nosso apoio para que o Sudão do Sul se reconcilie e mude de rumo, a fim de que o seu curso vital deixe de ser impedido pelas cheias da violência, obstaculizado pelos pântanos da corrupção e malogrado pelo transbordamento da pobreza. O Senhor do Céu, que ama esta terra, conceda-lhe um tempo novo de paz e prosperidade. Deus abençoe a República do Sudão do Sul. Obrigado!


Sábado, 4 de fevereiro de 2023

Encontro com os Bispos, os Sacerdotes, os Diáconos, os Consagrados, as Consagradas e os Seminaristas na Catedral de Santa Teresa

Amados irmãos bispos, presbíteros e diáconos,
Prezados consagrados e consagradas,
Queridos seminaristas, noviças, noviços e aspirantes,
bom dia a todos!

Há já bastante tempo que cultivava o desejo de vos encontrar; por isso quero agradecer ao Senhor o dia de hoje. Estou grato a D. Tombe Trille pela sua saudação e, a todos vós, pela presença e palavras de boas-vindas. Alguns tiveram de fazer dias de estrada para estar hoje aqui! Conservo gravados no coração alguns momentos vividos antes desta visita: a celebração em São Pedro em 2017, durante a qual elevamos súplicas a Deus pelo dom da paz; e o retiro espiritual de 2019 com os líderes políticos, convidados para que, através da oração, cimentassem no coração a firme decisão de buscar a reconciliação e a fraternidade no país. A primeira coisa de que temos necessidade é acolher Jesus, nossa paz e nossa esperança.

Para o meu discurso de ontem, fui buscar inspiração ao curso das águas do Nilo, que atravessa o vosso país como se fosse a sua espinha dorsal. Na Bíblia, associa-se muitas vezes com a água a ação de Deus criador, a compaixão com que sacia a nossa sede quando se anda errante no deserto, a misericórdia com que nos purifica quando caímos nas paludes do pecado; no Batismo, Ele santificou-nos «com uma água que regenera e renova no Espírito Santo» (Tt 3, 5). Agora quero olhar de novo para as águas do Nilo mas numa perspetiva bíblica. Por um lado, no leito deste curso de água, vertem-se as lágrimas dum povo imerso no sofrimento e na dor, torturado pela violência; um povo que pode rezar como o salmista: «Junto aos rios de Babilónia nos sentamos a chorar» (Sal 137, 1). De facto, as águas do grande rio recolhem os dolorosos gemidos das vossas comunidades, recolhem o grito de dor de tantas vidas destroçadas, recolhem o drama dum povo em fuga, a aflição do coração das mulheres e o medo gravado nos olhos das crianças. Vê-se o medo nos olhos das crianças. Mas, por outro lado, as águas do grande rio fazem-nos lembrar a história de Moisés e, por isso, são sinal de libertação e salvação: na verdade, Moisés foi salvo daquelas águas e, conduzindo o seu povo pelo meio do Mar Vermelho, tornou-se instrumento de libertação, ícone do socorro de Deus que vê a aflição dos seus filhos, ouve o seu clamor e desce para os libertar (cf. Ex 3, 7). Tendo, pois, diante dos olhos a história de Moisés, que guiou o Povo de Deus através do deserto, perguntemo-nos que significa ser ministros de Deus numa história permeada pela guerra, o ódio, a violência e a pobreza. Como exercer o ministério nesta terra, ao longo das margens dum rio banhado por tanto sangue inocente, enquanto nos aparecem sulcados por lágrimas de amargura os rostos das pessoas a nós confiadas? Eis a questão. E quando falo de ministério, penso nele em sentido amplo: ministério presbiteral, diaconal e ministério catequético, de ensino, que fazem tantos consagrados, consagradas e leigos.

Tentando responder à questão, quero deter-me sobre duas atitudes de Moisés: a docilidade e a intercessão. Considero que estas duas coisas tocam a nossa vida, aqui.

A primeira coisa que impressiona na história de Moisés é a sua docilidade à iniciativa de Deus. Não pensemos, porém, que foi sempre assim. Num primeiro tempo, tentara combater, sozinho, a injustiça e a opressão. Salvo das águas do Nilo pela filha do faraó, mais tarde descobriu a própria identidade deixando-se tocar pelo sofrimento e a humilhação dos seus irmãos: um dia chegou ao ponto de decidir fazer justiça sozinho, matando um egípcio que estava a maltratar um judeu. E, por causa deste episódio, teve que fugir permanecendo muitos anos no deserto. Lá experimentou uma espécie de deserto interior: pensara em enfrentar a injustiça unicamente com as suas forças e a consequência foi encontrar-se agora fugitivo, tendo que se esconder, vivendo na solidão, experimentando a amarga sensação do fracasso. Pergunto-me: qual foi o erro de Moisés? Pensar que era ele o centro, contando apenas com as suas forças. Deste modo, porém, ficou prisioneiro dos piores métodos humanos, como aquele de responder à violência com a violência.

Algo semelhante pode acontecer às vezes também na nossa vida de sacerdotes, diáconos, religiosos, seminaristas, consagradas, consagrados, na vida de todos: no fundo, pensamos que somos nós o centro, que podemos confiar-nos – se não na teoria, pelo menos na prática – quase exclusivamente à nossa perícia; ou, como Igreja, encontrar a resposta aos sofrimentos e necessidades do povo através de instrumentos humanos, como o dinheiro, a astúcia, o poder. Pelo contrário, a nossa obra vem de Deus: Ele é o Senhor e nós somos chamados a ser instrumentos dóceis nas suas mãos. Moisés aprende isto quando, um dia, Deus vem ao seu encontro, aparecendo-lhe «numa chama de fogo, no meio da sarça» (Ex 3, 2). Moisés deixa-se atrair, abre-se à estupefação, coloca-se numa atitude de docilidade deixando-se orientar pelo fascínio daquele fogo. «Vou adentrar-me para ver esta grande visão: por que razão não se consome a sarça?» (3, 3). Vemos aqui a docilidade que serve para o nosso ministério: aproximar-se de Deus cheios de maravilha e humildade. Irmãs e irmãos, não percais e estupefação do encontro com Deus! Não percais a estupefação do contacto com a Palavra de Deus. Moisés deixou-se atrair e guiar por Deus. A primazia não deve ser dada a nós, mas a Deus: devemos confiar-nos à sua Palavra em vez de nos servir das nossas palavras, acolher docilmente a sua iniciativa em vez de apostar nos nossos projetos pessoais e eclesiais.

Este deixar-nos plasmar docilmente é que nos faz viver de maneira renovada o ministério. Na presença do Bom Pastor, compreendemos que não somos chefes duma tribo, mas Pastores compassivos e misericordiosos; não somos patrões do povo, mas servos que se inclinam a lavar os pés dos irmãos e irmãs; não somos uma organização mundana que administra bens terrenos, mas somos a comunidade dos filhos de Deus. Irmãs e irmãos, então façamos como Moisés na presença de Deus: descalcemos as sandálias, com humilde respeito (cf. 3, 5), despojemo-nos da nossa presunção humana, deixemo-nos atrair pelo Senhor e cultivemos o encontro com Ele na oração; aproximemo-nos cada dia do mistério de Deus, para que nos encante e queime o restolho do nosso orgulho e das nossas ambições desmedidas, tornando-nos humildes companheiros de viagem daqueles que nos estão confiados.

Purificado e iluminado pelo fogo divino, Moisés torna-se instrumento de salvação para o seu povo que sofre; a docilidade para com Deus torna-o capaz de interceder pelos irmãos. Aqui está a segunda atitude sobre a qual vos quero falar hoje: a intercessão. Moisés fez experiência de um Deus compassivo, que não fica indiferente ao clamor do seu povo, mas desce para o libertar. É importante este descer: Deus desce para o libertar. Pela sua condescendência para connosco, Deus vem para o meio de nós chegando ao ponto de assumir, em Jesus, a nossa carne, experimentar a nossa morte e descida à mansão dos mortos. Sempre desce para nos levantar e quem faz experiência d’Ele é levado a imitá-Lo. Assim faz Moisés, que «desce» para o meio dos seus: fá-lo-á várias vezes durante a travessia no deserto. Com efeito, nos momentos mais importantes e difíceis, sobe e desce do monte da presença de Deus a fim de interceder pelo povo, isto é, colocar-se dentro da sua história para o aproximar de Deus. Irmãos e irmãs, interceder «não significa simplesmente “rezar por alguém”, como muitas vezes pensamos. Etimologicamente significa “dar um passo para o meio”, dar um passo de modo a colocar-se no meio duma situação» (C. M. Martini, Un grido di intercessione, Milão, 29/I/1991). Às vezes pouco se consegue, mas é preciso fazê-lo: um grito de intercessão. Concluindo, interceder é descer para se colocar no meio do povo, “fazer-se ponte” que o liga a Deus.

Os pastores são chamados a desenvolver precisamente esta arte de «caminhar no meio». Esta deve ser a especialidade dos pastores: caminhar no meio… no meio das tribulações e no meio das lágrimas, no meio da fome de Deus e da sede de amor aos irmãos e irmãs. O nosso primeiro dever não é ser uma Igreja perfeitamente organizada – isso pode fazê-lo qualquer empresa –, mas uma Igreja que, em nome de Cristo, permanece no meio da vida dolorosa do povo sem medo de sujar as mãos por amor. Nunca devemos exercer o nosso ministério visando o prestígio religioso e social – o sonho mau de «fazer carreira» –, mas caminhando juntos no meio do povo; é colaborando entre nós, ministros, e com os leigos que se aprende a ouvir e dialogar. Quero repetir aquela importante palavra: juntos. Não a esqueçamos: juntos. Bispos e padres, padres e diáconos, pastores e seminaristas, ministros ordenados e religiosos (nutrindo sempre respeito pela maravilhosa especificidade da vida religiosa): procuremos entre nós vencer a tentação do individualismo, dos interesses parciais. É muito triste quando os Pastores não são capazes de fazer comunhão: não conseguem colaborar, ou até se ignoram mutuamente! Cultivemos o respeito mútuo, a proximidade, a colaboração concreta. Se isto não acontece entre nós, como poderemos pregá-lo aos outros?

Voltemos a Moisés! E, para aprofundar a arte da intercessão, ponhamos atenção nas suas mãos. A respeito delas, a Escritura oferece-nos três imagens: Moisés com a vara na mão, Moisés com as mãos estendidas, Moisés com as mãos erguidas para o céu.

A primeira imagem, Moisés com o bastão na mão, diz-nos que ele intercede com a profecia. Com aquele bastão, realizará prodígios, sinais da presença e do poder de Deus, em nome de Quem fala, denunciando em voz alta o mal que o povo sofre e pedindo ao Faraó que o deixe partir. Irmãos e irmãs, para interceder a favor do nosso povo, também nós somos chamados a erguer a voz contra a injustiça e a prevaricação, que esmagam as pessoas e valem-se da violência para, à sombra dos conflitos, melhor gerir os próprios negócios. Se queremos ser Pastores que intercedem, não podemos permanecer neutrais face ao sofrimento provocado pela injustiça e as violências, porque, onde quer que uma mulher ou um homem seja ferido nos seus direitos fundamentais, é ofendido o próprio Cristo. Gostei de ouvir, no testemunho do padre Luka, que a Igreja não cessa de cumprir um ministério profético e pastoral. Obrigado! Obrigado porque, se há uma tentação da qual nos devemos defender, é a de deixar as coisas como estão, não nos interessando pelas situações com medo de perder privilégios e conveniências.

A segunda imagem: Moisés com as mãos estendidas. Como diz a Escritura, ele «estendeu a sua mão sobre o mar» (Ex 14, 21). As suas mãos estendidas são o sinal de que Deus está prestes a intervir. Mais tarde, Moisés terá nas mãos as tábuas da Lei (cf. Ex 34, 29) para as mostrar ao povo; as suas mãos estendidas indicam a proximidade de Deus que está em ação e acompanha o seu povo. De facto, para libertar do mal, não basta a profecia, é preciso estender os braços para os irmãos e irmãs, apoiar o seu caminho. Acarinhar o rebanho de Deus. Podemos imaginar Moisés que indica o percurso e agarra as mãos do seu povo encorajando-o a prosseguir. Depois de quarenta anos e já velho, mantem-se junto do povo: isto é a proximidade. Não foi uma tarefa fácil: muitas vezes teve de encorajar um povo desanimado e cansado, faminto e sedento, e por vezes também caprichoso que se dava à murmuração e à preguiça. E, para exercer esta tarefa, precisou de lutar também consigo mesmo, porque às vezes viveu momentos de trevas e desolação, como aquele em que disse ao Senhor: «Porque atormentas o teu servo? Porque é que não encontrei graça diante de Ti, a ponto de pores todo este povo como um peso sobre mim? (...) Eu sozinho não consigo suportar todo este povo, porque é demasiado pesado para mim!» (Nm 11, 11.14). Observa a oração de Moisés: está cansado. Mas não se retirou: sempre próximo de Deus, nunca se afastou do seu povo. Também nós temos esta tarefa: estender as mãos, incitar os irmãos, recordar-lhes que Deus é fiel às suas promessas, exortá-los a prosseguir. As nossas mãos foram «ungidas com o Espírito» não só para os ritos sagrados, mas também para encorajar, ajudar, acompanhar as pessoas a sair daquilo que as paralisa, isola, assusta.

Por fim, a terceira imagem: as mãos levantadas para o céu. Quando o povo cai no pecado e constrói um bezerro de ouro, Moisés volta a subir ao Monte – pensemos nesta grande paciência! – e pronuncia uma oração que é uma verdadeira luta com Deus para que não abandone Israel. Chega a dizer: «Ah, este povo cometeu um grande pecado. Fizeram para si um deus de ouro. Apesar disso, perdoa-lhes este pecado, ou então apaga-me do livro que escreveste» (Ex 31, 31-32). Coloca-se da parte do povo até ao fim, levanta a mão em seu favor. Não pensa em salvar-se sozinho, não vende o povo em troca dos seus interesses! Moisés intercede, Moisés luta com Deus; mantém os braços erguidos em oração enquanto os seus irmãos combatem no vale (cf. Ex 17, 8-16). Sustentar as lutas do povo com a oração diante de Deus, atrair o perdão, ministrar a reconciliação como canais da misericórdia de Deus que perdoa os pecados: esta é a nossa tarefa de intercessores!

Caríssimos amigos, estas mãos proféticas, estendidas e levantadas cansam, não é fácil. Ser profeta, acompanhador, intercessor, mostrar com a vida o mistério da proximidade de Deus ao seu Povo pode exigir a própria vida. Muitos padres, religiosas e religiosos (como a Irmã Regina nos disse de suas irmãs) caíram vítimas de violências e atentados em que perderam a vida. Na realidade, ofereceram a sua existência pela causa do Evangelho, e a sua proximidade aos irmãos e irmãs é um maravilhoso testemunho que nos deixaram, convidando-nos a continuar o seu caminho. Podemos recordar as palavras de São Daniel Comboni que realizou nesta terra, com os seus irmãos missionários, uma grande obra de evangelização: o missionário deve estar disposto a tudo por Cristo e pelo Evangelho, e há necessidade de almas ousadas e generosas que saibam sofrer e morrer pela África.

Por isso, quero agradecer-vos o que fazeis no meio de tantas provas e canseiras. Em nome de toda a Igreja, obrigado pela vossa dedicação, a vossa coragem, os vossos sacrifícios, a vossa paciência. Obrigado! Faço votos, queridos irmãos e irmãs, de que sejais sempre generosos Pastores e testemunhas, armados apenas de oração e caridade; pastores testemunhas, que docilmente se deixam surpreender pela graça de Deus e se tornam instrumentos de salvação para os outros; pastores e profetas de proximidade que acompanham o povo, intercessores com os braços erguidos. Que a Virgem Santa vos guarde. Por momentos, pensemos em silêncio nestes nossos irmãos e irmãs que deram a vida aqui neste ministério pastoral, e demos graças ao Senhor porque esteve perto deles. Agradeçamos ao Senhor pela sua proximidade aos mártires. Rezemos em silêncio.

Obrigado pelo vosso testemunho. E se tiverdes um bocadinho de tempo, rezai por mim. Obrigado!


Encontro com os deslocados internos na “Freedom Hall”

Queridos irmãos e irmãs, boa tarde!

Agradeço-vos pelas orações, os testemunhos e o vosso cântico! Há muito tempo que penso em vós, alimentando no coração o desejo de vos encontrar, fixar-vos nos olhos, cumprimentar-vos e abraçar-vos. Eis-me aqui finalmente, na companhia dos irmãos com quem partilho esta peregrinação de paz, para vos testemunhar a minha proximidade, o meu amor. Estou convosco, sofro por vós e convosco.

Joseph, fizeste uma pergunta decisiva: «Porque é que estamos a sofrer no campo de desalojados?» Porquê? Porquê tantas crianças e jovens como tu se encontram nele, em vez de estar na escola a estudar ou num lugar agradável ao ar livre a brincar? A resposta deste-no-la tu próprio dizendo que é «por causa dos conflitos em curso no país». Na verdade, é devido às devastações provocadas pela violência humana e também pelas inundações que milhões de nossos irmãos e irmãs como vós, incluindo tantas mães com os filhos, tiveram que deixar as suas terras e abandonar as suas aldeias, as suas casas. Infelizmente, neste martirizado país, ser desalojado ou refugiado tornou-se uma experiência habitual e coletiva.

Por isso, renovo com todas as forças o mais sentido apelo para que se faça cessar todo o conflito, se retome seriamente o processo de paz, para que acabem as violências e o povo possa voltar a viver dignamente. Só com a paz, a estabilidade e a justiça poderá haver desenvolvimento e reintegração social. Mas não se pode esperar mais! Um número enorme de crianças nascidas nos últimos anos só conheceu a realidade dos campos de desalojados, esquecendo-se do ambiente de casa, perdendo a ligação com a própria terra de origem, com as raízes, com as tradições.

O futuro não pode ser nos campos de desalojados. É preciso – justamente como pedias tu, Johnson – que todos os rapazes como tu tenham a possibilidade de ir à escola e também o espaço para jogar futebol! Há necessidade de crescer como sociedade aberta, misturando-se, formando um único povo através dos desafios da integração, inclusivamente aprendendo as línguas faladas em todo o país e não apenas na própria etnia. É preciso assumir o risco estupendo de conhecer e acolher quem é diferente, para encontrar a beleza duma fraternidade reconciliada e experimentar a aventura inestimável de construir livremente o próprio futuro juntamente com o da comunidade inteira. E é absolutamente necessário evitar a marginalização de grupos e o levantamento de guetos dos seres humanos. Mas, para todas estas carências, há necessidade de paz. E há necessidade da ajuda de muitos, da ajuda de todos.

Por isso, quero agradecer à Representante Especial Adjunta Sara Beysolow Nyanti por nos dizer que hoje é a ocasião para todos verem aquilo que, há anos, está a acontecer neste país. De facto aqui perdura a maior crise de refugiados do continente, pelo menos com quatro milhões de filhos desta terra desalojados, com a insegurança alimentar e desnutrição que afetam dois terços da população e com previsões que falam duma tragédia humanitária que se pode agravar ainda mais no decurso do ano. Mas quero agradecer sobretudo porque a senhora e muitos outros não ficaram parados a estudar a situação, mas desceram em campo. A senhora percorreu o país, fixou nos olhos as mães, presenciando a tristeza que sentem pela situação dos filhos; fiquei impressionado quando afirmou que, apesar de tudo o que sofrem, nos seus rostos nunca se apagaram o sorriso e a esperança.

E subscrevo aquilo que disse sobre as mães: as mulheres são a chave para transformar o país. Se lhes forem concedidas as justas oportunidades, elas, com a sua laboriosidade e destreza para guardar a vida, terão a capacidade de mudar a fisionomia do Sudão do Sul, de lhe dar um desenvolvimento sereno e coeso. Mas peço, por favor, a todos os habitantes destas terras: que a mulher seja protegida, respeitada, valorizada e honrada. Por favor, protegei, respeitai, valorizai e honrai toda a mulher, menina, adolescente, jovem, adulta, mãe, avó. Sem isso, não haverá futuro.

E agora, irmãos e irmãs, volto a olhar para vós, para os vossos olhos cansados mas luminosos que não perderam a esperança, para os vossos lábios que não perderam a força de rezar e cantar; olho para vós que tendes as mãos vazias mas o coração cheio de fé, para vós que dentro carregais um passado doloroso mas não parais de sonhar com um futuro melhor. Encontrando-vos hoje, queremos dar asas à vossa esperança. Temos fé, acreditamos que agora mesmo nos campos de desalojados, onde a situação do país infelizmente vos obriga a permanecer, pode nascer, como da terra nua, uma semente nova que dará fruto.

Quero dizer-vos: sois vós a semente dum novo Sudão do Sul, a semente para o crescimento fértil e exuberante do país. Sois vós, de todas as etnias, vós que sofrestes e continuais a sofrer, mas não quereis responder ao mal com o mal. Vós, que desde agora escolhestes a fraternidade e o perdão, estais a cultivar um amanhã melhor. Um amanhã que nasce hoje, no lugar onde estais, da capacidade de colaborar, de tecer teias de comunhão e percursos de reconciliação com quem, diferente de vós por etnia e proveniência, vive ao vosso lado. Irmãos e irmãs, sede sementes de esperança, nas quais já se vislumbra a árvore que um dia – esperemos próximo – dará frutos. Sim, sereis vós as árvores que absorverão a poluição de anos de violência e restituirão o oxigénio da fraternidade. É verdade que agora estais «plantados» onde não quereis, mas precisamente nesta situação de desconforto e precariedade podeis estender a mão a quem está junto de vós e experimentar que estais radicados na mesma humanidade: daqui é preciso voltar a partir para se descobrir como irmãos e irmãs, filhos na terra do Deus do céu, Pai de todos.

Queridos amigos, quem nos recorda que a planta nasce de uma semente, são as raízes. É estupendo que, aqui, as pessoas tenham muito a peito as raízes. Li que, nestas terras, «as raízes nunca devem ser esquecidas», porque «os antepassados lembram-nos quem somos e qual deve ser a nossa estrada (...). Sem eles, estamos perdidos, temerosos e sem bússola. Não há futuro, sem passado» (C. Carlassare, La capanna di Padre Carlo. Comboniano tra i Nuer, 2020, 65). No Sudão do Sul os jovens crescem aprendendo com as histórias dos idosos e, se a narrativa dos últimos anos aparece caraterizada pela violência, é possível – aliás, é necessário – inaugurar, a partir de vós, uma nova: uma nova narrativa do encontro, onde aquilo que se sofreu não fique esquecido, mas seja habitado pela luz da fraternidade; uma narrativa que, no centro, coloque não só a dimensão trágica que vemos nos noticiários, mas também o desejo ardente da paz. Sede vós, jovens de diferentes etnias, as primeiras páginas desta narrativa! Se os conflitos, as violências e os ódios arrancaram das primeiras páginas de vida desta República as memórias boas, sede vós a escrever de novo a sua história de paz! Agradeço a vossa força de ânimo e todos os vossos gestos de bem, que são tão agradáveis a Deus e tornam precioso cada dia que viveis.

Quero dirigir uma palavra de agradecimento também a quantos vos ajudam, em condições muitas vezes difíceis se não mesmo de emergência. Obrigado às comunidades eclesiais pelas suas obras, que merecem ser apoiadas; obrigado aos missionários, às organizações humanitárias e internacionais, em particular às Nações Unidas pelo grande trabalho que realizam. Claro que um país não pode viver longamente de apoios externos, sobretudo tendo um território tão rico de recursos! Mas agora aqueles são extremamente necessários. Quero também prestar homenagem aos numerosos agentes humanitários que perderam a vida, e exortar ao respeito por quem ajuda e pelas estruturas de apoio à população, que não podem ser alvo de assaltos e vandalismo. A par das ajudas urgentes, considero que seja muito importante, numa perspetiva futura, acompanhar a população na via do desenvolvimento, por exemplo ajudando-a a aprender técnicas atualizadas de agricultura e pecuária, de modo a facilitar um crescimento mais autónomo. A todos peço, com o coração nas mãos: ajudemos o Sudão do Sul, não deixemos sozinha a sua população, que tanto sofreu e continua a sofrer!

Para terminar, desejo dirigir um pensamento a tantos refugiados sul-sudaneses que se encontram fora do país e a quantos não conseguem reentrar porque o seu território foi ocupado. Estou solidário com eles e espero que possam voltar a ser protagonistas do futuro da sua terra, contribuindo para o seu desenvolvimento de modo construtivo e pacífico. Nyakuor Rebecca, pediste-me uma bênção especial para as crianças do Sudão do Sul, precisamente para poderdes crescer todos juntos na paz. Daremos a bênção, nós os três como irmãos: eu com o meu irmão Justin e o meu irmão Iain, juntos, dar-vos-emos a bênção. Com ela, chegue até vós a bênção de tantos irmãos e irmãs cristãos no mundo, que vos abraçam e encorajam, sabendo que em vós, na vossa fé, na vossa força interior, nos vossos sonhos de paz, resplandece toda a beleza do ser humano.


Oração Ecuménica junto ao Mausoléu "John Garang"

Senhor Presidente da República,
Distintas Autoridades religiosas e civis,
Queridos irmãos e irmãs!

Acabam de se elevar, desta amada e atribulada terra, para o Céu tantas orações: vozes diferentes uniram-se, formando uma só voz. Juntos, como Povo santo de Deus, rezamos por este povo ferido. Como cristãos, a primeira coisa – e a mais importante – que somos chamados a fazer é rezar, para podermos trabalhar bem e termos a força de caminhar. Rezar, trabalhar e caminhar: três verbos sobre os quais precisamos de refletir.

Rezar, antes de tudo. Sem a oração, seria vão o notável empenho das comunidades cristãs na promoção humana, na solidariedade e na paz. De facto, não podemos promover a paz sem antes invocar Jesus, «Príncipe da paz» (Is 9, 5). Aquilo que fazemos pelos outros e partilhamos com os outros é, primariamente, dom gratuito que as nossas mãos vazias recebem d’Ele: é graça, pura graça. Somos cristãos, porque gratuitamente amados por Cristo.

Esta manhã inspirei-me na figura de Moisés e agora, a propósito precisamente da oração, quero recordar um episódio decisivo para ele e para o seu povo, ocorrido precisamente no início do caminho rumo à liberdade. Tendo chegado às margens do Mar Vermelho, uma cena dramática se apresenta aos olhos de Moisés e de todos os israelitas: à sua frente, aparece a barreira intransponível das águas; pela retaguarda, está a chegar o exército inimigo, com carros e cavalos. Porventura isto não nos recorda os primeiros passos deste país, acometido não só pelas águas funestas das desastrosas inundações que o atingiram, mas também por uma brutal violência bélica? Então Moisés, naquela situação desesperada, diz ao povo: «Não tenhais medo. Permanecei firmes e vede a salvação que o Senhor fará» (Ex 14, 13). Eu pergunto-me: a Moisés donde lhe vinha semelhante certeza, enquanto o seu povo continuava a lamentar-se apavorado? Aquela força vinha-lhe da escuta do Senhor (cf. 14, 2-4), que lhe prometera manifestar a sua glória. A união com Deus, a confiança n’Ele cultivada na oração, foi o segredo que permitiu a Moisés acompanhar o povo da opressão à liberdade.

Dá-se o mesmo connosco: rezar dá a força para seguir em frente, superar os medos, vislumbrar, mesmo na escuridão, a salvação que Deus prepara. Além disso, a oração atrai sobre o povo a salvação de Deus. A esta oração de intercessão, que caraterizou a vida de Moisés (cf. Ex 32, 11-14), estamos obrigados sobretudo nós, Pastores do Povo santo de Deus. Para que o Senhor da paz intervenha onde os homens não conseguem construí-la, é precisa a oração: uma oração tenaz e constante de intercessão. Irmãos, irmãs, apoiemo-nos nisto: nas nossas várias Confissões, sintamo-nos unidos entre nós, como uma só família; e sintamo-nos encarregados de rezar por todos. Nas nossas paróquias, igrejas, assembleias de culto e louvor, rezemos assíduos e concordes (cf. At 1, 14) para que o Sudão do Sul, como o povo de Deus na Escritura, «alcance a terra prometida»: disponha serena e equitativamente da terra fértil e rica que possui e seja cumulado daquela paz prometida, mas que, infelizmente, ainda não chegou.

E, em segundo lugar, somos chamados a trabalhar precisamente pela causa da paz. Pois Jesus quer-nos «pacificadores» (Mt 5, 9), quer que a sua Igreja seja não só sinal e instrumento da íntima união com Deus, mas também da unidade de todo o género humano (cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 1). Com efeito, como recorda o Apóstolo Paulo, Cristo «é a nossa paz» justamente no sentido do restabelecimento da unidade: foi Ele quem, «dos dois povos, fez um só e destruiu o muro de separação, a inimizade» (Ef 2, 14). Aqui está a paz de Deus: não apenas uma trégua entre os conflitos, mas uma comunhão fraterna, que brota de congregar, não de absorver; de perdoar, não de suplantar; de reconciliar-se, não de impor-se. Tão grande é o desejo de paz do Céu que foi anunciada logo no momento do nascimento de Cristo: «…paz na terra aos homens do seu agrado» (Lc 2, 14). E tão grande foi a angústia de Jesus pela rejeição deste dom, que Ele vinha trazer, que chorou sobre Jerusalém, dizendo: «Se neste dia também tu tivesses conhecido o que te pode trazer a paz!» (Lc 19, 42).

Trabalhemos incansavelmente, queridos irmãos e irmãs, por esta paz que o Espírito de Jesus e do Pai nos convida a construir: uma paz que integra as diversidades, que promove a unidade na pluralidade. Esta é a paz do Espírito Santo, que harmoniza as diferenças, ao passo que o espírito inimigo de Deus e do homem aproveita as diversidades para dividir. A propósito diz a Escritura: «Nisto é que se distinguem os filhos de Deus e os filhos do diabo: todo aquele que não pratica a justiça não é de Deus, nem aquele que não ama o seu irmão» (1 Jo 3, 10). Amigos caríssimos, quem se diz cristão deve escolher de que parte estar. Quem segue Cristo escolhe a paz, sempre; quem desencadeia guerra e violência atraiçoa o Senhor e renega o seu Evangelho. O estilo que Jesus nos ensina é claro: amar a todos, uma vez que todos são amados como filhos pelo Pai comum que está nos céus. O amor do cristão não é só para os vizinhos, mas para cada um, porque cada um em Jesus é nosso próximo, irmão e irmã – até mesmo o inimigo (cf. Mt 5, 38-48) – e, com maior força de razão, aqueles que pertencem ao nosso próprio povo, embora de etnia diferente. «Que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12): este é o mandamento de Jesus, que contradiz toda a visão tribal da religião. «Que todos sejam um só» (Jo 17, 21): esta é a ardente oração de Jesus ao Pai por todos nós, crentes.

Trabalhemos, irmãos e irmãs, por esta unidade fraterna entre nós, cristãos, e ajudemo-nos a fazer passar a mensagem da paz na sociedade, a difundir o estilo de não-violência de Jesus, para que, na pessoa que se professa crente, já não haja espaço para uma cultura baseada no espírito de vingança; para que o Evangelho não seja apenas um belo discurso religioso, mas uma profecia que se torna realidade na história. Trabalhemos por isto: trabalhemos pela paz tecendo e remendando, nunca cortando ou rasgando. Sigamos Jesus e, atrás d’Ele, demos passos comuns no caminho da paz (cf. Lc 1, 79).

E chegamos assim ao terceiro verbo: depois de rezar e trabalhar, caminhar. Aqui, ao longo dos decénios, as comunidades cristãs empenharam-se fortemente na promoção de percursos de reconciliação. Quero agradecer-vos por este luminoso testemunho de fé, nascido do facto de reconhecer, não só nas palavras mas também nas obras, que, antes das divisões históricas, existe uma realidade imutável: somos cristãos, somos de Cristo. É maravilhoso que, no meio de tanto conflito, a pertença cristã nunca tenha desagregado a população, mas foi, e é ainda, fator de unidade. A herança ecuménica do Sudão do Sul é um tesouro precioso, um louvor ao nome de Jesus, um ato de amor à Igreja sua esposa, um exemplo universal para o caminho de unidade dos cristãos. É uma herança que deve ser guardada com o mesmo espírito: as divisões eclesiais dos séculos passados não se repercutam sobre quem é evangelizado, mas possa a sementeira do Evangelho contribuir para gerar maior unidade. O tribalismo e o faciosismo que alimentam as violências no país não afetem as relações interconfessionais; pelo contrário, derrame-se sobre o povo o testemunho de unidade dos crentes.

Neste sentido e para concluir, quero sugerir duas palavras-chave para a continuação do nosso caminho: memória e compromisso. Memória: os passos que dais recalcam as pegadas dos predecessores. Não tenhais medo de não estar à altura, mas senti-vos impelidos por quem vos preparou a estrada: como numa corrida com estafetas, recolhei o testemunho para apressar a conquista da meta duma comunhão plena e visível. E depois o compromisso: caminha-se para a unidade, quando o amor é concreto, quando nos damos as mãos para socorrer quem está na margem da estrada, quem é ferido e descartado. Já o fazeis em muitos campos; penso em particular nos campos da saúde, da instrução, da caridade. Como é urgente e indispensável a ajuda que levais à população! Obrigado! Continuai assim: nunca concorrentes, mas familiares; irmãos e irmãs que, através da compaixão pelos que sofrem, os prediletos de Jesus, dão glória a Deus e testemunham a comunhão que Ele ama.

Queridos amigos, os meus irmãos e eu viemos como peregrinos atá junto de vós, Povo santo de Deus em caminho. Mesmo distantes fisicamente, continuaremos sempre a estar próximos de vós. Recomecemos cada dia a partir da oração de uns pelos outros e com os outros, do trabalhar juntos como testemunhas e mediadores da paz de Jesus, do caminhar pela mesma estrada, dando passos concretos de caridade e unidade. Em tudo, amemo-nos intensamente e de coração sincero (cf. 1 Ped 1, 22).


Domingo, 5 de fevereiro de 2023

Santa Missa no Mausoléu "John Garang"

As palavras do Apóstolo Paulo dirigidas à comunidade de Corinto, que ouvimos na II Leitura, quero hoje fazê-las minhas e repeti-las diante de vós: «Eu mesmo, quando fui ter convosco, não me apresentei com o prestígio da linguagem ou da sabedoria, para vos anunciar o mistério de Deus. Julguei não dever saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo e, Este, crucificado» (1 Cor 2, 1-2). A trepidação de Paulo é também a minha, ao encontrar-me aqui convosco em nome de Jesus Cristo, o Deus do amor, o Deus que realizou a paz através da sua cruz; Jesus, Deus crucificado por todos nós; Jesus, crucificado em quem sofre; Jesus, crucificado na vida de tantos de vós, em muitas pessoas deste país; Jesus, o Ressuscitado, vencedor do mal e da morte. Venho para vo-Lo proclamar, para vos confirmar n’Ele, porque o anúncio de Cristo é anúncio de esperança: na verdade, Ele conhece as angústias e os anseios que trazeis no coração, as alegrias e as canseiras que marcam a vossa vida, as trevas que vos oprimem e a fé que elevais ao Céu como um cântico na noite. Jesus conhece-vos e ama-vos; se permanecemos n’Ele, não devemos temer, porque, também para nós, cada cruz se há de transformar em ressurreição, cada tristeza em esperança, cada lamento em dança.

Por isso quero deter-me nas palavras de vida que Jesus nosso Senhor nos dirigiu hoje no Evangelho: «Vós sois o sal da terra. (...) Vós sois a luz do mundo» (Mt 5, 13.14). Estas imagens, que nos dizem a nós, discípulos de Cristo?

Em primeiro lugar, somos sal da terra. O sal serve para dar sabor à comida. É o ingrediente invisível que dá gosto a tudo. Por isso mesmo, desde a antiguidade, foi visto como símbolo da sabedoria, uma virtude que não se vê, mas que dá gosto à vida e sem ela a existência torna-se insípida, sem sabor. Mas Jesus, de que sabedoria nos fala? Ele usa esta imagem do sal imediatamente depois de ter proclamado aos seus discípulos as Bem-aventuranças: compreendemos assim que são elas o sal da vida do cristão. De facto, as Bem-aventuranças trazem à terra a sabedoria do Céu: revolucionam os critérios do mundo e do modo comum de pensar. E que dizem elas? Em poucas palavras, afirmam que, para ser bem-aventurado, isto é, plenamente feliz, não devemos procurar ser fortes, ricos e poderosos, mas humildes, mansos, misericordiosos; não devemos fazer mal a ninguém, mas ser pacificadores para com todos. Esta – diz Jesus – é a sabedoria do discípulo; é aquilo que dá sabor à terra que habitamos. Tenhamo-lo bem presente: se pusermos em prática as Bem-aventuranças, se encarnarmos a sabedoria de Cristo, daremos bom gosto não apenas à nossa vida mas também à sociedade, ao país onde vivemos.

Além de dar sabor, o sal tem outra função, que era essencial no tempo de Cristo: conservar os alimentos para não se corromperem estragando-se. Mas a Bíblia diz que havia um «alimento», um bem essencial que se devia conservar antes de qualquer outro: a aliança com Deus. Por isso, naqueles tempos, sempre que se fazia uma oferta ao Senhor, colocava-se um pouco de sal. Ouçamos o que diz a propósito a Escritura: «Não permitirás que falte o sal da aliança do teu Deus sobre a tua oblação; a todas as tuas ofertas juntarás sal» (Lv 2, 13). Assim, o sal recordava a necessidade primária de guardar o vínculo com Deus: porque Ele é-nos fiel, a sua aliança connosco é incorruptível, inviolável e duradoura (cf. Nm 18, 19; 2 Cro 13, 5). Por conseguinte, o discípulo de Jesus, enquanto sal da terra, é testemunha da aliança que Ele realizou e nós celebramos em cada Missa: uma aliança nova, eterna, inquebrável (cf. 1 Cor 11, 25; Heb 9), um amor por nós que não pode ser infringido nem mesmo pelas nossas infidelidades.

Irmãos, irmãs, somos testemunhas desta maravilha. Na antiguidade, quando pessoas ou povos estabeleciam entre si uma amizade, frequentemente estipulavam-na intercambiando-se um pouco de sal; nós, que somos sal da terra, estamos chamados a testemunhar a aliança com Deus na alegria, com gratidão, mostrando que somos pessoas capazes de criar laços de amizade, viver em fraternidade, construir boas relações humanas, impedir que prevaleçam a corrupção do mal, a patologia das divisões, a sujeira dos negócios iníquos, a praga da injustiça.

Hoje quero agradecer-vos por serdes sal da terra neste país. Entretanto, vendo tantas feridas, as violências que alimentam o veneno do ódio, a iniquidade que causa miséria e pobreza, poder-vos-ia parecer que sois pequenos e impotentes. Mas, quando vos assaltar a tentação de vos sentirdes inadequados, procurai olhar para o sal e seus grãos minúsculos: é um pequeno ingrediente que, uma vez espalhado sobre a iguaria, desaparece, derrete-se, mas é justamente assim que dá sabor a todo o conteúdo. De igual modo nós cristãos, apesar de ser frágeis e pequenos, mesmo quando nos parecem insignificantes as nossas forças se comparadas com a grandeza dos problemas e a fúria cega da violência, podemos oferecer uma contribuição decisiva para mudar a história. Jesus deseja que façamos como o sal: basta uma pitada que se derreta para dar um sabor diferente ao conjunto. E não podemos negar-nos, porque sem aquele pouco, sem o nosso pouco, tudo perde sabor. Comecemos precisamente do pouco, do essencial, daquilo que não aparece nos livros de história, mas muda a história: em nome de Jesus, das suas Bem-aventuranças, deponhamos as armas do ódio e da vingança para embraçar a oração e a caridade; superemos as antipatias e aversões que, com o passar do tempo, se tornaram crónicas e correm o risco de levar à contraposição de tribos e de etnias; aprendamos a colocar nas feridas o sal do perdão, que causa ardida mas cura. E, mesmo que o coração sangre pelas injustiças sofridas, renunciemos duma vez por todas a responder ao mal com o mal, e sentir-nos-emos bem cá dentro; acolhamo-nos e amemo-nos sincera e generosamente como Deus faz connosco. Salvaguardemos o bem que somos, não nos deixemos corromper pelo mal!

Passemos à luz, a segunda imagem usada por Jesus: Vós sois a luz do mundo. Uma conhecida profecia, em que Deus Se refere a Israel, diz: «Vou fazer de ti luz das nações, para que a minha salvação chegue até aos confins da terra» (Is 49, 6). Ora tal profecia cumpriu-se, quando Deus Pai enviou o seu Filho; é Ele a luz do mundo (cf. Jo 8, 12), a luz verdadeira que ilumina todo o homem e todos os povos, a luz que brilha nas trevas e dissipa as nuvens de qualquer escuridão (cf. Jo 1, 5.9). Mas o próprio Jesus, luz do mundo, diz aos seus discípulos que também eles são luz do mundo. Isto significa que nós, acolhendo a luz de Cristo, a luz que é Cristo, tornamo-nos luminosos, irradiamos a luz de Deus.

E Jesus acrescenta: «Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se acende a candeia para a colocar debaixo do alqueire, mas sim em cima do candelabro, e assim alumia a todos os que estão na casa» (Mt 5, 15). Trata-se também neste caso de imagens que então eram familiares: várias aldeias da Galileia estavam sobre as colinas, claramente visíveis de longe; e, nas casas, as candeias eram colocadas no alto, para iluminar os cantos todos; depois, quando deviam ser apagadas, cobriam-se com um objeto de argila chamado alqueire, que fazia faltar à chama o oxigénio apagando-a.

Irmãos e irmãs, o convite de Jesus para ser luz do mundo é claro: nós, seus discípulos, somos chamados a refulgir como uma cidade situada no alto, como um candelabro cuja chama nunca deve estar apagada. Por outras palavras, antes de nos preocupar com as trevas que nos rodeiam, antes de esperar que algo à nossa volta se clareie, somos obrigados a brilhar, a iluminar com a nossa vida e as nossas obras as cidades, as aldeias e os lugares que habitamos, as pessoas que frequentamos, as atividades que realizamos. É o Senhor que nos dá a força, a força de n’Ele sermos luz para todos; porque todos devem poder ver as nossas boas obras e, vendo-as – lembra-nos Jesus – abrir-se-ão com estupefação a Deus e dar-Lhe-ão glória (cf. Mt 5, 16): se vivermos como filhos e irmãos na terra, as pessoas descobrirão que têm um Pai nos céus. A nós, pois, é-nos pedido para arder de amor: não suceda que a nossa luz se apague, que desapareça da nossa vida o oxigénio da caridade, que as obras do mal tirem o ar puro ao nosso testemunho. Esta terra, tão bela e tão martirizada, precisa da luz que tem cada um de vós, ou melhor, da luz que cada um de vós é.

Queridos amigos, faço votos de serdes sal que se espalha e derrete generosamente para dar sabor ao Sudão do Sul com o gosto fraterno do Evangelho; de serdes comunidades cristãs luminosas que, como cidades situadas no alto, lancem uma luz benéfica sobre todos e mostrem que é belo e possível viver a gratuidade, ter esperança, construir todos juntos um futuro reconciliado. Irmãos e irmãs, estou convosco e desejo que experimenteis a alegria do Evangelho, o sabor e a luz que o Senhor, «o Deus da paz» (Flp 4, 9), o «Deus de toda a consolação» (2 Cor 1, 3), quer derramar sobre cada um de vós.

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SAUDAÇÃO FINAL

Obrigado, querido Irmão Stephen, por estas palavras. Saúdo o Senhor Presidente da República, juntamente com todas as autoridades civis e religiosas presentes. Chego agora ao termo desta peregrinação no meio de vós e desejo exprimir a minha gratidão pelo acolhimento recebido e por todo o trabalho realizado na preparação desta visita, que foi uma visita fraterna, feita a três.

Agradeço a todos vós, irmãos e irmãs, que em grande número vos deslocastes aqui de diferentes partes, fazendo muitas horas, se não mesmo dias, de estrada! Além da estima que me manifestastes, agradeço a vossa fé, a vossa paciência, todo o bem que fazeis e as canseiras que ofereceis a Deus sem desanimar, procurando seguir em frente. No Sudão do Sul, há uma Igreja corajosa, emparentada com a do Sudão, como nos recordava o Arcebispo, que mencionou a figura de Santa Josefina Bakhita: uma grande mulher que, com a graça de Deus, transformou o sofrimento suportado em esperança: «a esperança, que nascera para ela e a “redimira”, não podia guardá-la para si; esta esperança devia chegar a muitos, chegar a todos» – escreveu Bento XVI (Carta enc. Spe salvi, 3). Esperança é a palavra que quero deixar a cada um de vós, como um dom a compartilhar, como uma semente que dá fruto. Como nos lembra a figura de Santa Josefina, aqui a esperança está particularmente sob o signo da mulher e quero agradecer e abençoar, de maneira especial, todas as mulheres do país.

À esperança quero associar outra palavra, a palavra destes dias: paz. Com os meus Irmãos Justin e Iain, cuja presença agradeço de coração, viemos até aqui e continuaremos, os três juntos, a acompanhar os vossos passos, fazendo tudo o que pudermos para que sejam passos de paz, passos rumo à paz. Quero confiar este caminho de todo o povo connosco os três, este caminho da reconciliação e da paz a outra mulher: é a nossa mui terna Mãe, Maria, a Rainha da Paz. Acompanhou-nos com a sua presença solícita e silenciosa. A Ela, que agora invocamos, confiamos a causa da paz no Sudão do Sul e em todo o continente africano. A Nossa Senhora, confiamos também a paz no mundo, em particular nos numerosos países que se encontram em guerra, como a martirizada Ucrânia.

Queridos irmãos e irmãs, voltamos cada um de nós, os três, à própria sede, levando-vos ainda mais estreitos ao coração. Repito: estais no nosso coração, estais nos nossos corações, estais nos corações dos cristãos de todo o mundo. Nunca percais a esperança. E não se perca ocasião de construir a paz. Que a esperança e a paz habitem em vós, que a esperança e a paz habitem no Sudão do Sul!