Trabalhar bem, trabalhar por amor (2): Trabalhar com consciência

Para quem deseja ser santo, não lhe basta trabalhar: deve trabalhar bem, empenhando-se, aceitando os fracassos e aprendendo a viver as virtudes – como a paciência ou a caridade – nas suas ocupações diárias. Novo texto editorial sobre a santificação do trabalho.

Se queremos de verdade santificar o trabalho, é preciso cumprir iniludivelmente a primeira condição: trabalhar e trabalhar bem! Com seriedade humana e sobrenatural[1].

Vimos já, num artigo precedente, que trabalhar por um motivo sobrenatural é como a alma da santificação do trabalho[2]. Agora deter-nos-emos a considerar que a matéria, por assim dizer, a que dá vida, essa alma, é o trabalho bem feito, pois o motivo sobrenatural, se é autêntico amor a Deus e ao próximo, reclama necessariamente que procuremos levar a cabo o nosso trabalho o melhor possível.

De modo particular temos que ter presente que, conforme ensinou São Josemaria, a santificação do trabalho corrente supõe a boa realização do próprio trabalho, a perfeição também humana, o bom cumprimento de todas as obrigações profissionais e sociais. É trabalhar com consciência, com sentido de responsabilidade, com amor e perseverança, sem abandonos nem ligeirezas.

A santidade não consiste em fazer coisas cada dia mais difíceis, dizia São Josemaria, mas em fazê-las cada dia com mais amor.

Para meditar com proveito este ensinamento do fundador do Opus Dei, convém observar que quando falamos de "trabalhar bem” referimo-nos antes de mais nada à actividade de trabalhar, não ao resultado do trabalho.

Pode acontecer que se trabalhe bem e, no entanto, a tarefa saia mal, seja por um engano involuntário ou por causas que não dependem do próprio. Nestes casos – que se apresentam amiúde – aparece com clareza a diferença entre quem trabalha com sentido cristão e quem procura principalmente o êxito humano. Para o primeiro o que tem valor é, antes de mais, a própria actividade de trabalhar e, embora não tenha obtido um bom resultado, sabe que não se perdeu nada do que procurou fazer bem por amor a Deus e afã de corredimir com Cristo; por isso não se revolta diante das contrariedades – procurando superá-las – mas vê a possibilidade de se unir mais à Cruz do Senhor. Pelo contrário, para o segundo, tudo se malogrou se não saiu bem. Evidentemente, quem pense deste modo nunca entenderá o que é santificar o afazer profissional.

Trabalhar com consciência é trabalhar com perfeição humana por um motivo sobrenatural. Não é trabalhar humanamente bem e "depois" acrescentar um motivo sobrenatural. É algo mais profundo. É o amor a Deus o que deve levar um cristão a realizar com perfeição o seu trabalho, porque não podemos oferecer ao Senhor uma coisa que, dentro das pobres limitações humanas, não seja perfeita, sem defeitos e realizada com toda a atenção, mesmo nos aspectos mais insignificantes, porque Deus não aceita o que é mal feito. Não oferecereis nada que tenha defeito, porque não seria aceite favoravelmente, adverte-nos a Escritura Santa, pois não seria digno d’ Ele (Lv 22, 20)[3].

Foto: Welding

Quando se procura actuar deste modo é normal que o trabalho saia bem e se obtenham bons resultados. Mais ainda, é frequente que quem procura santificar o trabalho se destaque profissionalmente entre os seus iguais porque, o amor a Deus impulsiona a exceder-se gostosamente e sempre, no dever e no sacrifício[4]. Mas não se pode esquecer nunca – vale a pena repeti-lo – que às vezes Deus permite contradições e fracassos humanos para que purifiquemos a intenção e participemos da Cruz do Senhor. E isto não significa que não se tenha trabalhado bem e santificado essa tarefa.

VIRTUDES HUMANAS NO TRABALHO

O trabalho bem feito põe em prática as virtudes humanas informadas pela caridade. É todo um conjunto de virtudes que pomos em jogo ao desempenhar a nossa profissão, com o propósito de a santificar: a fortaleza, para perseverarmos no nosso trabalho, apesar das naturais dificuldades, sem nos deixarmos vencer pelo abatimento; a temperança, para nos gastarmos sem reservas e para superarmos a comodidade e o egoísmo; a justiça, para cumprirmos os nossos deveres com Deus, com a sociedade, com a família, com os colegas; a prudência, para sabermos o que convém fazer em cada caso e lançarmo-nos à obra sem demora... E tudo, insisto, por Amor[5].

Todas as virtudes humanas são necessárias, porque formam um entrançado no qual os fios se reforçam entre si. Mas há uma ordem entre eles: uns fios que se metem primeiro que outros, da mesma maneira como o tecer de um tapete.

Como a primeira condição é trabalhar e trabalhar bem, compreende-se que o nosso Fundador destaque duas virtudes humanas – a laboriosidade e a diligência – que se confundem numa só: no empenho por tirar partido dos talentos que cada um recebeu de Deus[6].

Como na parábola do Evangelho, o Senhor outorgou-nos os talentos necessários para cumprir a missão de O colocar nas entranhas das actividades humanas, santificando a profissão própria de cada um. Não é lícito comportar-se como o servo mau e preguiçoso[7] que enterrou o talento recebido. Deus quer que façamos render, por amor, os dons que nos deu e para isso há que trabalhar com empenho e constância, com rigor, com qualidade humana, pondo todo o esforço necessário.

A laboriosidade e a diligência juntam-se para enfrentar o trabalho que se deve fazer, não qualquer coisa ou o que apetece e a realizá-lo como e quando se deve. Quem é laborioso aproveita o tempo, que não é apenas ouro, é glória de Deus! Faz o que deve e está no que faz, não por rotina nem para ocupar as horas, mas como fruto de uma reflexão atenta e ponderada. Por isso é diligente. O uso normal desta palavra – diligente – evoca-nos a sua origem latina. Diligente vem do verbo diligo, que significa amar, apreciar, escolher algo depois de uma atenção esmerada e cuidadosa. Não é diligente quem se precipita, mas quem trabalha com amor, primorosamente[8].

É preciso lutar contra a preguiça, vício capital e mãe de todos os vícios[9]. Uma das suas formas é o tardar no cumprimento das obrigações[10]: adiando o que custa e dando prioridade a outras coisas de que se gosta mais ou que exigem menos esforço. Não deixes o teu trabalho para amanhã[11], aconselha São Josemaria, porque às vezes, com falsas desculpas, somos excessivamente comodistas, esquecemo-nos da bendita responsabilidade que pesa sobre os nossos ombros, conformamo-nos com fazer o que é minimamente indispensável e deixamo-nos arrastar por razões sem razão para nada fazermos, enquanto Satanás e os seus amigos não tiram férias[12]. Não servimos a Deus com lealdade quando nos possam classificar como inconstantes, inconvenientes, frívolos, desordenados, preguiçosos e inúteis...[13].

O afazer profissional é campo para o exercício de todas as virtudes humanas, imitando o exemplo dos anos de Jesus em Nazaré. A ordem e a serenidade, a alegria e o optimismo, a rijeza e a constância, a lealdade, a humildade e a mansidão, a magnanimidade e todas as demais virtudes que aqui não é possível sequer mencionar, fazem do trabalho profissional terreno fecundo que se enche de frutos com a chuva da graça.

O segredo para realizar cada dia melhor o trabalho são as coisas pequenas: detalhes que estão ao alcance de um filho de Deus e que dão um remate de perfeição à nossa actividade.

Sem a luta para praticar diariamente estas virtudes é fácil cair no erro dos que se consideram cristãos "praticantes" porque assistem a actos de culto e recitam umas orações, mas deixam que a sua vida profissional decorra, mais ou menos descaradamente, à margem da moral cristã, com faltas de justiça, de veracidade, de honradez...

Um trabalho deste género não é agradável a Deus e não pode dizer-se que esteja bem feito, nem santificado, ainda que consiga resultados brilhantes aos olhos humanos e se destaque pela sua perfeição técnica nalguns aspectos. São Josemaria ensinou sempre a pôr em prática a fé – a encarná-la! – no trabalho profissional, com unidade de vida. E isto consegue-se mediante as virtudes humanas informadas pela caridade.

Sem a caridade, o esforço humano não basta para santificar o trabalho, porque a caridade – o amor sobrenatural a Deus e às almas – é a essência da santidade. Um cristão que seja muito eficaz, se falta à caridade não santifica o seu trabalho. Na realidade nem sequer se pode dizer que trabalhe muito bem, porque a caridade vai dentro das virtudes e a falta dela manifesta-se antes ou depois da não vivência destas: em injustiças, em ódios, na ira, na inveja...

São Josemaria Escrivá, com os seus dois sucessores, D. Álvaro e D. Javier.

O amor a Deus não é um sentimento inoperante. É o acto da virtude teologal da caridade que, juntamente com a fé e a esperança, deve governar a realidade concreta da vida de um filho de Deus mediante o exercício das virtudes humanas. Só assim podemos identificar-nos com Cristo, perfeito Deus e perfeito Homem.

PEQUENAS COISAS

As virtudes cristãs manifestam-se e desenvolvem-se na actividade profissional ordinariamente através de pequenas coisas. A própria laboriosidade, que de algum modo é a condição das demais virtudes no trabalho, não consiste apenas em trabalhar muito, porque não se pode esquecer que à força de descuidar pormenores, se podem tornar compatíveis trabalhar sem descanso e viver como um perfeito comodista[14].

Esta virtude pode perder o seu genuíno valor se se descuida a luta naqueles detalhes de ordem para os quais quiçá não se sente inclinação, ou de pontualidade ao começar e terminar o trabalho, ou se posterga a atenção à família, ou se desatendem as iniciativas apostólicas com a desculpa de que o trabalho absorve quase todas as energias. O cuidado das pequenas coisas protege deste perigo porque resguarda a rectidão de intenção, já que muitos detalhes só brilham diante de Deus.

A santidade não consiste em fazer coisas cada dia mais difíceis, dizia São Josemaria, mas em fazê-las cada dia com mais amor. O segredo para realizar cada dia melhor o trabalho são as pequenas coisas: detalhes que estão ao alcance de um filho de Deus e que dão um remate de perfeição à nossa actividade.

Outra coisa diferente é o "perfeccionismo", o defeito de procurar como fim a perfeição pela perfeição no resultado exterior do trabalho. Este defeito encerra uma deformação das virtudes humanas, mostra que se perdeu a visão de conjunto, o sentido da prudência que dita às vezes que o melhor é inimigo do bom, porque pretender o melhor levaria a descuidar outras exigências do trabalho bem feito, como acabá-lo no prazo devido. O perfeccionismo é um sucedâneo da perfeição, que revela amor-próprio e complacência vã e é preciso combatê-lo com o realismo da humildade cristã que sabe reconhecer as próprias limitações e confiar em Deus.

Ele criou tudo por amor e as Suas obras são perfeitas: Dei perfecta sunt opera[15]. O nosso trabalho é uma participação na obra criadora[16] e há-de ser também perfeito, no que dependa das nossas forças, com a graça de Deus.

O cuidado das pequenas coisas caracteriza o modo divino de trabalhar de um filho de Deus, porque manifesta a perfeição do amor. E é fundamental chegar a ser contemplativos no trabalho, porque assim como Deus criou e viu que era bom[17] – contemplou o reflexo do Seu Amor e Verdade no que tinha criado – analogamente, com a infinita distância que comporta aqui a analogia, o nosso trabalho será bom e meio de contemplação se é uma tarefa não só acabada até ao detalhe, mas levada a cabo com rectidão moral. Assim o trabalho será oração. Oração contemplativa, pois um trabalho realizado com perfeição, pondo amor nas pequenas coisas, permite descobrir esse quê divino que está encerrado nos pormenores[18]. Por isso, concluía o nosso Padre, quando um cristão realiza com amor a mais intranscendente das acções diárias, ela transborda da transcendência de Deus[19].

APRENDER A TRABALHAR BEM

O panorama maravilhoso que se abre diante dos nossos olhos há-de ser posto em prática na nossa vida. Não basta querer fazer o bem; é preciso saber fazê-lo[20]. Servir a Deus e aos outros com o nosso trabalho, requer preparação, competência, não só técnica mas moral, humana e cristã.

São Josemaria queria gravar nos nossos corações que não basta a "boa vontade" para ser um bom médico ou uma boa dona de casa, mas são precisos conhecimentos e virtudes.

Para servir, servir, são umas palavras que São Josemaria queria gravar nos nossos corações com o fim de que não esquecêssemos que não basta a "boa vontade" para ser um bom médico ou uma boa dona de casa, mas são precisos conhecimentos e virtudes. Não acredito na rectidão da intenção de quem não se esforça por conseguir a competência necessária para cumprir bem os trabalhos de que está encarregado[21].

A "formação profissional" para santificar o trabalho não consiste apenas nuns conhecimentos teóricos prévios. É necessário muito mais, como se disse antes: são precisas virtudes humanas informadas pela caridade. Por este motivo, principalmente, a formação profissional dura toda a vida e melhora-se todos os dias pondo empenho em crescer nas virtudes cristãs. Não é suficiente o desejo de possuir essas virtudes: é preciso aprender a praticá-las. Discite benefacere (Is 1, 17), aprendei a fazer o bem. Temos de nos exercitar habitualmente nos actos correspondentes – actos de sinceridade, de equanimidade, de serenidade, de paciência – porque amores são obras e não se pode amar a Deus só de palavra, mas com obras e de verdade (1 Jo 3, 18)[22].

Canal estupendo para esta formação é a direcção espiritual pessoal. Se sabemos abrir a alma de par em par, poderemos receber conselhos certeiros – às vezes indicações sobre deveres morais ou de consciência – porque o Espírito Santo dá a Sua luz e Sua graça através desse meio. Também temos de estar dispostos a receber esta formação no próprio local de trabalho, sabendo aproveitar as observações dos que nos rodeiam. Requer-se para isso humildade, simplicidade para admitir as próprias limitações e para se deixar ajudar evitando a suficiência, a presunção e a vaidade.

ENTUSIASMO PROFISSIONAL

Uma disposição interior muito conveniente para aprender a trabalhar é o entusiasmo profissional. Mas é importante ter uma ideia correcta, elevada, do que deve ser esse entusiasmo num cristão, para não a reduzir a uma simples inclinação natural.

Em rigor é o anelo de servir a Deus e aos outros com o nosso trabalho, o desejo de contribuir com a própria actividade profissional para o progresso humano orientando-o com sentido cristão e para empapar, assim, a sociedade com o espírito de Cristo. Este é o cerne do entusiasmo profissional de um filho de Deus, que desperta o interesse humano pela tarefa que se realiza e o alimenta a partir da raiz com uma seiva de esperança sobrenatural, que mantém vivo o empenho de converter a prosa diária em decassílabos, em verso heróico[23].

As actividades mais correntes não são já uma monótona sucessão de acções que se repetem, como não o foram na vida de Jesus, Maria e José em Nazaré. Descobre-se uma nova dimensão nas nossas tarefas e desfruta-se com a presença de Deus que as aprova, acolhendo a oferenda do trabalho bem feito.

Para um filho de Deus, o entusiasmo profissional não é um gosto ou um capricho. É o entusiasmo de realizar o trabalho que Deus quer para que se santifique e dê fruto. Por isso há uma vocação profissional, que é parte importante da vocação divina. Mas esse querer de Deus descobre-se não só pelas inclinações e aptidões – que certamente contam – mas também pelas circunstâncias em que cada um se encontra pela Providência divina e concretamente pelos deveres que há-de cumprir e os serviços que de facto pode prestar.

"Coloca os afazeres profissionais no seu lugar: constituem apenas meios para chegar ao fim; nunca podem tomar-se, de modo nenhum, como o fundamental. Quantas "profissionalites" impedem a união com Deus!” (São Josemaria).

Todo este conjunto de factores configura a vocação profissional e chama-se "vocação" porque efectivamente representa uma chamada de Deus a eleger, de acordo com as circunstâncias pessoais, a actividade profissional mais conveniente como matéria de santificação e de apostolado.

Nesta linha se vê quão longe do entusiasmo profissional está essa patologia que costuma chamar-se profissionalite. Em primeiro lugar é o amor ao trabalho como meio de santificação e de apostolado; depois é a escravidão a um ídolo que se pôs como fim. E, neste caso, isso pode acontecer sem se ter pretendido expressamente, por se ter descuidado a rectidão de intenção e se ter movido na prática por metas terrenas, pondo no triunfo a própria complacência.

São Josemaria adverte para esse perigo: coloca os afazeres profissionais no seu lugar: constituem apenas meios para chegar ao fim; nunca podem tomar-se, de modo nenhum, como o fundamental. Quantas "professionalites" impedem a uniãocomDeus![24]. Aprender a trabalhar bem é também aprender a pôr o trabalho no seu lugar, um lugar tão importante como o do eixo da santificação na vida corrente, mas sempre um meio.

* * *

Os bons profissionais conhecem-se pelo seu trabalho. A São José todos o conheciam como o artesão e a Jesus como o filho do artesão, fabri filius[25], e Ele próprio por artesão[26]. Não nos ficou o resultado do seu trabalho, nenhum dos móveis que fabricaram, com qualidade, com a perfeição que permitiam as ferramentas, trabalhando com esforço, ordem, alegria..., enquanto Santa Maria se ocupava com o mesmo espírito das tarefas do lar. Ficou-nos, no entanto, o amor redentor de Jesus nesses afazeres e o de Maria e de José unidos ao Seu, com um só coração. É esta a essência da santificação do trabalho.


[1] Forja, n. 698.

[2] Cfr. Caminho, n. 359.

[3] Amigos de Deus, n. 55.

[4] Sulco, n. 527.

[5] Amigos de Deus, n. 72.

[6] Ibidem, n. 81.

[7] Mt 25, 26.

[8] Amigos de Deus, n. 81.

[9] Sulco, n. 505. Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 1866.

[10] São Tomás de Aquino, S.Th., II-II, q. 54, a. 2, ad 1.

[11] Caminho, n. 15.

[12] Amigos de Deus, n. 62.

[13] Ibidem.

[14] Sulco, n. 494.

[15] Dt 32, 4 (Vg).

[16] Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 2427.

[17] Gn 1, 10 ss.

[18] Temas Actuais do Cristianismo, n. 116.

[19] Ibidem, n. 116.

[20] Cristo que passa, n. 50.

[21] Ibidem.

[22] Amigos de Deus, n. 91.

[23] Cristo que passa, n. 50.

[24] Sulco, n. 502.

[25] Mt 13, 55.

[26] Cfr. Mc 6, 3.

Foto: fundacionfadei