Javier Echevarria fala sem quase mover um músculo da face. É extraordinariamente sóbrio nos gestos e nos modos. Parece-me um homem acostumado a ter muito domínio do seu carácter, da sua espontaneidade, da sua energia e da sua veemência. Quase todo o tempo tem as mãos em repouso. A sua expressividade manifesta-se fundamentalmente pelo tom de voz e pelo olhar. Ai diz tudo: nesse olhar inteligente, agudo, penetrante e vivíssimo.
-Onde nasceu, como era a sua família...?
-Nasci em Madrid, na Rua de Fortuny, a 14 de Junho de 1932. O meu pai era engenheiro, professor da Escola de Engenheiros Industriais. Como nenhum dos filhos lhe tinha saído engenheiro, quis inclinar-se para mim por ai... inclusivamente escreveu um livro a pensar na minha preparação. Mas eu sentia- me mais inclinado para as Humanidades. O meu pai ajudava-me a estudar matemática. E, perante qualquer problema, explicava-me três ou quatro maneiras de o resolver. Isso mesmo me causou fastio para as matemáticas. E optei pelo Direito.
-Para exercer a advocacia?
-Não. Eu queria ser agente de câmbio e bolsa, como o meu avô, para ganhar dinheiro e viver bem. Deus meteu-se na minha vida e mudei os meus planos: aqui em Roma, estudei Direito Canónico no Angélico e Direito Civil na Universidade Lateranense, as licenciaturas e os doutoramentos.
-Quantos irmãos são?
-Poderíamos ter sido onze, embora só tenhamos nascido oito. Eu sou agora o mais novo dos sete que vivemos agora. Por isso tenho quase cinquenta sobrinhos-netos. A minha família procede de Guipúzcoa, mas já a partir dos meus avós se fixou em Madrid.
-Recorda algo da guerra civil?
-Passamo-la em Elizondo e em S.Sebastián. Fomos para lá, fugindo de Madrid, porque
-segundo nos disseram- o porteiro da casa tinha-nos denunciado. E, realmente, vieram revistar o andar da rua de Españoleto, onde vivíamos. Eu era um miúdo e só retenho um par de impressões: como a minha família seguia através da rádio a marcha da guerra; e nunca me apercebi de rancor, nem muito menos de ódio para com os que lutavam na facção contrária. Os meus pais o que queriam era que acabassem todas aquelas perseguições dos comunistas. Durante a guerra fui ao colégio dos marianistas. Depois, já de regresso a Madrid, ao dos Maristas da rua Garcia de Paredes. Muito próximo, por certo, onde onze anos antes -em 1928- Josemaría Escrivá terá “visto” o Opus Dei. A seguir, o colégio mudou-se para a Rua de Eduardo Dato, que antes se chamava Passeio do Cisne, onde passava o “eléctrico do Caranguejo”... Além desta coincidência de Garcia de Paredes, também vivi em pequeno, no mesmo prédio onde havia um centro do Opus Dei. Em Martínez Campos, 15. Recordo muito bem o dia em que se mudaram com os móveis para outro sítio. Seria 1940 ou 1941. O porteiro, como explicação, tinha-nos dito: “São uns escritórios, onde também vivem uns senhores”. Saberia mais o homem, mas só disse isso. O curioso é que o gravei mentalmente. Passado tempo, quando soube que o fundador da Obra tinha ido muito a essa casa, e que costumava subir ou descer pelas escadas, em vez de ir pelo elevador, pensei que talvez nos tivéssemos cruzado alguma vez. E teria rezado por mim ao meu Anjo da Guarda, pedindo a minha vocação. Costumava fazê-lo, quando passava junto a alguém.
-Como chegou a conhecer a Obra?
-Eu tinha um primo que era do OpusDei, mas nunca me tinha interessado em lhe fazer perguntas. Na revista Catolicismo apareceu, em 1944, uma reportagem sobre os três primeiros membros do Opus Dei -engenheiros- que se ordenaram sacerdotes. Um amigo meu viu essa revista, em sua casa, casualmente, em 1948, e mostrou-a aos seis ou sete amigos do grupo. Aquilo era de grande novidade, e aos meus amigos intrigou-os bastante. A mim não, na verdade. Um domingo pela tarde, a 6 de Junho, íamos ao cinema. O meu amigo telefonou-me, a propor-me uma mudança de plano: “apetece-te ir a uma residência, em Diego de Léon, para sabermos o que é o Opus Dei?”. E lá fomos os seis. Atenderam-nos muito bem. Não em grupo, mas cada de nós pode falar com um membro da Obra e perguntar o que nos interessava saber. Ao sair dali, eu levava no bolso uma vistosa fotografia de Isidoro Zorzano, um engenheiro do Opus Dei, cujo processo de beatificação se acabara de iniciar. Pareceu-me um “santo laico” atractivo, ao que se podia imitar. Isto sucedia na véspera da morte do meu pai. Ele estava a preparar as férias de verão familiares em San Sebastián, quando sofreu um enfarte. Como a notícia não nos foi dada de imediato, mas disseram-nos que estava muito grave, recordo que eu rezei por ele, com a pagela de Isidoro.
Esse verão ficamos em Madrid. Nunca tinha sido assim. E isso deu-me ocasião para frequentar um centro da Obra que -outra casualidade!- havia na minha mesma rua: os Echevarría tínhamos voltado para a rua Españoleto. E “Españoleto” era o nome do andar da gente jovem onde, sempre que lá ia, davam-me algum trabalhito da casa: lixar umas cadeiras velhas para voltar a pintá-las de novo; ajudar na decoração; deitar uma mão nalgum arranjo de carpintaria... Gostei de me sentir útil, e de ser tratado como alguém que pode fazer algo pelos outros. A 8 de Setembro pedi admissão na Obra. Tinha 16 anos.
-E o que é que o atraiu?
-O ambiente de alegria: estudavam e trabalhavam como loucos, mas estavam muito contentes. O que, sem mudar de estado, que cada um se pudesse santificar com a sua profissão. O horizonte imenso de poder levar Cristo a muita gente. Desde muito pequeno era muito sociável e gostava de ter muitos e bons amigos.
-Como conheceu o Fundador do Opus Dei?
-O Padre vivia já em Roma desde 1946, embora viesse a Espanha com certa frequência. Numa dessas viagens, em Novembro de 1948, convidaram-nos para uma tertúlia com ele em Diego de León. O sentimento de filiação para com quem é o Padre na Obra, é um traço consubstancial ao carisma da vocação no Opus Dei. Sem que ninguém mo impusesse, eu estava desejando conhecer o Padre. Ao acabar aquela tertúlia -seríamos uns trinta e cinco-, o Padre dirigiu-se aos três que éramos mais recentes e propôs-nos ir nessa mesma tarde conhecer Molinoviejo, uma casa em pleno campo de Segovia, para convívios e retiros.
Metemo-nos seis num velho Vauxhall. Atrás ia o Padre. Eu, diante, compartilhando o assento com outro. Guiava o doutor Odón Moles. Durante o trajecto fizemos de tudo: conversámos, cantamos, rimos, rezámos... O Padre falava-nos de inumeráveis apostolados que a Obra tinha que fazer por todas as partes do mundo, e que estavam à nossa espera. Com a sua voz de barítono, bem timbrada e bem modulada, cantava canções da rua, canções de amor que ele endereçava para Deus.: “tenho um amor que me enche de alegrias...”. Brincava connosco: quando numa curva da estrada se desenhava uma casota velha, feia, em ruínas dizia: olhai!... isso é Molinoviejo!” Caímos na esparrela um par de vezes: Ah, bom, eu enjoei, vomitei... e como ia de preto pelo luto do meu pai, fiquei um desastre. Ajudou-me a limpar-me, e resolveu a difícil situação, fez que viajássemos com a janela aberta apesar de estarmos em Novembro e manifestou-me tanto carinho que, realmente me senti ajudado, não já por um pai, mas por um paizinho.
Em Molinoviejo fomos ver a ermida e o oratório. Uns quantos universitários, dirigidos por um aluno de Belas Artes, estavam a decorá-lo. Nas costas de madeira dos bancos corridos do oratório tinham gravado invocações marianas da ladaínha de Nossa Senhora. Impressionou-me a ternura e a força do amor do Padre em relação à Virgem: ao ir lendo-
-as, pronunciava-as, uma a uma, com voz quente e vibrante, como se dissesse piropos a uma mulher que se ama. Aquilo era, ao mesmo tempo, muito delicado e muito enérgico, muito espiritual e muito viril. Notava-se que quando dizia essas frases, o Padre estava a rezar.
(Agora, ao reviver aquela cena já tão distante, a Javier Echevarría brilham-lhe os olhos. Engole saliva. Com um leve arquear de sobrancelhas, pede-me que passe a outra pergunta).
-A D. Álvaro del Portillo, onde é que o conheceu?
-No ano seguinte em 1949, eu vivia em “Gurtubay”, um centro da Obra para universitários. Uma manhã, celebrou-nos a Missa um sacerdote alto que pronunciava o latim “à romana”. Pensei que seria estrangeiro. Era D. Álvaro, que vivia em Roma e estava de passagem em Madrid. Logo a seguir ao pequeno almoço fomos todos à Universidade. Mas tivemos tertúlia com ele depois do almoço. Guardo recordações daquele primeiro encontro: falou-nos muito de fidelidade e amor à Igreja e ao Papa, fosse quem fosse; e ofereceu-nos um pacote de Chesterfield, que lhe tinham dado no Vaticano. Eram tempos de restrições em Espanha. E, acostumados ao tabaco negro e barato, de sabor áspero, fumar aqueles cigarros americanos era um luxo de filme.
-Quando pensa em São Josemaría Escrivá que ideia, que vivência forte lhe vem à cabeça?
-Vem-me o facto assombroso e real, muito real, do seu amor apaixonado a Jesus Cristo e da sua paternidade. Tive a sorte de viver vinte seis anos junto dele. E sempre me surpreendia a sinceridade do seu carinho para cada pessoa da Obra, ainda que nunca o tivesse visto. O que sucedia a uma filha a um filho, o que lhe contassem por carta, o que lhe dissessem numa tertúlia... tudo lhe interessava, tudo o afectava como algo próprio, por que nos queria deveras, como filhos da sua oração e da sua mortificação. Entre ele e qualquer de nós não houve nunca a mais ténue barreira: nem a de uma fina mortalha de cigarro. Viu-o chorar, sofrer, pela morte de filhas e filhos aos que não conhecia com mais intensidade do que se se tratasse dos seus próprios parentes. Quando lhe davam alguma notícia dessas, ficava humanamente destroçado, sem levantar cabeça.
-E ao fechar os olhos, como é que o vê?
-Vejo-o entre a gente, a falar de Deus... Vejo-o indo, saindo ao encontro dos outros... Vejo-
-o entregando-se a todos nós, a tempo completo, sem poupar-se um esforço, sem se reservar um minuto para si mesmo. Tudo o que era nosso -uma dor de dentes, um exame, uma preocupação familiar, um jogo de futebol que íamos jogar-, tudo lhe era conhecido e familiar. Éramos a sua vida!
-De D. Álvaro, com quem viveu quarenta e quatro anos, que imagem lhe vem à mente?
-A D. Álvaro vejo-o eclipsando-se sempre, num seguindo plano, onde pudesse ver, ouvir e atender o nosso Padre: olhando-o, inclusive fisicamente, com o desejo de aprender dele. E isso, apesar dos seus magníficos dotes humanos, com que deslumbrava as pessoas. Sem lisonjas, em justiça, tenho que dizer que D. Álvaro, pela sua extraordinária inteligência, pela sua ampla cultura, pela sua requintada educação, pela sua capacidade de relacionamento social, pela elevação do seu pensamento, pela profundidade da sua vida interior, e por uma longa série de virtudes morais que viveu com heroísmo, foi um gigante. E sei que não exagero. Contudo, viu-o sempre pendente do nosso Fundador, secundando-o em tudo, para o ajudar a fazer o Opus Dei. Ele foi um fiel executor do que o Fundador indicou.
-É certo que monsenhor Escrivá tinha predilecção por si?
-Por mim?... Não, não!... Isso não. Talvez, comigo e com outros que vivíamos próximo dele, tinha mais confiança. Mas nunca teve filhos predilectos. De ter tido algum, seria D. Álvaro, porque era um instrumento muito valioso para a Igreja e para a Obra. E convém recordar que o Fundador costumava dizer: “a D. Álvaro não o elegi eu: foi Deus quem o pôs ao meu lado”.
Eu senti-me muito querido pelo Fundador. Mas também muito exigido. Corrigiu-me, e com fortaleza, em várias ocasiões. Uma vez chegou a dizer-me: “meu filho, se não mudas, não poderei confiar em ti”. Foi duro ouvi-lo, mas o Padre tinha razão e a mim serviu-me muito. Contudo, um par de anos mais tarde, pediu-me que fosse seu secretário: “podes abrir todas as gavetas, porque eu não vou ter nenhum segredo para ti”. E não é que monsenhor Escrivá tivesse mudado de opinião: é que nunca tinha deixado de confiar em mim. Mas eu era um mais. Isto é assim.
-A si escolheu-o Escrivá para o trazer a Roma?
-Não. ofereci-me eu. em 1950 estava aqui a fazer um curso -umas semanas- de formação, quando o Padre comentou que nesse ano, de Espanha, viriam sete fazer o Colégio Romano da Santa Cruz. E eu disse: “pois eu gostaria de ser um desses sete”. De imediato, o Padre respondeu-me. “Fala com D. Álvaro. Se arranjas o assunto com a tua família, eu não tenho inconveniente”. Voltei a Madrid para falar pessoalmente com a minha mãe, e não por carta. Solucionei-o e ... aqui estou.
-Porque é que Escrivá o escolheu para ser seu “custódio”?
-Ah, não sei. Nunca lho perguntei. Em 1955 ordenei-me sacerdote. Em 56, como consequência do Congresso Geral do Opus Dei -celebrado no Hotel Pfauer, um hotel modesto de Einsieldn (Suíça)-, o nosso Padre disse-me: “Javier, tenho de eleger dois custódios, de entre uma lista de nove nomes que me deu o Conselho. Eu desejaria que um fosse D. Álvaro e tu o outro. Estás de acordo?”. Eu tinha 24 anos e pensei que havia muitos outros que levavam mais tempo na Obra, que tinham mais experiência e mais valores, e que podiam fazê-lo melhor do que eu. Mas fiei-me na graça de Deus e do descernimento do Padre. Logo que respondi que aceitava o encargo, disse-me: “Pois pega no Codex e estuda as tuas novas obrigações, para as cumprir com todo o rigor”.
-E em que consiste isso de ser Custódio?
-A mim incumbia-me cuidar o Padre em tudo o que era material: desde decidir se tinha que comprar-lhe uns sapatos, até acompanhá-lo ao médico, preparar uma viagem... E também fazer-lhe -não direi “correcções”- indicações concretas sobre questões externas, perceptíveis, nas em que pudesse melhorar ou actuar de outro modo.
Depois, em 1975, também D. Álvaro me encomendou ser seu custódio, mas na ordem espiritual: levando a direcção da sua alma.
-Esta fórmula de três -O Padre e os seus ‘Custódios’ -permite uma concatenação, uma continuidade sem vazios: quando morre um, ficam os outros dois e um terceiro incorpora-
-se “de novo”...
-Mas não é essa a função. Os custódios existem para que o Prelado, o Padre, não viva só, não seja um homem isolado lá em cima, e, além disso, para que possa ser ajudado para ser melhor. Mas essa continuidade só se deu a partir de sermos custódios D. Álvaro e eu. Antes sempre havia um custódio que mudava. Só D. Álvaro permanecia.
-Diria que D.Álvaro era um homem “bonacheirão”?
-Nem falar nisso! Era um homem muito bom, muito santo, muito entregado aos outros; mas com um carácter “esculpido” e uma grande fortaleza. Nas tarefas de governo da Obra, ouvi-o repreender com firmeza, se se atrasava um trâmite, algo que nos solicitavam doutro país: “não podeis deixar cair os papeis no esquecimento; não há coisa mais desalentadora do que o silêncio administrativo”.
Há quarenta anos eu tinha o encargo de levar as contas do Colégio Romano. Uma vez o balanço não dava certo: faltavam 600 liras, 60 pesetas, uma quantia insignificante para uma casa onde vivíamos trinta e tantas pessoas. Quando eu esperava que D. Álvaro me dissesse: “não te preocupes!”, disse-me: “Tens que encontrá-las, é tua obrigação responder até ao último cêntimo. Esse dinheiro não é teu: administra-lo em nome de outros”.
Ou mais recentemente, sendo ele Prelado e eu Vigário Geral, dizia-me: “Não fazemos as coisas para que nos vejam, mas vêem-nos. Deves actuar sempre na presença de Deus,
porque com qualquer gesto, com qualquer palavra, com qualquer pormenor podes escandalizar a gente ou aproximá-la a Deus”.
Com o Fundador, sem niquices, mas não lhe passava uma. Recordo que, às vezes, o nosso Padre comentava: “Quereis-me tão santo, tão santo, que não me deixais fazer nada!”.
-Parece-me que o desafio do sucessor é que, entre santo e santo, deixaram a fasquia muito elevada...
-Pois sim, deixaram a fasquia muito elevada, mas também deixaram uma vara muito forte. Por um lado, eles ajudam, desde o céu. E por outro, está muito nítido o exemplo de como eles actuaram. Bastará pensar, ante qualquer situação: que faria o Fundador? ou, que faria D. Álvaro?, para ter a certeza quase total de que, seguindo por ai, se acerta.
-Mas esse seguimento imitativo, não leva consigo o risco de que cada Prelado seja como que a “fotocópia” do anterior?
-Não. D. Álvaro imitou São Josemaría só no que era do espírito da Obra, mas tiveram personalidades completamente distintas. Talvez por isso se harmonizavam tão bem. Os dois eram muito cultos, enquanto a conhecimentos teológicos, históricos, literários, filosóficos, artísticos, canónicos... E em todas essas matérias tinham muitas coincidências, muita compenetração. Agora bem, o nosso Padre era muito intuitivo e rapidíssimo em acção. D. Álvaro, mais reflexivo. O nosso Padre reagia ante os factos de modo mais imediato, que podia parecer mais expontâneo. D. Álvaro tinha também essa reacção genuína, expontânea, mais não a manifestava até tê-la amadurecido por dentro.
Recordo agora que em 1958, quando morreu Pio XII, a televisão italiana emitiu umas imagens mórbidas, tiradas durante a sua agonia. A Ordem dos Médicos de Itália suspendeu o médico do Papa que autorizou essa filmagem no quarto do Romano Pontífice. Pois bem, monsenhor Escrivá comoveu-se, doeu-se muitíssimo como um bom filho que vê maltratado o seu pai. D. Álvaro ficou em silêncio. Só mais tarde comentou: “O Padre tem razão. Isso é indignante. A ver, que filho consente que com a agonia do seu pai ou da sua mãe se faça um espectáculo?”.
Podemos ver outro aspecto: a veracidade. São Josemaría era um homem claro, sincero, directo, dizia o que se lhe punha por diante e chamava ao pão, pão. D. Álvaro, com outro temperamento mais tranquilo, era uma pessoa sem duplicidade, sem retranca: transparente!
-Mas em gostos, em inclinações eram muito diferentes?
-Sim! Por exemplo, Escrivá não fazia outro desporto além de andar a pé. Ao contrário, D. Álvaro tinha praticado muito a natação, o jockey, o cross, o tenis, a equitação, o futebol...
As diferenças viam-se mais patentes nas coisas mais pequenas. Por exemplo, D. Álvaro sentia-se muito cómodo com o fato “clergyman”; o Fundador, por seu gosto, não o teria usado nunca. Recordo que em setembro de 1968, viajamos a Cádiz de barco a partir de Nápoles. Isso de estar vários dias embarcados ao nosso Padre não lhe apetecia nada: “parece-me uma perda de tempo, um encerramento numa casca de noz”. Em contra partida, a D. Álvaro o entusiasmava porque “estar no mar alto -dizia- relaxava muitíssimo.
Sim eram muito diferentes, mas percorreram o mesmo caminho, viveram o mesmo espírito e são... dois santos do mesmo calibre.
-Com tudo isso, quer dizer que o sucessor terá o seu próprio estilo, mas deverá pisar onde pisaram os predecessores?
-Se tem senso comum, pisará onde pisou Josemaría Escrivá, que foi onde pisou Álvaro del Portillo. O que não seja isso, é apartar-se do caminho mãe. Ora bem, essa fidelidade ao “caminho” não lhe tira a ninguém o seu próprio modo de andar. No Opus Dei, a personalidade não se anula, realça-se.
-Mas, que margem de liberdade criativa em inovação pode ter o novo Prelado?
-Liberdade total. A Obra nunca necessitará um “aggiornamento” porque somos gente da rua e estamos sempre ao dia. O novo Prelado terá toda a capacidade criativa e toda a margem de manobra que necessite para aproveitar as circunstâncias presentes e pôr ai o espírito da Obra. Não se trata de copiar o que já foi feito. As realidades quotidianas com as que se têm de santificar hoje são diferentes das que viveu o Fundador. O novo Prelado deverá afrontar a sua própria hora histórica.
-A Obra poderá viver tranquila se o próximo Papa não lhe for tão favorável, tão propício, como João Paulo II?
-Eu sei qu Monsenhor Escrivá nunca se sentiu abandonado, nem posto de lado, nem pouco querido pelos Romanos Pontífices. Isso é uma falácia, inventos de uns que outros repetem. Eu ouvi-lhe dizer muitas vezes: “Da Santa Sé, do Santo Padre, não nos podem vir senão bens, ainda que nalgumas ocasiões pareçam contradições”. Para nós, o Papa -seja quem for- sempre será o Vigário de Cristo, com uma responsabilidade diante de Deus que tem que cumprir. O que ele decida, recebê-lo-emos sempre como vindo do mesmo Cristo. portanto, ainda que por hipótese de que alguma decisão do Papa nos resultasse dolorosa, ou incompreensível, seria boa para nós. Assim que a Obra nunca se sentira intranquila, nem insegura, nem mal querida. Uma coisa é a simpatia, e outra a caridade e o carinho de quem governa a Igreja, que nunca nos poderá faltar.
Está por escrever a história das relações pessoais entre os cinco últimos Papas e os sucessivos Padres que houve no Opus Dei. Por exemplo, disse-se com falsidade que Paulo VI não estimava monsenhor Escrivá. Pois bem, consta-nos -ratificado pelos seus secretários- que usava Caminho como livro de meditação habitual. E algo mais: numa das suas últimas audiências, Paulo VI disse ao Fundador, face a face: “monsenhor, o senhor é um santo”. E isso um Papa não o diz para adular. E não digamos já da amizade, do trato natural, confiado e expontâneo entre João Paulo II e monsenhor Del Portillo. O Papa via em D. Álvaro um filho leal e sincero que lhe dizia as coisas como eram, não como queria que fossem.
-Pode-se dizer que João Paulo II se tem apoiado no Opus Dei?
-Sim, pode-se dizer. Mas o de menos é o que se diga: o importante é que este Papa e todos os que venham depois se têm que poder apoiar no Opus Dei, porque o Opus Dei está para isso: para servir a Igreja como ela tem que ser servida. A nós expandir-nos pelo mundo e ter muitas vocações, se não é para melhor servir a Igreja, não nos interessa para nada!
-É necessário que o Prelado do Opus Dei seja bispo?
-Não é necessário. Mas a experiência demonstrou que é muito bom para a Obra e para as relações com os outros bispos.
-Monsenhor Echevarría, o senhor passou 44 anos dedicado “full time” a viver... a vida do outro. O senhor tem tido a sua vida própria? O senhor tem podido ser o senhor?
-Sim tenho tido a minha própria vida. Eu nunca teria sonhado realizar a minha vida de um modo tão ambicioso. Vivendo ao meu modo, eu talvez tivesse uns horizontes mais estreitos, uns voos mais curtos. De não ter estado, dia após dia, junto de dois homens dessa estatura humana e espiritual, nem me teria proposto a ambição de me entender com todo o mundo, de me preocupar por todas as almas. Nem o interesse por todas as culturas. Nem o afã de serviço aos outros. Nem a amplitude de pontos vista, para ver os problemas da Igreja e da sociedade civil. Nem me teria aberto para conhecer -não como uma curiosidade, mas como uma preocupação pessoal- a situação dos homens em todos os países do mundo, as suas condições de trabalho, o seu nível de liberdade e de dignidade... Viajando e vendo viver no seu próprio terreno gentes de todas as nações, de todas as condições sociais, de todas as raças, de todas as religiões... Eu, como homem do meu tempo, como cristão e como sacerdote, sou uma pessoa ambiciosamente realizada. E tenho o coração mundializado, graças a ter vivido com dois homens de espírito grandioso, cristãmente grandioso.
-Há poucos anos sofreu um enfarte quando estava a pregar...
-Sim. Foi nas Astúrias.
-E aguentou até ao fim?
-Sim, mas... (começa a rir) porque não sabia que era um enfarte!
-E, compreenderia a quem não tivesse esse ânimo e deixasse a meias a sua prática?
-Não só compreenderia, como que o louvaria. É o que se tem que fazer: que o tratem para continuar a servir.
-É que circula já um cliché prefabricado sobre o senhor, como um homem rigoroso, exigente, duro, criado à sombra de Escrivá...
-Eu estou muito orgulhoso de ter-me “criado” próximo de monsenhor Escrivá. Teria gostado de ter aprendido mais dele! E o que me ensinou foi sempre a dilatar o meu coração de sacerdote. A ter os braços abertos para todo o mundo, viessem de onde viessem, viessem como viessem: ainda que se apresentassem como meus inimigos mortais. A qualquer hora, em qualquer lugar e circunstância, ter o coração aberto de par em par, para quem me necessite...
-Mas, D. Javier, o senhor tem génio...
-Sim, tenho génio. E tinha-o muito antes de conhecer monsenhor Escrivá.
-Quando morreu Escrivá, e estando ainda quente o seu corpo, D. Álvaro retirou-lhe o “lignum crucis”que levava ao pescoço numa corrente, e colocou-o “até que haja um novo Padre”. Agora, ao falecer D. Álvaro, pôs também essa relíquia da Santa Cruz?
-Sim mas não em seguida. Aos dois dias. Evitei fazer as mesmas coisas materiais que, anos atrás, tinha feito D. Álvaro, para que não se pensasse que havia uma presunção de continuidade. Vi o lignum Crucis dentro do armário de D. Álvaro. Pensei que estaria melhor sobre o peito de um sacerdote. Por isso o pus.
-E então sentiu sobre si “o peso” da Obra?
-Senti o peso da Obra. Mas também a força de Deus. A Obra, goste-se ou não se goste, é espiritualmente monolítica. Mais claro: “um só coração e uma só alma”. Estão a rezar todos para que eu acerte. E as cartas recebem-se aos milhares, de todos os recantos do mundo, de todo tipo de pessoas...
-Que é o “peso” da Obra?
-É a santidade de mais de setenta mil pessoas, que tem que responder a um compromisso com Deus, no seu trabalho, nos seus deveres de estado, no seu trato com os outros homens. E esse peso nota-se, porque todos somos frágeis e podemos não dar o dó de peito, ou estar desambientados nessa grande orquestra que é a Igreja.
-Nalguma ocasião, João Paulo II referiu-se ao Opus Di como uma potência: “O Opus Dei poderoso”...
-Sim, mas imediatamnte D. Álvaro disse-lhe: “Santidade, o nosso único poder, a nossa única força é a oração”. E o Papa, afirmando com a cabeça, respondeu: “A isso me referia”. Ao Papa impressionou-lhe uma carta que Monsenhor Del Portillo lhe escreveu do Santuário da Mentorella em 1978, ao iniciar-se o Pontificado. Nessa carta, oferecia-lhe todo o tesouro da Obra: a oração e as missas diárias, que então eram umas 60.000 e agora serão 74.000 e algumas mais.
-Quando aqui em “Villa Tevere” desce para rezar nessa cripta onde estão enterrados Escrivá e Del Portillo, os dois grandes “patronos” da Obra que pede o novo Prelado?
-Peço que seja um bom pastor, um pastor leal, que se entregue totalmente às suas filhas e aos seus filhos, sem que jamais os separe deles nem a mais leve barreira de fumo.