O tempo de uma presença (6): Tempo Comum, o domingo, dia do Senhor e alegria dos cristãos

«Não tenhais medo de dar o vosso tempo a Cristo!» Este conselho de S. João Paulo II refere-se principalmente ao domingo, dia de adorar a Deus e dia de descanso em família. Novo artigo da série sobre o ano litúrgico.

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O domingo é um dia especial da semana. Tira-nos da rotina do dia a dia, que às vezes faz com que os dias se apresentem quase iguais. No domingo, podemos realizar atividades muito diferentes. No entanto, há algo decisivo neste dia. É um dom de Deus para que possamos relacionar-nos com Ele, para celebrar com Ele o acontecimento que nos introduziu numa nova vida: a Sua Ressurreição. S. João Paulo II convidou-nos a redescobrir o domingo como um tempo especial para Deus: «Não tenhais medo de dar o vosso tempo a Cristo! Sim, abramos o nosso tempo a Cristo para que Ele possa iluminá-lo e dirigi-lo. É Ele quem conhece o segredo do tempo e o segredo da eternidade, e nos entrega “o Seu dia” como um dom sempre novo do Seu amor»[1].

Todos os domingos vamos à Missa porque é precisamente o dia da Ressurreição do Senhor.

Com razão, este dia pode ser chamado «verdadeira Páscoa da semana»[2]: a sua celebração dá relevo aos outros seis dias. O domingo é «o fundamento e o centro de todo o ano litúrgico»[3]. Por isso, os Romanos Pontífices sempre insistiram na importância de cuidar a sua celebração: «Todos os domingos vamos à Missa porque é precisamente o dia da Ressurreição do Senhor. É por isso que o domingo é tão importante para nós»[4].

Santificado pela Eucaristia

Desde o início do cristianismo, o domingo tem um significado especial: «Por tradição apostólica, que nasceu do próprio dia da Ressurreição de Cristo, a Igreja celebra o mistério pascal todos os oito dias, no dia que bem se denomina “dia do Senhor” ou domingo»[5]. É um dia em que o Senhor fala especialmente ao seu Povo: «E fui arrebatado em espírito, no dia do Senhor, e ouvi, por trás de mim, uma voz forte, como de trombeta»[6], diz o vidente do Apocalipse. É um dia em que os cristãos se reúnem «para a fracção do pão»[7], segundo narra o livro dos Atos dos Apóstolos, referindo-se à comunidade de Tróade. Celebrando juntos a Eucaristia, os fiéis uniam-se à Paixão salvadora de Cristo e cumpriam aquele mandato de conservar este Memorial, que passariam às sucessivas gerações de cristãos como um precioso tesouro: Ego enim accepi a Domino, quod et tradidi vobis… «Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: na noite em que ia ser entregue, o Senhor Jesus tomou o pão», dizia S. Paulo aos de Corinto: «sempre que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor até que Ele venha»[8].

A carta apologética de S. Justino mártir ao imperador romano, em meados do séc. II, mostra-nos a perspetiva ampla que o domingo foi adquirindo nas consciências: «Celebramos essa reunião geral no dia do Sol, porque foi o primeiro dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria, criou o mundo, e também o dia em que Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos»[9]. Estas duas maravilhosas obras divinas formam como um único retábulo em que Cristo ressuscitado ocupa o lugar central, pois Ele é o princípio da renovação de todas as coisas. Por isso, a Igreja pede a Deus na Vigília Pascal «… que o mundo todo veja e reconheça que se levanta o que estava caído, que o velho se torna novo e tudo volta à integridade primitiva por Aquele que é princípio de todas as coisas, Cristo Nosso Senhor»[10].

A celebração do domingo tem um tom festivo, porque Jesus Cristo venceu o pecado, e quer vencer o pecado em nós, quebrar as correntes que nos afastam d’Ele, que nos encerram no egoísmo e na solidão. Desta forma, unimo-nos à exclamação jubilosa que a Igreja propõe para este dia na Liturgia das horas: Hæc est dies, quam fecit Dominus: exsultemus et lætemur in ea: «Este é o dia que fez o Senhor, n’Ele exultemos e nos alegremos[11]. Experimentamos o júbilo de saber que pelo batismo somos membros de Cristo, que na Sua glorificação nos une ao Pai, apresentando-Lhe as nossas petições e desejos de melhorar.

Que maravilhoso quadro contemplamos em cada domingo, quando nas paróquias e diferentes lugares de culto se reúnem as famílias cristãs

Esta alegria do encontro com o Senhor que nos salva não é individualista; celebramo-la sempre unidos a toda a Igreja. Durante a Missa do domingo, reforçamos a unidade com os outros membros da nossa comunidade cristã e tornamo-nos «um só corpo e um só Espírito, como uma só é a esperança na vocação a que fostes chamados. Há um único Senhor, uma única fé, um único batismo. Há um só Deus e Pai de todos, que está acima de todos, actua por meio de todos e Se encontra em todos»[12]. Por isso, «a assembleia dominical é um lugar privilegiado de unidade»[13], de modo especial para as famílias cristãs que «dão vida a uma das expressões mais qualificadas da sua identidade e “ministério” de “igreja doméstica”, quando os pais participam com os seus filhos na única mesa da Palavra e do Pão da Vida»[14]. Que maravilhoso quadro contemplamos em cada domingo, quando nas paróquias e diferentes lugares de culto se reúnem as famílias cristãs – pai, mãe, filhos, inclusive os avós – para adorar juntos o Senhor e crescer na fé acompanhados!

O carácter festivo da celebração dominical reflecte-se em alguns elementos litúrgicos, como a segunda leitura antes do Evangelho, a homilia, a profissão de fé e – excepto nos domingos do Advento e da Quaresma – o Glória. Como é óbvio, nesta Missa aconselha-se de modo particular o canto, que reflete o júbilo da Igreja perante a Ressurreição de Jesus.

A Liturgia da Palavra possui uma grande riqueza. Nela, a proclamação do Evangelho é central. Assim, durante o Tempo Comum e ao longo de três ciclos anuais, a Igreja propõe-nos uma seleção ordenada de passagens evangélicas em que percorremos a vida do Senhor. Antes recordamos a história dos nossos irmãos mais velhos na fé com a primeira leitura do Antigo Testamento durante o Tempo Comum, que está relacionada com o Evangelho, «para assim manifestar a unidade dos dois Testamentos»[15]. A segunda leitura, também ao longo de três anos, percorre as cartas de S. Paulo e de S. Tiago e faz-nos compreender como os primeiros cristãos viviam a novidade que Jesus nos veio trazer.

Em conjunto, a Igreja oferece-nos, como boa Mãe, um abundante alimento espiritual da Palavra de Deus, que solicita de cada pessoa uma resposta de oração durante a Missa, e depois o seu acolhimento sereno na vida. «Penso que podemos todos melhorar um pouco neste aspeto, diz o Papa: convertermo-nos todos em melhores ouvintes da Palavra de Deus para sermos menos ricos das nossas palavras e mais ricos das Suas Palavras»[16]. Para ajudar-nos a assimilar este alimento, cada domingo o sacerdote pronuncia uma homilia em que explica, à luz do mistério pascal, o significado das leituras do dia, especialmente do Evangelho; uma cena da vida de Jesus, o seu diálogo com os homens, os seus ensinamentos redentores. Deste modo, a homilia leva-nos a participar com intensidade na Liturgia Eucarística, e a compreender que o que celebramos se projeta além do final da Missa para transformar a nossa vida diária: o trabalho, o estudo, a família...

Mais do que um preceito: uma necessidade cristã

A Santa Missa é uma necessidade para o cristão. Como poderíamos prescindir dela se, como ensina o Concílio Vaticano II, «sempre que no altar se celebra o sacrifício da cruz, na qual “Cristo nossa Páscoa, foi imolado” (1Cor 5, 7), realiza-se também a obra da nossa redenção»[17]?

Quoties sacrificium crucis, quo “Pascha nostrum immolatus est Christus” in altari celebratur, opus nostrae redemptionis exercetur – a eficácia santificadora da Missa não se limita ao tempo que dura a sua celebração, mas estende-se a todos os nossos pensamentos, palavras ou ações, de maneira que é «o Centro e raiz da vida espiritual do cristão»[18]. S. Josemaria também comenta: «Talvez nos tenhamos perguntado algumas vezes como podemos corresponder a tanto amor de Deus; talvez nesses momentos tenhamos desejado ver claramente exposto um programa de vida cristã. A solução é fácil e está ao alcance de todos os fiéis: participar amorosamente na Santa Missa, aprender na Missa a ganhar intimidade com Deus, porque neste Sacrifício se encerra tudo o que o Senhor quer de nós»[19].

Sine Dominico non possumus: «não podemos viver sem a ceia do Senhor», diziam os antigos mártires.

Sine Dominico non possumus: «não podemos viver sem a ceia do Senhor», diziam os antigos mártires de Abitina[20]. A Igreja concretizou esta necessidade na obrigação dos fiéis participarem na Missa aos domingos e nos outros dias festivos de preceito[21]. Desta forma, vivemos o mandamento incluído no Decálogo: «Recorda-te do dia de sábado para o santificar. Trabalharás durante seis dias e cumprirás todas as tuas tarefas. Mas o sétimo dia é de descanso, consagrado ao Senhor, teu Deus»[22]. Os cristãos levam esse preceito à plenitude ao celebrar o domingo, dia da Ressurreição de Jesus.

O repouso dos domingos

O domingo é um dia para ser santificado em honra de Deus. Dirigimos o olhar ao nosso Criador, repousando do trabalho habitual, como nos ensina a Bíblia: «Porque em seis dias o Senhor fez o céu, a terra, o mar e tudo quanto contém, e no sétimo dia descansou; por isso, o Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou»[23]. Ainda que o facto de se ter um dia livre na semana possa ser justificado por razões meramente humanas, como um bem para a pessoa, a família e toda a sociedade, não podemos esquecer que o mandamento divino chega mais longe: «O repouso divino do sétimo dia não alude a um Deus inativo, mas sublinha a plenitude do que fora realizado, como que a exprimir a paragem de Deus diante da obra “muito boa” (Gen 1, 31) saída das Suas mãos, para lançar sobre ela um olhar repleto de jubilosa complacência»[24].

A própria revelação no Antigo Testamento acrescenta outro motivo da santificação do sétimo dia: «Recorda-te de que foste escravo no país do Egipto donde o Senhor, teu Deus, te fez sair com mão forte e braço poderoso. É por isso que o Senhor, teu Deus, te ordenou que guardasses o dia de sábado»[25]. A Ressurreição Gloriosa de Cristo é o cumprimento perfeito das promessas do Antigo Testamento. Com ela, a história da salvação, iniciada com os começos do género humano, chegou ao seu ponto culminante. Os primeiros cristãos passaram a celebrar o dia da semana em que Jesus Cristo ressuscitou como o dia de festa semanal santificado em honra do Senhor.

A libertação prodigiosa dos israelitas é uma figura do que Jesus Cristo faz com a Sua Igreja por meio do mistério pascal: livra-nos do pecado, ajuda-nos a vencer as nossas más inclinações. Por isso, podemos dizer que o domingo é um dia especial para viver a liberdade dos filhos de Deus; uma liberdade que nos leva a adorar o Pai e a viver a fraternidade cristã começando por aqueles que estão mais próximos de nós.

Graças ao descanso dominical, as preocupações e afazeres quotidianos podem reencontrar a sua justa dimensão.

«Graças ao descanso dominical, as preocupações e afazeres quotidianos podem reencontrar a sua justa dimensão: as coisas materiais, pelas quais nos afadigamos, dão lugar aos valores do espírito; as pessoas com quem vivemos recuperam, no encontro e diálogo mais tranquilo, a sua verdadeira fisionomia»[26]. Não se trata de não fazer nada ou somente atividades sem utilidade, ao contrário: «A instituição do Dia do Senhor contribui para que todos gozem do tempo de descanso e lazer suficiente, que lhes permita cultivar a vida familiar, cultural, social e religiosa»[27]. É um dia para dedicar especialmente à família o tempo e a atenção que talvez não consigamos prestar-lhe suficientemente nos outros dias da semana.

Em síntese, o domingo não é um dia reservado para si próprio, para concentrar-se nos próprios gostos e interesses. «Da Missa dominical parte uma onda de caridade destinada a estender-se a toda a vida dos fiéis, começando por animar o próprio modo de viver o resto do domingo. Se este é dia de alegria, é preciso que o cristão mostre, com as suas atitudes concretas, que não se pode ser feliz “sozinho”. Ele olha ao seu redor, para individuar as pessoas que possam ter necessidade da sua solidariedade»[28]. A Missa dos domingos é uma força que nos move a sair de nós próprios, porque a Eucaristia é o sacramento da caridade, do amor de Deus e do amor ao próximo por Deus. Entende-se assim como, no primeiro dia da semana, S. Josemaria experimentava uma particular vibração trinitária: «No domingo – dizia – é bom louvar a Trindade: glória ao Pai, glória ao Filho, glória ao Espírito Santo. Eu costumo acrescentar: e glória a Santa Maria. E… é uma coisa infantil, mas não me importa nada: também a S. José»[29].

Carlos Ayxelà


[1] S. João Paulo II, Dies Domini, n. 7.

[2] S. João Paulo II, Novo millenio ineunte, n. 35.

[3] Concílio Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, n. 106.

[4] Francisco, Audiência, 05/02/2014.

[5] Concílio Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, n. 106.

[6] Ap 1, 10.

[7] At 20, 7.

[8] 1Cor 11, 23-26.

[9] Apologia I, 67,7.

[10] Missal Romano, Vigília Pascal, oração depois da 7.ª leitura.

[11] Sl 117, 24.

[12] Ef 4, 4-6.

[13] S. João Paulo II, Dies Domini, n. 36.

[14] Ibid.

[15] Introdução ao Leccionário da Missa, n. 106.

[16] Francisco, Discurso, 04/10/2013.

[17] Concílio Vaticano II, Lumen gentium n. 3.

[18] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 87.

[19] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 88.

[20] S. João Paulo II, Dies Domini, n. 46.

[21] Código de Direito Canónico, can. 1247.

[22] Ex 20, 8-10.

[23] Ex 20, 11.

[24] S. João Paulo II, Dies Domini, n. 11.

[25] Dt 5,15.

[26] S. João Paulo II, Dies Domini, n. 67.

[27] Catecismo da Igreja Católica, n. 2184

[28] S. João Paulo II, Dies Domini, n. 72.

[29] S. Josemaria, Notas de uma reunião familiar, 29/05/1974.

Carlos Ayxelà