Índice
- Introdução: Strathmore
- Semear Amor: «Põe amor onde não há amor e encontrarás amor»
- BeDoCare: «É bom que existas. [...] É necessário que existas»
- Os desafios do individualismo e do consumismo
- O legado de São Josemaria na família, no trabalho e no cuidado dos outros
- Conclusão: atitude de escuta e “cultura do dom”
1. Introdução: Strathmore
Em 1957, Mons. Gastone Perrelli, Delegado Apostólico para a África Oriental e Ocidental, pediu a São Josemaria, fundador do Opus Dei, que promovesse uma universidade com espírito católico no Quénia. Naquele momento, o país caminhava para a independência, alcançada em dezembro de 1963. Dois membros do Opus Dei chegaram a Nairobi em 1958 e, em 1961, teve início Strathmore College.
Strathmore foi o primeiro college interracial da África Oriental. Fora fundado com a condição expressa de ser “interracial” e “aberto a não católicos e não cristãos”[1]. Em 1962, as mulheres do Opus Dei fundaram, com as mesmas condições, Kianda College[2]. O mesmo critério orientou os inícios do Opus Dei na Nigéria e noutras partes do continente africano[3]: «Não há senão uma raça, a raça dos filhos de Deus»[4], proclamou muitas vezes São Josemaria. Do ponto de vista institucional, tratou-se de uma realização extraordinária, um verdadeiro sinal de fraternidade antecipada ao seu tempo. Mas o núcleo da reflexão de hoje é este: para que as instituições prosperem e perdurem ao longo da história, precisam de algo mais do que ideais nobres e estruturas sólidas. Necessitam do “sim” diário das pessoas que as integram – a sua generosidade, compromisso e espírito de serviço – para lhes dar vida. Com essa resposta viva, mesmo as instituições maiores e mais expostas à rigidez não só subsistem, como se tornam fontes de renovação e fecundidade para gerações. É esta a tensão criativa que percorre a história: as estruturas são necessárias, mas uma cultura do dom é igualmente vital.
Strathmore e Kianda não são apenas monumentos a uma visão passada; são um convite contínuo. Cada geração de professores, estudantes e funcionários é chamada a escolher de novo, a tornar a abertura, a liberdade e a fraternidade uma realidade viva, e não apenas belas palavras na página da missão de um site na Internet. É precisamente por isso que BeDoCare começa com a palavra BE (SER): só ao convertermo-nos, ao moldarmos quem somos interiormente, o nosso fazer (DO) e o nosso cuidar (CARE) podem ter a profundidade e a consistência necessárias para sustentar uma verdadeira cultura do dom.
2. Semear Amor: «Põe amor onde não há amor e encontrarás amor»
A sementeira é uma das imagens de esperança mais marcantes na Escritura. Uma semente é pequena e frágil, e facilmente passa despercebida. Contudo, uma vez na terra, contém um poder oculto. Jesus diz-nos: «Saiu o semeador para semear a sua semente» (Lc 8, 5). E o semeador espalha não com moderação, mas em abundância, quase temerariamente, confiando a Deus a colheita.
O amor funciona da mesma forma: dado livremente, para além de qualquer cálculo, dá fruto porque Deus o faz crescer. São Josemaria via no gesto do semeador a magnanimidade do próprio Deus, e também o modo como o Opus Dei devia estender-se: difundindo a semente da santidade generosamente, em todas as circunstâncias, abundantemente, sem distinção de pessoas ou ambientes, sem interesse próprio. A sua mensagem é a chamada universal à santidade:
«Chama cada um à santidade, pede amor a cada um: jovens e velhos, solteiros e casados, sãos e doentes, cultos e ignorantes, trabalhem onde quer que trabalhem, estejam onde quer que estejam»[5].
Semear é partilhar o amor que recebemos. Cada coração ganho para Cristo torna-se um novo semeador. E cada pequeno dom – um gesto de paciência, uma palavra de incentivo, um sacrifício escondido – prolonga a corrente.
São João Paulo II recordou-nos: «O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível [...] se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor, se o não experimenta e se o não torna algo seu próprio, se nele não participa vivamente»[6].
Semear amor é, portanto, o início de uma nova cultura. Mas deve ser feito ao estilo de Deus: com a mão aberta, confiante, generosa.
São João da Cruz exprimiu-o assim: «Põe amor onde não há amor e encontrarás amor»[7].
Isto acontece quando damos livremente aos outros e criamos as condições para uma resposta igualmente livre, pois um dom deixa de ser dom quando traz consigo a expectativa de recompensa. Esta dinâmica dá origem a uma espiral de doação que é também dar vida, um processo cujos efeitos desafiam qualquer quantificação. Um exemplo notável ocorreu nos Estados Unidos, em 2011, quando um dador de rim altruísta, agindo sem qualquer benefício pessoal, iniciou uma cadeia nacional de transplantes. A sua decisão desencadeou uma sequência de trocas que salvou dezenas de vidas, demonstrando o efeito dominó incalculável da verdadeira generosidade[8].
3. BeDoCare: «É bom que existas. [...] É necessário que existas»
A nossa identidade mais profunda é sermos filhos de Deus. É a fonte do nosso significado. Daí nasce o desejo de nos tratarmos uns aos outros como verdadeiros irmãos e irmãs, filhos do mesmo Pai, partilhando a mesma dignidade. E a forma concreta de viver esta identidade é através do dom de si: amando-nos e cuidando-nos mutuamente. Como declarou o prelado do Opus Dei na primeira Conferência BeDoCare, «somos corresponsáveis por cuidar do mundo, estabelecendo relações baseadas na caridade, na justiça e no respeito, sobretudo superando a doença da indiferença»[9].
De facto, somos corresponsáveis pelo crescimento uns dos outros. Como explica o Cardeal Ratzinger: «O homem é essa estranha criatura que necessita não só do nascimento físico, mas também da valorização para subsistir. Esta é a raiz do que chamamos hospitalidade ou cuidado [...] Para que um indivíduo se aceite a si mesmo, alguém deve dizer-lhe: “É bom que existas”. Deve dizê-lo, não com palavras, mas com aquele ato de todo o ser que chamamos amor. Porque a forma do amor é querer a existência do outro e, ao mesmo tempo, fazê-la florescer de novo. A chave do eu reside no tu; o caminho para o tu passa pelo eu»[10].
Viktor Frankl, o psiquiatra vienense no campo de concentração de Auschwitz, experimentou esse amor que lhe deu vida quando um dia um capataz lhe deu em segredo um pedaço de pão. Ele afirma: «Foi muito mais do que o pequeno pedaço de pão que me comoveu até às lágrimas naquele momento. Foi o “algo” humano que este homem também me deu: a palavra e o olhar que acompanharam o presente»[11]. Se isto pode acontecer a nível humano, com o advento do cristianismo, como acrescenta Joseph Ratzinger, já não dizemos apenas ao outro “é bom que existas”, mas “é necessário que existas”[12]. Esta é a raiz do cuidado. Não é pena nem condescendência, mas o reconhecimento da dignidade do outro, enraizada na imagem de Deus que nele habita.
O legado de São Josemaria não é principalmente teórico, mas existencial. Ele iniciou na Igreja um caminho de santificação na vida corrente. Descobrir Deus no trabalho e na vida quotidiana muda a nossa forma de ver os outros: todos merecem amor e justiça; todos são dignos da nossa auto-doação. É isso que se está a fazer em BeDoCare: recordar a cada pessoa que a sua existência não só é boa, mas necessária, e que na sua fragilidade convoca o melhor da nossa humanidade.
Como São Josemaria repetia muitas vezes: «Tu, pela tua condição de cristão, não podes viver de costas para nenhuma inquietação, para nenhuma necessidade dos homens, teus irmãos»[13].
4. Desafios do Individualismo e do Consumismo
Mas esta perspetiva encontra um ambiente hostil. O individualismo impele-nos a agarrar, acumular e medir cada relação pelo benefício; o consumismo alimenta uma insatisfação permanente, deixando pessoas e sociedades inquietas e fechadas em si mesmas. Juntos, corroem os laços pessoais e comunitários, deixando os mais frágeis – os doentes, os pobres, os não-nascidos, os idosos, os migrantes – numa situação ainda mais vulnerável. O resultado é a fragmentação e até a agressividade, porque acabamos por defender “o que é nosso” a qualquer preço.
Esta combinação conduz ao que o Papa Francisco chamou “cultura do descarte”: «Há quem presuma poder determinar, com base em critérios utilitaristas e funcionais, quando uma vida tem valor e merece ser vivida. Este tipo de mentalidade pode levar a graves violações dos direitos dos mais frágeis, a grandes injustiças e desigualdades, quando se é guiado predominantemente pela lógica do lucro, da eficácia ou do êxito»[14].
A tentação é manter estes desafios no plano abstrato. Mas não são abstratos: invadem os espaços mais íntimos da vida. Fraturam a família, reduzem o trabalho a mera transação e desgastam o cuidado mútuo. Eis porque o legado de São Josemaria nos interpela com tanta urgência. E porque a lógica do dom deve ser replantada precisamente onde o individualismo e o consumismo mais profundamente nos ferem.
5. O Legado de São Josemaria na família, no trabalho e no cuidado dos outros
a. O dom na família
A família é a primeira escola do dom. No ambiente familiar, os atos escondidos de serviço – lavar a loiça, tratar uma ferida, passar a roupa para um evento especial – tornam-se numa aprendizagem quotidiana do amor.
Esta convicção levou São Josemaria a afirmar que o matrimónio é uma vocação cristã, um chamamento de Deus[15]: «Os esposos cristãos têm de ter consciência de que são chamados a santificar-se santificando, a ser apóstolos, e de que o seu primeiro apostolado está no lar. Devem compreender a obra sobrenatural que significa a fundação de uma família, a educação dos filhos, a irradiação cristã na sociedade»[16].
Para muitos, a “família” inclui naturalmente uma rede alargada de primos, tios, tias e avós. Uma criança não cresce sozinha; é criada por toda uma comunidade. Os avós transmitem sabedoria, os irmãos mais velhos assumem responsabilidades em relação aos mais novos e os parentes intervêm quando os pais enfrentam dificuldades. Os fardos e as alegrias de um lar são partilhados por todos. Esta solidariedade viva nasce de se pertencer uns aos outros e de reconhecer que todos somos filhos de Deus.
Mas o consumismo mina tudo isto. Ao fazer-nos esquecer Deus, desvincula a sexualidade do dom, reduzindo-a, no essencial, a mercadoria. Os filhos transformam-se em “direitos” ou em “produtos” indesejados. A própria vida familiar é remodelada pela dominação e pelo interesse próprio.
O antídoto é redescobrir a complementaridade como auto-doação. Como ensinou João Paulo II: «A pessoa humana […] nunca deve ser tratada por outra como meio para um fim; a pessoa é um bem para o qual a única atitude adequada é o amor»[17].
Também os filhos são um dom, não uma propriedade. Muitas vezes são chamados “a riqueza da família”, em algumas sociedades, não no sentido económico. São a verdadeira riqueza porque encarnam a esperança e a continuidade.
Na família, as crianças “respiram” amor através dos pais, irmãos e parentes. Aprendem a partilhar e a dialogar, a ver-se como filhos e irmãos, a reconhecer a justiça e a praticar tanto o perdão como o aceitar o perdão. Assim descobrem a sua própria vulnerabilidade e a dos outros.
A família torna-se, assim, a escola onde se formam atitudes que moldarão a vida social mais ampla. Entre estas, o perdão e a reconciliação destacam-se como essenciais num mundo marcado pelas feridas que infligimos uns aos outros. As disputas familiares resolvem-se muitas vezes com a mediação dos mais velhos, que ensinam que a paz vale mais do que o orgulho. É aqui que começa a reconciliação: no lar, na aldeia, ao redor da lareira familiar.
E não fica por aí. As lições aprendidas nestas pequenas reconciliações difundem-se pela sociedade. Quando as famílias aprendem a perdoar, as comunidades tornam-se capazes de paz. Quando o perdão falha em casa, a sua ausência sente-se muito para além dela, alimentando ciclos de hostilidade e divisão, até mesmo – como vemos hoje – guerras e conflitos que marcam nações inteiras. Nesse sentido, o perdão aprendido em casa torna-se cada vez mais vital para o nosso mundo.
O perdão é, de facto, o ato mais gratuito de todos, devolvendo bem por mal. Como afirma o Papa Leão XIV: «O verdadeiro perdão não espera pelo o arrependimento, mas oferece-se primeiro, como dom gratuito, ainda antes de ser acolhido»[18].
Assim, a família não é apenas uma unidade privada: é o viveiro de uma cultura do dom para a sociedade, onde cada membro é necessário e ninguém se sente isolado dos outros. É aí, nessas redes de parentesco e cuidado, que a própria vida se dá livremente e, por isso, apenas cresce em significado quando se entrega tão livremente quanto se recebeu. Como ensina Jesus: «Recebestes de graça, dai de graça» (Mt 10, 8); ou como diz o provérbio suaíli, Mti haukui bila mizizi – uma árvore não cresce sem raízes – lembrando que o dom da vida se sustenta e transmite na família e na comunidade.
b. O dom no trabalho profissional
O trabalho é outro campo privilegiado para a auto-doação. Contudo, o individualismo e o consumismo distorcem-lhe o significado desde lados opostos. O individualismo reduz o trabalho à procura do ganho pessoal, ou trata-o como um fardo a evitar, separado da solidariedade. O consumismo, por sua vez, empurra-nos para o workaholism – uma produção constante para um consumo constante – e mede o valor do trabalho apenas em benefícios materiais. Ambos deixam a pessoa vazia, porque obscurecem o sentido mais profundo do trabalho.
Longe de considerar o trabalho como mera sobrevivência ou conquista, São Josemaria ensina antes que devemos trabalhar bem – com diligência, responsabilidade e competência – sem permitir que o trabalho se converta num ídolo que devore a vida familiar e interior.
Mas trabalhar bem e com justiça, embora sendo essencial, não basta. Se se reduz ao mero cumprimento contratual, o trabalho arrisca-se a ser esvaziado e a perder o espaço para o sentido humano e espiritual que é chamado a transportar. A este respeito, Bento XVI oferece uma ideia fundamental em Caritas in Veritate: «Se, no passado, era possível pensar que havia necessidade primeiro de procurar a justiça e que a gratuidade intervinha depois como um complemento, hoje é preciso afirmar que, sem a gratuidade, não se consegue sequer realizar a justiça»[19].
O que o trabalho precisa, portanto, é da lógica do dom – e não apenas para que inclua a dimensão transcendente da caridade: como Bento XVI indica, precisa dela para permanecer justo e não descambar na injustiça. Em palavras de São Josemaria, o trabalho é o lugar onde o cristão atua como “fermento na massa”, transformando-se a si mesmo, os seus colegas e até a própria tarefa num sacrifício agradável a Deus. E, ao fazê-lo, preserva-o da corrupção.
Esta ideia encontra eco natural em África, onde o espírito cultural se exprime vivamente na palavra Harambee: “unamo-nos” ou “puxemos juntos”. Harambee não é apenas um lema; é um estilo de vida em que as comunidades unem forças para alcançar o que nenhum indivíduo conseguiria sozinho: construir uma escola, apoiar uma família em crise, ou assegurar que um casamento ou funeral seja celebrado com dignidade. Cada pessoa contribui segundo as suas possibilidades, e todos juntos fazem a comunidade elevar-se.
Aplicado à vida profissional, este princípio ilumina a santificação do trabalho como serviço e solidariedade, com exemplos como: um médico que dedica tempo extra a um doente que não pode pagar; um professor que acompanha alunos em dificuldade depois das aulas; ou um empresário que oferece salários justos e políticas favoráveis à família.
Todos estes casos encarnam o espírito de Harambee e são sementes de uma cultura do dom. Assim, o trabalho torna-se mais do que uma transação: transforma-se numa vocação. Deixa de ser um ídolo ou uma fuga e converte-se em participação no amor criador e redentor de Deus por todos, e não apenas por nós mesmos.
Tal como a família é a escola do dom, também o local de trabalho se torna numa segunda escola onde o trabalho quotidiano, unido ao serviço, nos ensina a “puxar juntos” e a construir a sociedade sobre o firme alicerce da auto-doação.
c. O dom no cuidado e na caridade social
Finalmente, o cuidado e a caridade social. São Josemaria, nos primeiros dias do Opus Dei, procurou fortaleza entre os mais pobres de Madrid.
«Fui procurar fortaleza nos bairros mais pobres de Madrid. Horas e horas por todo o lado, todos os dias, a pé de um lado para o outro, entre pobres envergonhados e pobres miseráveis, que não tinham absolutamente nada; entre crianças com ranho na boca, sujas, mas crianças, o que quer dizer almas agradáveis a Deus. […] Fui procurar os meios para fazer a Obra de Deus em todos esses sítios. […] A fortaleza humana da Obra foram os doentes»[20].
Esta intuição – de que cuidar do mais frágil fortalece quem dá – continua a ser profética. O individualismo e o consumismo escondem a fragilidade idolatrando a independência. No entanto, é precisamente na vulnerabilidade que descobrimos a nossa humanidade comum. A doença, a pobreza e a velhice não são ameaças à dignidade, mas momentos em que essa dignidade brilha com maior clareza.
O cuidado, portanto, é crucial: é a resposta humana e humanizadora à fragilidade, mas deve ser dado livremente e de forma pessoal. Na verdade, o cuidado é mais do que uma tarefa; é uma forma de relacionar-se que reconhece a nossa condição partilhada. Ao reconhecer a nossa própria vulnerabilidade e a dos outros, redescobrimos a interdependência humana.
Isto tem consequências concretas: o desenvolvimento dos cuidados paliativos, o apoio às famílias com pessoas dependentes, o reconhecimento das profissões orientadas para o cuidado e a promoção da sua dignidade, bem como uma maior valorização das dimensões espirituais, psicológicas e emocionais da vida, são apenas alguns exemplos que nascem da experiência de pessoas com uma missão de cuidar e que, através do seu testemunho pessoal, inspiraram e fortaleceram muitas destas profissões diretamente envolvidas na caridade social.
Quando existe uma cultura do cuidado e, portanto, do dom, superamos perspetivas individualistas. Como explica Mamen Guitart, uma profissional dedicada ao cuidado:
«Só as pessoas sabem cuidar, e todos aprendemos a cuidar quando somos cuidados. É natural dar o que recebemos, e é lógico que esse atendimento não se limite ao âmbito privado de uma casa ou de uma instituição. A cultura do cuidado difunde-se em cascata, e por isso acaba por repercutir em toda a sociedade. Uma sociedade melhor deveria procurar educar pessoas capazes de cuidar. Isso seria uma bomba atómica contra o individualismo. A cultura do cuidado é tão elementar, tão importante e tão humanizante que deveria fazer parte das linhas estratégicas de qualquer sociedade que aspire a um verdadeiro progresso»[21].
Esta deveria, de facto, ser a missão distintiva de todas as iniciativas aqui representadas. Os seus projetos certamente resolverão problemas concretos, mas se forem acompanhados por pessoas que descobrem e se inspiram no ideal de se doar livremente aos outros, também brilharão como uma luz para a sociedade. O Estado, as empresas, as famílias e as comunidades olhar-vos-ão: para as vossas prioridades, a vossa cultura, a vossa atenção a cada pessoa e os princípios que vos guiam. Levarão uma luz particular, capaz de iluminar toda a sociedade com uma visão de cuidado enraizada na dignidade humana.
6. Conclusão: atitude de escuta e “cultura do dom”
Depois de tudo o que foi dito sobre a cultura do dom, sobre o cuidado, sobre o trabalho, sobre as instituições, qual é o primeiro passo decisivo? A resposta, embora simples em aparência, é profunda: devemos começar por escutar.
Escutar não é meramente uma técnica; é uma disposição interior da alma pela qual abrimos livremente as nossas mentes e os nossos corações uns aos outros. É o gesto primordial do cuidado, o fundamento do diálogo autêntico e a condição para uma verdadeira fraternidade. Em todo o ato de escuta há duas pessoas: uma que confia, outra que recebe.
Escutar é reconhecer o outro não como objeto, mas como sujeito; olhar o outro com amor; prestar atenção com os sentidos e com o coração, permitindo que a sua realidade molde a nossa resposta. Sem escuta, o ato de dar distorce-se. Degenera em paternalismo quando impomos as nossas próprias soluções; em dependência, quando a assistência corrói a liberdade do outro; ou em projeção, quando o que damos reflete os nossos desejos e não as verdadeiras necessidades do outro. Em todos estes casos, o dom humilha em vez de elevar. Bento XVI expressou-o com precisão: «Para que o dom não humilhe o outro, não devo apenas dar-lhe algo meu, mas dar-me a mim mesmo; devo fazer parte do dom como pessoa»[22]. A escuta é a salvaguarda desta presença pessoal.
Aqui reside a nossa responsabilidade. As instituições, por mais nobres que sejam, podem preservar valores, encarnar ideais e oferecer oportunidades, mas correm o risco de se tornar estruturas frias se não forem animadas por pessoas que descobrem e encarnam a lógica da auto-doação. E essa possibilidade existe quando homens e mulheres, no seu trabalho quotidiano e nas suas relações diárias, começam por abraçar a escuta como forma de vida e princípio orientador. Só então as instituições terão uma verdadeira possibilidade de transcender as suas funções: as escolas serão mais do que salas de aula, os hospitais mais do que enfermarias, as empresas mais do que negócios; poderão tornar-se lugares onde a humanidade se renova, onde a fraternidade floresce e onde o amor de Deus se torna tangível.
Este é o legado duradouro de São Josemaria: não apenas promover instituições, mas inspirar pessoas – uma a uma – que, ao escutar e ao darem-se, semeiam amor onde quer que estejam, para que a sociedade como um todo se renove e se converta a uma verdadeira cultura do dom.
[1] cf. Andrés Vázquez de Prada, El Fundador del Opus Dei, III:Los caminos divinos de la tierra, Rialp 2003, p. 380-383.
[2] Ibid., p. 383.
[3] Ibid., p. 384.
[4] São Josemaria, Sulco, n. 303.
[5] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 294.
[6] São João Paulo II, Redemptor Hominis, n. 10.
[7] São João da Cruz, Cartas, em Obras completas, ed. Lucinio Ruano (Burgos, Monte Carmelo, 2001), Carta 26, p. 1041.
[8] K. Sack, “60 Lives, 30 Kidneys, All Linked”, The New York Times, 18/02/2012.
[9] Fernando Ocáriz, “Dilatar o coração”, Roma, 29/09/2022.
[10] Joseph Ratzinger, Principles of Catholic Theology, Ignatius Press, 1987, p. 79-80.
[11] Viktor Frankl, Man’s Search for Meaning, Beacon Press, 2006, p. 75.
[12] Joseph Ratzinger, Principles of Catholic Theology, Ignatius Press, 1987, p. 81.
[13] São Josemaria, Forja, n. 453.
[14] Francisco, Discurso aos participantes na Assembleia Plenária da Pontifícia Academia das Ciências Sociais, “Disability and the human condition. Changing the social determinants of disabilities and building a new culture of inclusion”, Sala Clementina, 11/04/2024.
[15] São Josemaria, Cristo que passa, “O matrimónio, vocação cristã”.
[16] São Josemaria, Entrevistas a São Josemaria, n. 91.
[17] Karol Wojtyla, Amor e responsabilidade.
[18] Leão XIV, Audiência, 20/08/2025.
[19] Bento XVI, Caritas in veritate, n. 38.
[20] Peter Berglar, Opus Dei.Vida y obra del Fundador Josemaría Escrivá, Rialp, 6.ª ed., 2002, p. 64.
[21] “Mamen Guitart: La hospitalidad salvará al mundo”, entrevista de Álvaro Sánchez León, Aceprensa, 03/09/2025.
[22] Bento XVI, Deus caritas est, n. 34.

