Scott Hahn : "Amar apaixonadamente a Sagrada Escritura"

O teólogo Scott Hahn fala sobre S. Josemaria e a Bíblia, afirmando que, em certo sentido, só poderemos compreender plenamente os méritos de S. Josemaria, ou as graças que recebeu, se compreendermos o uso que fez das Escrituras.

O mundo conhece Josemaria Escrivá (1902-1975) como fundador do Opus Dei e da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz. Os fiéis da Igreja Católica conhecem-no, sobretudo, pela sua santidade e pelo seu poder de intercessão e por isso no dia 6 de outubro de 2002 o Papa João Paulo II canonizou-o, declarando-o assim digno de pública veneração e imitação.

Em certo sentido, só poderemos compreender plenamente os méritos de S. Josemaria, ou as graças que recebeu, se compreendermos o uso que fez das Escrituras. Com efeito, desenvolveu, com o Opus Dei, uma espiritualidade estritamente bíblica e ele próprio advertia que a instituição por ele fundada estava firmemente assente sobre o fundamento das Escrituras. Na exposição talvez mais forte do seu espírito, a homilia “Amar o mundo apaixonadamente”, S. Josemaria proclama repetidamente a Bíblia como a sua principal fonte de autoridade: “Esta doutrina da Sagrada Escritura, (...) encontra-se, como sabeis, no próprio cerne do espírito do Opus Dei” (Entrevistas a S. Josemaria, 116); “Tenho-o ensinado constantemente com palavras da Sagrada Escritura” (n. 114).

Eu diria, inclusivamente, que a Bíblia foi sempre para S. Josemaria a principal referência. Conhecia profundamente os ensinamentos dos Padres e Doutores da Igreja, dominava a teologia escolástica e manteve-se a par das tendências da teologia contemporânea, mas era às Escrituras que voltava uma e outra vez na sua pregação e nos seus escritos e para onde dirigia os seus filhos espirituais do Opus Dei.

S. Josemaria tinha uma consciência clara da unidade entre os dois Testamentos, o Antigo e o Novo. Para ele, as profecias do Antigo Testamento não perderam relevância pelo facto de encontrarem a sua plenitude no Novo. Pelo contrário, resplandecem com uma luz nova e mais brilhante. Por isso não hesitava em tomar os ensinamentos dos profetas e patriarcas de Israel como modelos espirituais para os cristãos de hoje:

“Quando receberes Nosso Senhor na Eucaristia, agradece-lhe com todas as veras da tua alma essa bondade de estar contigo.

- Nunca te detiveste a considerar que passaram séculos e séculos, para que viesse o Messias? Os patriarcas e os profetas a pedir, com todo o povo de Israel: "A terra tem sede, Senhor, vem!".

Oxalá seja assim a tua espera de amor." (Forja, 991)

ADMIRAVA-ME A FACILIDADE COM QUE CITAVA DE COR E COM EXATIDÃO FRASES DA SAGRADA ESCRITURA

Citava com frequência textos tanto do Antigo como do Novo Testamento, mas especialmente dos Evangelhos, aos quais a Tradição atribuiu um lugar de destaque (cf. Dei Verbum, 18). Possivelmente, as frases mais repetidas na sua pregação são as que invocam o texto sagrado: "como nos diz o Evangelho ...", "diz-nos a Sagrada Escritura ...", "os Evangelhos relatam ...", "lembra aquela cena do Evangelho ... ”.

D. Álvaro del Portillo, o filho mais fiel de S. Josemaria, seu confessor e sucessor à frente do Opus Dei afirma: “Admirava-me a facilidade com que citava de cor e com exatidão frases da Sagrada Escritura. Até nas conversas em família trazia à baila textos sagrados para mover os presentes a uma oração mais profunda ”. [1]

As Escrituras como referência

A fundação do Opus Dei teve lugar em 2 de outubro de 1928, quando S. Josemaria “viu” a Obra de Deus (ainda sem nome) como um caminho de santificação no trabalho profissional e no cumprimento dos deveres quotidianos dos cristãos.

Como era o Opus Dei naquela época? Não sabemos os detalhes exatos, mas podemos vislumbrar a Obra incorporada nos escritos posteriores do fundador. Neles fala das Escrituras como referência segura do seu estilo de vida, que era "velho como o Evangelho e, como o Evangelho, novo." (Entrevistas a S. Josemaria, 24). No início de sua obra fundamental, Caminho, escreveu: «Oxalá fossem tais as tuas atitudes e as tuas palavras, que todos pudessem dizer quando te vissem ou ouvissem falar: "Este lê a vida de Jesus Cristo".» (Caminho, n. 2). Por outro lado, ao falar de quem não vivia a caridade cristã, S. Josemaria dizia que “parece que não leram o Evangelho” (Sulco, 26).

A sua leitura do Evangelho e das Escrituras em geral era iluminada pelo seu particular carisma fundacional, que o levava a desenvolver algumas ideias que tinham passado despercebidas na teologia anterior. É notável a sua renovada ênfase em certos conceitos das Escrituras: a chamada universal à santidade, por exemplo, e a santificação da vida ordinária. Sentia-se atraído pela contemplação, uma e outra vez, dos Evangelhos e aludia repetidamente aos trinta anos da vida oculta de Jesus. Nesse relativo silêncio encontrava um modelo para a "vida oculta" das pessoas comuns que vivem no mundo.

Assim, o estudo das Escrituras foi essencial para a sua espiritualidade pessoal e para o programa que desenvolveu para os membros do Opus Dei. Afirmava que as Escrituras não só permitiam que os leitores conhecessem a vida de Jesus, mas também os encorajava a imitá-lo. “Devemos reproduzir, na nossa própria vida, a vida de Cristo, conhecendo Cristo: pela leitura e meditação da Sagrada Escritura, pela oração” (Cristo que passa, 14).

O método

S. Josemaria praticou e pregou um caminho particular de aproximação às Escrituras na oração. É um caminho intensivo, mais que exaustivo. Mons. Del Portillo sublinhava que o fundador do Opus Dei “deu provas constantes de um respeito extraordinário pela Sagrada Escritura, que, juntamente com a Tradição da Igreja, é a fonte da qual se alimentava continuamente para a sua oração pessoal e para a sua pregação. Todos os dias lia algumas páginas - um capítulo - da Escritura, em particular do Novo Testamento ”. [2]

Esta prática de estudo diário do Novo Testamento - cerca de cinco minutos - foi prescrita por S. Josemaria a todos os que dirigia. Aconselhava-os a que, ao lerem o Evangelho, imaginassem a cena assumindo o papel de uma das personagens. «Esses minutos diários de leitura do Novo Testamento que te aconselhei (metendo-te e participando no conteúdo de cada cena, como um protagonista mais) são para que encarnes, para que cumpras o Evangelho na tua vida... e para fazê-lo cumprir.» (Sulco, 672; ver também Amigos de Deus, 222).

MISTURAI-VOS COM FREQUÊNCIA ENTRE AS PERSONAGENS DO NOVO TESTAMENTO. SABOREAI AQUELAS CENAS COMOVEDORAS EM QUE O MESTRE ACTUA COM GESTOS DIVINOS E HUMANOS

Noutra passagem dos seus ensinamentos, desenvolveu ainda mais esta ideia, novamente enfatizando o uso da imaginação com uma experiência quase sensorial:

“Misturai-vos com frequência entre as personagens do Novo Testamento. Saboreai aquelas cenas comovedoras em que o Mestre atua com gestos divinos e humanos ou relata, com frases humanas e divinas, a história sublime do perdão e do seu contínuo Amor pelos seus filhos. Esses reflexos do Céu renovam-se também agora na perenidade atual do Evangelho: palpa-se, nota-se, pode-se afirmar que se toca com as mãos a proteção divina” (Amigos de Deus, 216).

O poder de transformar-se

Embora na realidade a leitura do Evangelho só lhe tomasse cinco minutos por dia, não podemos reduzir a meditação de S. Josemaria sobre as Escrituras a esses breves momentos. Rezava também com as Escrituras a sua missa diária e a recitação do Ofício Divino. Com frequência usava os comentários bíblicos dos Padres da Igreja para a sua leitura espiritual. Na verdade, insistia em que a meditação pessoal das Escrituras devia alimentar a oração mental do cristão, além das orações espontâneas que preencheriam o seu dia. “Porque é necessário que a conheçamos bem, que a tenhamos inteira na mente e no coração, de modo que, em qualquer momento, sem necessidade de nenhum livro, cerrando os olhos, possamos contemplá-la como um filme; de forma que, nas mais diversas situações da nossa vida, acudam à memória as palavras e os atos do Senhor.”. (Cristo que passa, 107).

Através da leitura das Escrituras, chegará a graça da transformação, da conversão. Ler a Bíblia não é um ato passivo, envolve uma busca ativa e subsequente encontro. “Se fizermos assim, se não criarmos obstáculos, as palavras de Cristo penetrarão até ao fundo da nossa alma e transformar-nos-ão. Porque a palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante que uma espada de dois gumes; introduz-se até à divisão da alma e do espírito, até às junturas e medulas; e discerne os pensamentos e intenções do coração. (Hb 4:12) ”(Cristo que passa,107).

Filiação Divina e Palavra Revelada

No coração do Opus Dei existe uma ideia muito simples. Dizia S. Josemaria: “A filiação divina é o fundamento do espírito do Opus Dei. Todos os homens são filhos de Deus” (Cristo que passa, 64). S. Josemaria experimentou pessoalmente esta filiação de forma mística, um dia de 1931, enquanto viajava de elétrico em Madrid. Naquele momento ele sentiu “o alcance daquela realidade surpreendente” de ser filho de Deus, e desceu do elétrico balbuciando “Abba, Pater! Abba, Pater! " (cf. Gal 4: 6) [3].

Muitos Padres da Igreja, especialmente S. João Crisóstomo, falaram da Revelação em termos de "acomodação" e "condescendência", que Crisóstomo interpretava como ações paternas. Para se revelar, Deus olha o homem, como um pai humano que contempla o seu filho. Da mesma forma que um pai humano às vezes recorre a falar "como o filho", Deus comunica-se frequentemente com condescendência - isto é, fala como uma pessoa humana falaria, com a mesma linguagem, como se tivesse as mesmas paixões e fraquezas. Assim, lemos nas Escrituras que Deus “se arrepende” das suas decisões, quando seguramente Deus nunca tem necessidade de arrependimento.

No entanto, os pais humanos não se limitam a colocar-se ao nível dos filhos. Eles também tentam educar os seus filhos para que se comportem como adultos. Da mesma forma, às vezes Deus também se comunica por elevação - isto é, eleva os filhos a um nível divino, dotando as simples palavras humanas com o seu poder divino (como no caso dos profetas).

S. Josemaria acreditava nas Escrituras como acreditaria nas palavras do seu pai. A sua confiança filial é um exemplo da fé constante dos cristãos de que todos os livros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes são “santos e canónicos, porque escritos sob a inspiração do Espírito Santo, têm Deus como seu autor (...). Pois, como tudo o que os autores inspirados ou hagiógrafos afirmam deve ter-se como afirmado pelo Espírito Santo, há que confessar que os livros da Escritura ensinam firmemente, com fidelidade e sem erro, a verdade que Deus, para nossa salvação, quis consignar nas Letras Sagradas”.(Dei Verbum, 11).

Mons. Del Portillo insistia em que S. Josemaria mostrava a sua fé na origem divina das Escrituras, não só na pregação e nos escritos, mas também nas conversas quotidianas. «Como prova da sua veneração pela Sagrada Escritura, muitas vezes introduzia as suas citações com as palavras: “Diz o Espírito Santo...”. Não era um simples modo de dizer, mas um autêntico ato de fé, que ajudava a ponderar o valor eterno e toda a verdade que têm palavras a que podemos acabar por nos acostumar.» [4]

Sentido literal e espiritual

S. Josemaria deu grande ênfase à imaginação para captar todos os detalhes, mesmo os mais pequenos, da narrativa evangélica. Para ele, nenhuma palavra era supérflua, nenhum detalhe era insignificante: o Espírito Santo não desperdiçava palavras.

S. JOSEMARIA DEU GRANDE ÊNFASE À IMAGINAÇÃO PARA CAPTAR TODOS OS DETALHES, MESMO OS MAIS PEQUENOS, DA NARRATIVA EVANGÉLICA.

Mas esse cuidado com o sentido literal e histórico não o cegou quando se tratou de compreender o sentido espiritual das Escrituras. A Igreja tem tradicionalmente interpretado os textos bíblicos como literalmente verdadeiros e como sinais espirituais de Cristo, do céu ou das verdades morais (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 115-117). Com efeito, embora S. Josemaria nunca tenha utilizado expressamente os termos "exegese literal" ou "exegese espiritual", foi um dos grandes exegetas do seu tempo. Concordo com o Cardeal Parente quando observa que os comentários de S. Josemaria sobre a Sagrada Escritura refletem “uma profundidade e uma imediatez muitas vezes maiores até do que as obras dos Santos Padres” [5].

Sobre isto podem dar-se um grande número de exemplos. Consideremos este ensinamento de Caminho: «Como os bons filhos de Noé, cobre com o manto da caridade as misérias que vires no teu pai, o Sacerdote» (n. 75). Da cena da vergonhosa embriaguez de Noé (Gn 9, 20-23), S. Josemaria extrai um ensinamento moral avassalador para a vida contemporânea na Igreja. Esta é a exegese espiritual, concisa e incisiva. Com uma única frase aprendemos com os nossos ancestrais do Antigo Testamento por que não devemos nunca propagar o escândalo contra o sacerdote, a quem do ponto de vista da fé chamamos "Pai".

Vemos outra incrível exegese espiritual quando ele compara os pecados dos cristãos com a ação de Esaú, que troca os seus direitos de primogénito por um prato de lentilhas (Gn 25: 29-34). Por um momento de prazer, muitos cristãos estão dispostos a opor-se a Deus e, assim, renunciar à vida eterna. (S. Josemaria usa a imagem de Esaú em vários escritos. Ver, por exemplo, Amigos de Deus, 13).

S. Josemaria, em suma, não hesitou em atualizar o texto bíblico aplicando-o à vida contemporânea, colocando-se assim na linha dos grandes exegetas desde Santo Agostinho e S. João Crisóstomo a Santo António de Pádua e Jacques Bossuet. Os especialistas descrevem esta interpretação extensiva como a "acomodação do sentido espiritual".

No entanto, nenhuma destas interpretações põe em causa a verdade histórico-literal do texto bíblico, que S. Josemaria reverenciava. Nas palavras de S. Tomás de Aquino, "todos os demais sentidos da Sagrada Escritura se baseiam no literal" [6].

Assim, para lançar os alicerces, S. Josemaria realizou estudos detalhados sobre o que a ciência bíblica tinha a dizer sobre a cultura milenar do antigo Israel e do Império Romano na época de Jesus. A sua pregação da Paixão de Cristo, por exemplo, mostra como estava familiarizado com as afirmações históricas do método romano de crucificação. As suas homilias sobre S. José mostram um profundo interesse não só pela filologia, mas também pelas antigas tradições dos judeus na vida familiar e no trabalho.

Em algumas ocasiões, S. Josemaria recebia iluminações divinas extraordinárias que lhe revelavam um sentido particular do texto bíblico. Contava, por exemplo, que na festa da Transfiguração de 1931, ao celebrar a missa, “enquanto erguia a hóstia, havia outra voz sem ruído de palavras. Uma voz, como sempre, perfeita, clara: Et ego si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad me ipsum! [“E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo, 12,32)] E o conceito preciso: não é no sentido em que a Escritura o diz; Digo-te isso no sentido de que me ponhas no cimo de todas as atividades humanas; que, em todas as partes do mundo, haja cristãos com uma libérrima dedicação pessoal, que sejam outros Cristos ”. [7]

Esta súbita iluminação teve uma profunda influência no desenvolvimento posterior do Opus Dei. Certamente veio de Deus. Mas, hoje como sempre, a graça junta-se à natureza e aperfeiçoa-a. Aquilo que S. Josemaria descreve é claramente um exemplo de contemplação infusa, firmemente baseada, isso sim, numa vida constante e disciplinada de meditação das Escrituras.

Poderiam citar-se várias histórias que ilustram perfeitamente um princípio sintetizado pela Pontifícia Comissão Bíblica no documento, publicado em 1993, A Interpretação da Bíblia na Igreja: “é, sobretudo pela liturgia que os cristãos entram em contacto com as Escrituras. (...) Principalmente a liturgia, e especialmente a liturgia sacramental, cujo ápice se atinge na celebração da Eucaristia, realiza a mais perfeita atualização dos textos bíblicos. (...) Cristo está então “presente na sua palavra, porque é ele mesmo quem fala quando se lê a Sagrada Escritura na Igreja” (Sacrosanctum Concilium, 7). Assim, a letra escrita torna-se palavra viva ”[8].

Texto e contexto

S. Josemaria estudou as Escrituras com muita seriedade. Ele sabia que a Bíblia é um texto que não se compreende ou interpreta de forma evidente e automática. E, apesar de que às vezes Deus lhe concedia luzes sobrenaturais, ele tinha consciência de que esses fenómenos eram algo extraordinário e não a forma usual de chegar a entender o sentido de um texto.

Se ele não podia confiar nas suas próprias luzes, nem depender exclusivamente de fenómenos místicos, para onde olhava nos seus estudos comuns da Bíblia? Voltava-se para a Igreja, a sua tradição viva da qual os antigos Padres são "testemunhas perenes" (Catecismo da Igreja Católica, n. 688). Um rápido olhar aos volumes de homilias revela a sua íntima familiaridade com as obras de S. Jerónimo, S. Basílio, Santo Agostinho ou S. Tomás de Aquino.

S. Josemaria contrastou todas as suas reflexões sobre as Escrituras - mesmo as que recebeu por inspiração divina - com o testemunho dos Padres e do Magistério pontifício e conciliar. Conhecia bem os perigos ocultos na contínua dependência da interpretação pessoal das Escrituras, também porque encontrava uma advertência clara sobre isso... nas próprias páginas da Sagrada Escritura! No primeiro domingo da Quaresma de 1952, reflete sobre as formas subtis como o demónio tenta Jesus no deserto:

“Vale a pena reparar no modo de proceder de Satanás com Jesus Cristo: argumenta com textos dos Livros Sagrados, retorcendo, desfigurando de forma blasfema o seu sentido. Mas Jesus não se deixa enganar: o Verbo feito carne bem conhece a Palavra divina, escrita para salvação dos homens e não para confusão e condenação. Quem está unido a Jesus Cristo pelo Amor - tal é a conclusão que devemos tirar - nunca se deixará enganar por manejos fraudulentos da Sagrada Escritura, porque sabe que é obra típica do Demónio procurar confundir a consciência cristã utilizando com dolo os mesmos termos usados pela eterna Sabedoria, tentando fazer da luz trevas.” (Cristo que passa, n. 63).

Da atual Babel de interpretações bíblicas contraditórias, podemos deduzir que o método de Satanás não mudou muito ao longo dos séculos. No meio de tanta confusão, S. Josemaria apresenta-se-nos como um modelo de fé tão inteligente quanto rendida. Enquanto tantos exegetas cristãos atravessavam o século XX com a pobre roupagem do agnosticismo e da irrelevância, S. Josemaria enriquecia-se com uma confiança total na Bíblia; e na Igreja como sua intérprete infalível.

Podemos ver, tocar e estudar o seu legado na Bíblia de Navarra, um projeto que ele impulsionou. Iniciada no início da década de 1970 na Universidade de Navarra, em Espanha, a Bíblia de Navarra oferece uma bela e fidedigna tradução das Escrituras, à qual se juntam numerosas citações de concílios eclesiais, Padres e Doutores. Este grande empreendimento permitiu a quem não é teólogo nem eclesiástico desfrutar e enriquecer-se com a Bíblia de um modo semelhante ao de S. Josemaria.

O lugar da Bíblia

Os encontros mais profundos de S. Josemaria com a Sagrada Escritura não se realizaram no estudo, nem na pregação oral, mas na liturgia. Tal como os Padres e o Concílio Vaticano II, ele via a Missa como o encontro por excelência com Cristo Jesus no “pão e na palavra” (ver, por exemplo, Cristo que passa, 116, 118, 122; Forja, 437). A Santa Missa, na qual encontramos a Liturgia da Palavra, é, para S. Josemaria, “o centro e raiz” da vida interior.

TAL COMO OS PADRES E O CONCÍLIO VATICANO II, ELE VIA A MISSA COMO O ENCONTRO POR EXCELÊNCIA COM CRISTO JESUS

As suas homilias - repletas de citações e alusões a ambos os Testamentos - estão sempre focadas no tempo litúrgico e, especialmente, nas leituras do dia. Com efeito, via a Missa como o habitat sobrenatural das suas homilias: “Acabais de ouvir a leitura solene dos dois textos da Sagrada Escritura correspondentes à Missa do XXI Domingo depois de Pentecostes. Tendo ouvido a palavra de Deus, já estais situados no âmbito em que se hão-de mover as palavras que agora vos dirijo: palavras de sacerdote, pronunciadas perante uma grande família de filhos de Deus na sua Santa Igreja. Palavras, pois, que desejam ser sobrenaturais, pregoeiras da grandeza de Deus e das suas misericórdias para com os homens; palavras que vos disponham para a impressionante Eucaristia que hoje celebramos.”(Entrevistas a S. Josemaria , 113).

Como os Padres da Igreja e os Padres do Concílio Vaticano II, S. Josemaria via na Missa um momento de particular graça para receber a Palavra de Deus. As inspirações recebidas na Liturgia da Palavra deviam ser profundas e duradouras: Ouvimos agora a palavra da Escritura, a Epístola e o Evangelho, que são luzes do Paráclito, que fala com voz humana para que a nossa inteligência saiba e contemple, para que a vontade se robusteça e a acção se cumpra.” (Cristo que passa, 89).

O intérprete virtuoso

Ao canonizar Josemaria Escrivá, a Igreja apresentou-o como digno de imitação. Não pode haver dúvida de que tal imitação deve incluir um estudo detalhado das Escrituras, uma leitura meditada das Escrituras e uma oração disciplinada das Escrituras. A sua própria programação diária atesta isso. As «normas de piedade» que viveu - e que estabeleceu para os seus filhos no Opus Dei - estão saturadas de matizes bíblicos.

No entanto, o que era claramente crucial para S. Josemaria era o encontro com Jesus Cristo, o ser "ipse Christus", o próprio Cristo. Essa meta deve ser alcançada mediante certos meios, incluindo a leitura meditada dos Evangelhos. Assim, não se pode entender ou viver a vocação para o Opus Dei sem, pelo menos, aspirar a um alto grau de conhecimento da Bíblia.

Apesar de ter passado grande parte da sua vida antes do Concílio Vaticano II, S. Josemaria antecipou muitos dos seus ensinamentos - como a ênfase na proclamação do apelo universal à santidade e ao apostolado, que tinha sido o carácter distintivo do Opus Dei desde 1928. Creio, porém, que S. Josemaria, antes de tudo, estava em sintonia com a doutrina da Sagrada Escritura - a sua verdade, autoridade, inspiração e infalibilidade - que encontraria uma expressão mais robusta na Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina, Dei Verbum.

E NÃO ESQUECE QUE “A ORAÇÃO DEVE ACOMPANHAR A LEITURA DA SAGRADA ESCRITURA PARA QUE SE ESTABELEÇA O DIÁLOGO ENTRE DEUS E O HOMEM”

Tal como muitos homens tendem a ver nas suas mulheres as melhores qualidades descritas no livro dos Provérbios 31 (“a mulher virtuosa”), gosto de ver em S. Josemaria, meu pai espiritual, o cumprimento das palavras da Dei Verbum, 25. Nelas, os Padres Conciliares oferecem uma visão do sacerdote ideal. Para terminar, gostaria de ter a ousadia de adaptar estas palavras a S. Josemaria e a muitos dos sacerdotes que o seguiram no Opus Dei e na Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz.

Eles mergulham nas Escrituras “com leitura assídua e estudo diligente”.

Vigiam “para que nenhum deles se transforme num "pregador vazio e supérfluo da palavra de Deus que não a escuta dentro de si" (Santo Agostinho, Serm. 179, I)”.

Comunicam aos fiéis que lhes são confiados, “sobretudo na Sagrada Liturgia, as imensas riquezas da palavra divina”.

Eles aprendem “o conhecimento sublime de Jesus Cristo (Fl 3, 8) com a leitura frequente das divinas Escrituras.”

Aproximam-se alegremente “do mesmo texto sagrado, seja por meio da Sagrada Liturgia, repleta da linguagem de Deus, ou por meio da leitura espiritual, ou por meio de instituições adequadas para isso, e por outros meios”.

E não esquecem que “a oração deve acompanhar a leitura da Sagrada Escritura para que se estabeleça o diálogo entre Deus e o homem; porque 'a Ele falamos quando rezamos, e a Ele ouvimos quando lemos as palavras divinas' (Santo Ambrósio, De officiis ministerium I, 20, 88) ”.

Scott Hahn, Ph.D.

Publicado em Romana, n. 35: Passionately Loving the Word: The Use of Sacred Scripture in the Writings of Saint Josemaria


[1] A. DEL PORTILLO, Entrevista sobre o Fundador do Opus Dei, conduzida por Cesare Cavalleri, Rialp, Madrid, 1993, p. 150 (edição portuguesa na Editora Quadrante, S. Paulo)

[2] Ibid., Pp. 147-148.

[3] ANDRÉS VÁZQUEZ DE PRADA, El Fundador do Opus Dei, Volume I: Senhor, que eu veja!, Rialp, Madrid, 1997, p.390. (edição portuguesa: Josemaria Escrivá, Ed. Verbo)

[4] A. DEL PORTILLO, pág. 150

[5] Ibid., P. 149.

[6] S. TOMAS DE AQUINO, S. Th. I, 1,10 ad. 1; cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 116

[7] Carta, 27-XII-1947, citada em VÁZQUEZ DE PRADA, p. 380

[8] Pontifícia Comissão Bíblica , A Interpretação da Bíblia na Igreja, IV.c.1.89).