Sair do sofá

“Para mudar o mundo é preciso sair do sofá”: foi esta frase, dita pelo Papa Francisco aos jovens que participavam na Jornada Mundial da Juventude de Cracóvia em 2016, que impulsionou duas amigas a criar um projeto de voluntariado alguns anos mais tarde, no verão de 2021.

O meu nome é Mariana Capela e sou pediatra. Tinha realizado recentemente o exame de especialidade. O último ano do internato foi marcado pela pandemia, com todos os seus desafios. Além disso, trabalho no Clube Rampa no Porto, onde promovemos atividades de formação humana e cristã, para raparigas de todas as idades. No verão de 2021, encontrei-me com a Maria numa esplanada da Foz, um programa habitual de verão. A Maria Freitas do Amaral estudou Gestão de Recursos Humanos, mas o seu sonho é trabalhar em empreendedorismo social, área na qual se está a especializar. Tal como eu, a Maria trabalha no Clube Colina, em Braga.

Nesse Verão a conversa foi diferente do habitual. Depois de dois anos praticamente inativas, devido à pandemia, tínhamos necessidade de fazer alguma coisa. O COVID19 tinha parado muitas das nossas atividades, bem como outras iniciativas sociais. Agora que tudo voltava à normalidade, tínhamos que recomeçar. Estava na altura de sair do sofá, como diz o Papa Francisco, e pôr mãos à obra.

Sabíamos que não éramos as únicas que nos devíamos sentir assim. Foi de forma muito espontânea que surgiu a ideia: porque não juntar um grupo de universitárias e fazer um projeto em África no próximo verão? Ambas tínhamos estado na Universidade há não muito tempo e sabemos que é a melhor altura para sonhar e para pôr a render os nossos talentos. Não queríamos simplesmente criar um projeto para universitárias, queríamos criar um projeto com universitárias, que fossem protagonistas do início ao fim. Seria este grupo de voluntárias a pensar connosco no projeto e a pô-lo em prática, porque as duas sozinhas não íamos a lado nenhum.

Um amigo que tinha estado recentemente em São Tomé e Príncipe tinha-me falado da pobreza deste país e das poucas iniciativas aí existentes. Entretanto fomos conhecendo alguns dos projetos presentes na ilha, onde vai havendo ótimos frutos, mas ainda com muito por fazer. Queríamos que o nosso projeto fizesse sentido, ir ao encontro de quem mais precisa, e não simplesmente criar um projeto. Não foi preciso procurar muito: em poucas semanas estávamos em contacto com a ARCAR – Associação para Reinserção de Crianças e Jovens em Risco. A ARCAR tem ao seu cuidado cerca de 250 crianças e jovens, distribuídos por três casas na ilha de São Tomé.

A equipa de voluntárias em São Tomé

Na ARCAR abriram-nos as portas desde o primeiro momento e mostraram um grande interesse em que colaborássemos nas suas atividades. Começaram as reuniões com a Dona Balbina, fundadora da Instituição, e com o Tanyel, um dos responsáveis pelos jovens da ARCAR. Graças à plataforma zoom, tão utilizada durante a pandemia, conseguimos ter reuniões a milhares de quilómetros de distância.

Ficou definido o projeto: íamos organizar duas semanas de férias para as crianças das três casas da ARCAR: a Sede, que funciona como orfanato para cerca de 50 rapazes, o Bairro da Liberdade e o Mulundo, dois centros de estudo que dão apoio a 200 crianças e jovens. Estes centros funcionam durante o ano, mas à exceção da Sede estão fechados no verão. Nas férias, as crianças ficam em casa ou, na maioria dos casos, nas ruas de São Tomé. O objetivo do nosso projeto seria realizar atividades para desenvolver talentos, promover a saúde e o cuidado do ambiente.

Isto era o que tínhamos, quando lançámos as candidaturas do projeto: a colaboração com a ARCAR e o nome do projeto – Bon-dja São Tomé, que significa "bom dia" no dialeto deste país. Também tínhamos uma vontade enorme de fazer a diferença, um otimismo inexperiente e nada mais: viagens, alojamento, aspetos logísticos, nada tínhamos ainda garantido.

Lançámos o projeto no Instagram, nas Universidades, nas Paróquias e Movimentos, sem saber muito bem qual ia ser o resultado: "6 meses de formação, duas semanas em ação, uma vida em missão", era o nosso lema. Como referi, não queríamos apenas organizar duas semanas de atividades. Queríamos que as voluntárias fossem protagonistas. E para isso queríamos formar uma boa equipa de voluntárias. Consideramos a formação uma parte integrante do projeto Bon-dja.

Tivemos imensas candidaturas! Quais eram os requisitos? Ser estudante do Porto ou de Braga e ter disponibilidade para participar nas formações. O projeto tem uma identidade cristã, mas é aberto a todas as pessoas, desde que se identifiquem com os valores e que queiram integrar a equipa. Por esse motivo, entre as voluntárias houve uma diversidade de cursos, crenças e modos de ser, que consideramos muito enriquecedora.

Grupo de crianças do bairro do Mulundo

Para a equipa responsável convidámos a Xanda Cabral e a Catarina Soares que, pela sua experiência em projetos de voluntariado em África, foram uma grande ajuda! Também contámos com o apoio do Clube Rampa e do Clube Colina, que desde logo assumiram o projeto. Ainda tínhamos muitos assuntos por tratar, mas já tínhamos grupo. Éramos no total 32 voluntárias cheias de vontade de embarcar nesta aventura!

O primeiro encontro foi em janeiro de 2022: começavam os 6 meses de formação, que terminariam em julho com a viagem para São Tomé. Cada voluntária integrou uma das equipas de trabalho responsável por algum dos âmbitos do projeto: atividades, fundraising, comunicação e marketing, serviço e logística e formação espiritual. Em março tivemos um bootcamp. Foi um dos momentos mais importantes do projeto, em que passámos de um grupo a ser uma verdadeira equipa.

Os vários aspetos começaram a ficar definidos: comprámos as viagens, conseguimos alojamento na Escola Portuguesa de São Tomé, criámos um site, desenvolvemos várias iniciativas para angariação de fundos. Aproveito para agradecer a todos os que nos ajudaram! Um dos maiores desafios de um projeto de voluntariado é sem dúvida a sustentabilidade. Apesar de cada uma pagar a sua viagem, há muitos custos associados e tivemos muitas ajudas.

No dia 20 de julho de 2022, depois de várias peripécias, embarcámos para São Tomé e Príncipe: começavam as duas semanas de ação, tão desejadas e preparadas por todas nos últimos meses. A excitação era muita, impossível de disfarçar, mesmo num voo com centenas de pessoas e o triplo de malas, da STP Airways. Éramos muitas brancas, nome ao qual rapidamente nos habituamos.

Viajámos de noite e chegámos ainda de madrugada. A chegada foi épica: nada mais nada menos do que uma escolta do exército que levava as brancas e as suas malas numa carrinha de caixa aberta para a Escola Portuguesa. Nessas malas levámos grande parte do material das atividades, bem como os alimentos para os primeiros dias. O resto ia chegar mais tarde num contentor, outra peripécia que fica por contar! Mas mais cedo ou mais tarde, chegou tudo o que precisávamos.

Nos três primeiros dias conhecemos a ARCAR, onde iríamos passar as semanas seguintes dividas em três grupos, visitámos uma das praias da ilha, as antigas roças de café e de cacau e preparámos as atividades. Atrevo-me a dizer que nestes dias passámos de uma equipa a um grupo de amigas. A amizade não se improvisa; precisa de tempo, confiança e dedicação. Nestes dias que passámos juntas, fomos ficando amigas. Foi este clima de amizade que levámos a cada casa e a cada criança.

As duas semanas que se seguiram passaram demasiado rápido! Na Sede, o orfanato da ARCAR, houve um campeonato de xadrez na primeira semana e um campeonato de futebol na segunda. Os pais da Joana, uma das voluntárias, ofereceram vários tabuleiros para podermos jogar com as crianças. Também as voluntárias aprenderam a jogar para poderem ensinar. O xadrez ajuda a desenvolver o raciocínio e a concentração, é um jogo ótimo! A tia da Kika fez camisolas para as equipas de futebol, foi um campeonato digno de Mundial. Nesta casa, é impressionante a ligação dos mais velhos com os mais novos, que se relacionam como verdadeiros irmãos. Foi um local marcante para todas as que por lá passaram e estabeleceram laços com estas crianças, que são muito carinhosas.

O Bairro da Liberdade cativou-nos desde o início pelas suas danças! A música não pára de tocar e todas viemos de São Tomé embaladas pelos ritmos africanos – vai-se dar mal, turma fantasma e calm down passaram a fazer parte das nossas playlists, para assombro da nossa família que pergunta abismada: desde quando ouves isso? Na Liberdade não estivemos só com as crianças e jovens, mas também com a comunidade. Visitámos as casas e as famílias e comprovámos que temos ainda muito por fazer!

No Mulundo, encontrámos, num espaço muito pequeno, crianças com um coração muito grande. O centro de estudos foi construído numa antiga lixeira e são apenas duas salas de reduzidas dimensões, para quase cem crianças. Na rua juntavam-se muitas mais, que íamos deixando entrar, mesmo sabendo que não cabiam e que não havia comida. Mas tudo se resolve. Passámos a levar sandes de casa, para dar o almoço aos miúdos que se multiplicavam cada dia. Tínhamos que improvisar tudo: atividades ao ar livre, material, música numa coluna pequena quando faltava a eletricidade. Mas São Tomé ensinou-nos o seu lema de vida: leve leve. Tudo se resolve!

Cada manhã começava com um conto representado onde se transmitiam valores. Houve artes com aproveitamento de lixo reciclado. Houve jogos sobre o ambiente, construímos contentores de lixo e ensinámos a reciclar. Falámos sobre saúde e ensinámos a lavar os dentes com umas bocas gigantes e bactérias de cartão. Distribuímos sabonetes que a irmã da Beatriz arranjou para todas as crianças. Houve muita música e muitas danças, isso ensinaram-nos eles! E também nos ensinaram como se pode ser feliz com pouco e como somos umas privilegiadas.

No último dia houve festa! A carrinha da ARCAR e outras emprestadas fizeram várias viagens para transportar as crianças da Liberdade e do Mulundo até à Sede. Juntámos todas as crianças, funcionários da ARCAR e voluntárias. Os miúdos da Sede com ajuda das voluntárias decoraram o pátio a rigor: festa é festa!

No Mulundo e na Liberdade tinham ensaiado durante a semana o teatro do Rei Leão, que foi representado com o máximo empenho. Não faltaram as máscaras coloridas nem os cenários da selva, pintados na véspera. Uma das crianças da Sede declamou um poema. Como não podia deixar de ser, todos dançaram. Veio a televisão registar o evento. Mas ficou acima de tudo registado na nossa mente e no nosso coração.

Foi o último dia de atividades. Entre lágrimas e risos, a despedida incluiu assinaturas nas camisolas, abraços e a promessa que vamos voltar. Nessa noite voltámos para Portugal: começava a "vida em missão". Uma nova etapa para todas nós!

Esta foi a primeira edição do projeto Bon-dja São Tomé. Uma pequena gota, num oceano imenso das necessidades de África e do mundo. Mas Madre Teresa dizia que o oceano seria menor com menos uma gota, e nós estamos de acordo. O importante é que cada um descubra a sua gota e não fique sentado no sofá.

No inicio não sabíamos muito bem em que ia consistir o projeto que criámos no Verão de 2021. Neste momento são inúmeros os horizontes que temos pela frente: repetir o projeto do campo de férias com as crianças da ARCAR, ajudar na formação dos técnicos, criar uma equipa de primeiros socorros pediátricos, dar a conhecer o Bon-dja e angariar fundos, desenvolver campanhas solidárias...

Tudo começou numa conversa na esplanada e numa frase do Papa Francisco nas JMJ de Cracóvia. Espero que as Jornadas Mundiais da Juventude deste ano em Lisboa levem muitos jovens a querer fazer a diferença. E que muitas conversas na esplanada possam acabar em projetos e em desejos de mudar o mundo.