S. Nicolau tinha barba?

Biografia de ISIDORO ZORZANO LEDESMA. ENGENHEIRO INDUSTRIAL. (Buenos Aires, 1902 - Madrid, 1943) por José Miguel Pero-Sanz.

(Ed. portuguesa: Encontro da Escrita, Lisboa 2020)

A partir de Quinta-Feira da Paixão (15 de abril), durante várias semanas só poderá ingerir iogurte e fruta cozida. Nessa noite, dão-lhe ainda um prato de croquetes. Comê-los pressupõe um martírio, que oferece pelos apostolados do Opus Dei. Quem o acompanha diz: «Isidoro, como cresce a Obra à força de croquetes!»[1]. Zorzano assente: «Quem diria! Aqui não se desperdiça nada!». De qualquer modo, a enfermeira acha que comeu pouco e diz ao médico que só tomou quatro croquetes. Isidoro, bom contabilista, sorri, e com voz apagada, especifica: «Cinco». E, para arrumar o assunto, recorda que os tomou partidos ao meio: «Dois vezes cinco, dez». A digestão do «festim» impede-o de dormir e o acompanhante exagera – desta vez por excesso – o apetite do enfermo: a causa da insónia deve ser «o consomé, que tomaste todo». Mas Zorzano também não deseja elogios imerecidos: «Não, todo não; três colheradas». A enfermeira recorda-lhe que na noite anterior conseguiu conciliar o sono. Isidoro continua a brincar: «Teria menos preocupações…». Mas – não o vão levar a sério! – esclarece: «Nem ontem nem hoje tenho nenhuma».

Quando a enfermeira se vai, sugere: «Vamos rezar as Preces». Depois recita, como sempre, as três Ave-Marias com os braços abertos de par em par; faz o seu exame de consciência, com o crucifixo nas mãos; e asperge, como costuma, um pouco de água-benta sobre a cama. As horas passam lentamente. O acompanhante repara que Zorzano está com muita dificuldade em respirar; e manda vir a enfermeira, que chama o médico. O doente verifica que horas são e lamenta: «Pobre doutor! E eu, sempre exigente. Que chatinho é o Eng. Isidoro!».

Superada a crise, continua a noite interminável. Isidoro fala, em voz baixa e muito devagar: «Estou quase a ir para a outra Casa: é apenas uma mudança de casa… Tenho que pôr muitas coisas em ordem…». E volta a cabeça para pedir orações: quanto tiver morrido, «lembrai-vos de mim». As suas palavras entrecortadas são muito serenas: «É uma mudança de casa, só uma mudança de casa… Há muitas coisas para tratar: a aprovação de Roma… não será antes do fim do ano…». Continua a pensar na casa do Céu. De repente, diverte-o uma ideia: «Uma das primeiras coisas a fazer quando chegar é procurar que me apresentem a S. Nicolau»[2]. «Ficarei a saber como é a cara dele!». «Deve estar – diz – aborrecido com Fernando», que umas vezes o pinta com barba e outras imberbe. Depois de sair de dúvidas, «terei que explicar muitas coisas a S. Nicolau…». Terá que informar o Santo Bispo «de algumas coisas», dificuldades económicas, das quais «parece que não quis inteirar-se»[3].

Finalmente, amanhece o dia 16. Estão a ler o Evangelho «Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus…» (Mt 18, 3), quando chega o Padre, que traz a Comunhão. Vem acompanhado por Álvaro e Ricardo. Ao despedir-se deles, Isidoro pergunta: «Hoje é o onomástico da Avó?». Efetivamente, é sexta-feira da Paixão, dedicada à Virgem das Dores.

«É o onomástico da Avó. […] Quanto a fizemos sofrer! A ela, e a Carmen e a Santiago! Pobre Avó: durante a revolução, eu levava-lhe todas as cartas e os meus diários e todos os papéis, e metia-os no colchão da cama dela… Pobre Avó! Não ouvia uma única vez a campainha que não se metesse na cama, com medo de que os encontrassem».

Evoca os primeiros tempos, quando S. Josemaria e os seus filhos não tinham onde se reunir e se sentavam num banco da rua ou iam ao Parque do Retiro. Alguns dias, o Fundador convidava-os para lanchar «e gastava, do seu bolso, o dinheiro que tinha para o jantar da sua casa… E a Avó não jantava naquele dia, nem ninguém da família».

Pelas nove e meia da manhã, há substituição do acompanhante: chega José Javier López Jacoiste. Leem um livro sobre a Santíssima Virgem. Depois conversam. Isidoro cansa-se muito e o seu coração bate acelerado. Dão-lhe uma injeção e continua a conversa[4]. Com José Maria Albareda, que o visita, falam sobre o andamento da guerra e sobre outras notícias: acaba de ser inaugurada a linha férrea Santiago-La Corunha. Zorzano, como especialista na matéria, explica as peripécias dessa obra[5].

De novo a sós com José Javier, pouco antes do meio-dia, a respiração de Isidoro torna-se mais angustiosa: «Por momentos, sinto que o Senhor me chama. […] Tira fortaleza da minha morte: perseverança, perseverança. Sede muito fiéis ao Padre e tende muito amor à Obra. Que nada nos ate à terra…»[6]. José Javier, que não tinha ouvido Zorzano falar da sua morte, interpreta que se trata de algo iminente e vai a corrertelefonar: «Parece que se vai; a ver se vem alguém…»[7]. Na realidade, o acompanhante exorbitou um pouco a situação; mas daí a pouco chegam Pedro Casciaro e outro.

Em breve, aparece também Álvaro. O momento de sufoco já passou, como doutras vezes, mas pode sobrevir de improviso; e Álvaro pergunta: «Isidoro, queres que o Padre te traga a Unção dos Doentes?»[8]. «Sim, sim. Ia precisamente dizer-te isso»[9].

Passado um bocado – que Isidoro e os outros dedicam a conversar com toda a naturalidade – Álvaro volta acompanhando o Padre, que traz os Santos Óleos. Entram também o médico e a sua mulher. Para lhes evitar um mau bocado, decidem não avisar as Zorzano, que teriam sofrido muito. Por outro lado, não convém atrasar o Sacramento.

Como habitualmente, mal chegou, o Fundador abençoa o enfermo, com um sinal da Cruz na fronte. Fala um pouco com o seu filho mais velho, que reflete uma enorme sensação de paz no rosto, […] mais feliz que nunca. Eu – dirá José Javier – nunca vira nada semelhante: a mesma simplicidade, a mesma normalidade com que vamos todos os dias comungar, assim estava ele»[10]. O Padre vai explicando os ritos, enquanto unge o doente. Antes de ungir as mãos, assinala que aos sacerdotes são ungidas pelo dorso, porque as suas palmas já foram ungidas na Ordenação. Recorda que a Igreja também pede a saúde corporal para o enfermo, se isso lhe convém. Isidoro não pode deixar de repetir o que tantas vezes ouviu ao próprio Padre Josemaria: «Que boa Mãe é a Igreja, que tem um remédio para cada necessidade! Agora sinto esta paz e alegria tão grandes!»[11].

O sublime alterna com o familiar. Acaba de chegar José Luis Múzquiz e Zorzano repara que traz a gabardina molhada: «Por favor, José Luis, tira-a, que te vaisconstipar»[12].

Álvaro, que ajudou o Padre durante a cerimónia, comenta: «Isidoro: tu sim, podes dizer bonum certamen certavi, cursum consummavi, fidem servavi»[13]. O enfermo brinca. Como Álvaro, e também José Luis, andam há muito tempo a preparar-se para o Sacerdócio, Isidoro diz: «Estás a ver, Álvaro? Tu, tanto tempo a estudar, e a mim acabam de me ungir num instante»[14].

O ambiente é descontraído. Segundo o Padre, mais que uma Unção de Enfermos, «parecia uma festa de casamento»[15]. Antes de irem embora, Zorzano recorda que é Sexta-Feira da Paixão, um dia da Santíssima Virgem: «Que bom seria morrer hoje para passar esta festa com Ela!»[16]. O Fundador despede-se comovido: «Meu filho!»[17].

Ficam apenas o doente e José Javier. Zorzano pergunta que horas são:uma e um quarto da tarde. «E não rezámos o Angelus!»[18]. Rezam-no e continuam a conversar. Isidoro pondera a sua «sorte grande» com Deus, que lhe concedeu receber com plena consciência o sacramento da Unção dos Doentes[19]. Sublinha também o tom festivo em que se desenrolou a cerimónia: «Certamente já tens presenciado: quando […] se administra a Unção dos Doentes, que luta e que lágrimas! […]. Mas aqui, que alegria e que paz! Só por isso vale a pena estar na Obra»[20].

Em dado momento, José Javier mostra o pequeno crucifixo que o próprio Zorzano, por indicação do Padre, lhe dera em Saragoça. Isidoro explica como, enquanto rezava diante desse Cristo, teve conhecimento – em 1938 – do êxito que teria a evasão de Álvaro, Vicente e Eduardo, e a data em que chegariam a Burgos: «Portanto, esse Cristo é uma relíquia»[21]. Interrompe-os a mulher do médico: chega com a filha, que está muito vaidosa pela faixa que lhe vão dar, como prémio, no colégio[22].

Com o almoço, fazem tomar um calmante ao doente, para que adormeça[23]. Durante a tarde desperta-o uma trovoada: vê Carmen Escrivá, que veio visitá-lo. O contraste entre Isidoro, sempre pacífico, e o temperamento vivo de Carmen foi tema de muitas piadas. Agora soa um trovão muito forte e Zorzano diz à irmã do Fundador: «Isso é por ti»[24]. Mais tarde chega Salus. Quando se vai, Isidoro diz a Manolo Botas – o novo acompanhante –: «Vou fazer oração»[25]. Tira o seu crucifixo do bolso e permanece imóvel com as mãos cruzadas sobre o peito, durante meia hora[26].

Depois chegam mais visitas. O crepúsculo favorece a conversa íntima e Álvaro comenta como deve ser magnífico contemplar a Virgem face a face. Isidoro assente com entusiasmo. Mas o caráter sublime do assunto não dissipa o tom familiar, divertido, da conversa. Já quase não há luz, e Zorzano comenta: «Isto parece uma reunião de maus da fita»[27].

Depois do jantar volta a mulher do médico. De repente exclama:

– Eng. Isidoro: o senhor é um santo![28].

Sim, minha senhora: – corta rapidamente – e quando chegar ao Céu também terão que me pôr uma faixa como a da sua filha[29].

Durante a noite, não consegue dormir[30]. Pergunta pelo médico; mas não vem. Isidoro– refere o seu acompanhante– «não volta a dizer nada em toda a noite»[31], que passa sem pregar olho. No dia seguinte tudo será normal: a meditação, um Terço, o Viático que lhe traz o Padre…[32]. Zorzano comenta que ficou muito tranquilo depois da Unção: «Ajuda muito»[33].

Comunicam ao Núncio o agravamento do estado de saúde de Isidoro. Mons. Cicognani promete que celebrará a próxima Missa por sua intenção. «Assim dá gosto estar doente»[34], diz Zorzano. Contudo, não lhe contam o conselho do representante papal: «Tomem notas» – recomenda – das palavras e reações de Isidoro, «porque depois poderão ser úteis»[35]. Na realidade, já o vinham fazendo, por indicação do Fundador[36].

A revisão do texto editado em português é da responsabilidade de www.opusdei.pt.


[1] Ramón Guardáns Vallés, Madrid V-1943 (AGP, IZL T-104). Salvo indicação expressa, todo o relato da noite de 15 para 16 de abril é tirado deste testemunho.

[2] Declaração de Juan Antonio Paniagua Arellano, (PI, Cp, f. 572).

[3] Declaração de Juan Antonio Paniagua Arellano, (PI, Cp, f. 572).

[4] José Javier López Jacoiste, Madrid 17-IV-1943 (AGP, IZL T-109).

[5] Cf Ibid.

[6] Ibid.

[7] Ibid.

[8] Ibid.

[9] Álvaro del Portillo e A. Rodriguez Vidal, Apuntes para un perfil…, cit., p. 358; cf José Javier López Jacoiste, Madrid 17-IV-1943 (AGP, IZL T-109) e Diário do centro de Núñez de Balboa cit., 16-IV-1943.

[10]José Javier López Jacoiste, Madrid 17-IV-1943 (AGP, IZL T-109).

[11] Declaração de S. Josemaria Escrivá, (PI, Cp, f. 1076v). Cf, também, José Luis Múzquiz de Miguel, Derio (Biscaia) 29-VIII-1975 (AGP, RHF D-04417); Juan de Udaondo Barinagarrementería, (PI, Cp, f. 507v); Francisco Martí Gilabert, Madrid 25-XII-1992 (AGP, IZL T-456).

[12] José Luis Múzquiz de Miguel, Derio (Biscaia) 29-VIII-1975 (AGP, RHF D-04417, p. 150). Está em curso o processo de Canonização de José Luis Múzquiz.

[13] Ramón Guardáns Vallés, Madrid 20-II-1948 (AGP, IZL T-361).

[14] Declaração de Antonio Huerta Ferrer, (PI, Cp, f. 779v). Cf. também, Juan de Udaondo Barinagarrementería, (PI, Cp, f. 508) e Ramón Guardáns Vallés, Madrid 20-II-1948 (AGP, IZL T-361).

[15] José Luis Martínez Calbetó, Madrid 20-IV-1943 (AGP, IZL T-125); cf. também, José Javier López Jacoiste, Santiago de Compostela 25-I-1948 (Ibid., T-309).

[16] Declaração de S. Josemaria Escrivá, (PI, Cp, f. 1081). Cf. também, Manuel Botas Cuervo, (PI, Cp, f. 477); A. del Portillo e A. Rodriguez Vidal, Apuntes para un perfil…, cit., p. 359; Juan de Udaondo Barinagarrementería, Valladolid VII-1943 (Ibid., T-23).

[17] José Javier López Jacoiste, Madrid 17-IV-1943 (AGP, IZL T-109).

[18] Ibid.

[19] Cf. Ibid.

[20] Bernardo García Rodrigo, Madrid 19-IV-1943 (AGP, IZL T-42); cf. José Javier López Jacoiste, Madrid 17-IV-1943 (AGP, IZL T-109).

[21] José Javier López Jacoiste, Madrid 17-IV-1943 (AGP, IZL T-109); cf. também, a sua declaração (PI, Cp, f. 56v-57 e 66-66v); bem como o testemunho de José Luis Múzquiz de Miguel, Derio (Biscaia) 29-VIII-1975 (AGP, RHF D-04417).

[22] Cfr Ibid.; cf. também Manuel Botas Cuervo, Madrid 16-IV-1943 (AGP, IZL T-80).

[23] Cfr Ibid.

[24] Manuel Botas Cuervo, Madrid 16-IV-1943 (AGP, IZL T-80).

[25] Ibid.

[26] Cf. Ibid.

[27] Ibid.

[28] Ibid.

[29] A frase é uma reconstrução que integra as palavras recolhidas nos relatos de Manuel Botas Cuervo, Madrid 16-IV-1943 (AGP, IZL T-80) – cf. declaração (PI, Cp, f. 479-479v) –; José Ramón Madurga Lacalle, La Granja (Segóvia) 27-VII-1943 (AGP, IZL T-25); José Luis Múzquiz de Miguel, Derio (Biscaia) 29-VIII-1975 (AGP, RHF D-04417) e Justo Martí Gilabert, Valência 14-IV-1947 (AGP, IZL T-188).

[30] Cf. o testemunho do novo acompanhante noturno, Ángel López-Amo Marín, Madrid 17-IV-1943 (AGP, IZL T-83).

[31] Ibid.

[32] Cfr Ibid.; cf., também, Teodoro Ruiz Jusué, Madrid 17-IV-1943 (AGP, IZL T-68).

[33] José Luis Múzquiz de Miguel, Madrid 17-IV-1943 (AGP, IZL T-31).

[34] Gregorio Ortega Pardo, Madrid 19-IV-1943 (AGP, IZL T-33).

[35] José Luis Múzquiz de Miguel, Derio (Biscaia) 29-VIII-1975 (AGP, RHF D-04417, p. 151).

[36] Cf. Ibid.