Respeito pelo passado: a propósito de “O Código Da Vinci”

A uma obra de ficção não se exige o rigor de um trabalho de investigação histórica. Supõe-se, no entanto, que o autor não deturpe ou invente duma maneira tão infantil a realidade do passado.

A uma obra de ficção não se exige o rigor de um trabalho de investigação histórica. Supõe-se, no entanto, que o autor não deturpe ou invente duma maneira tão infantil a realidade do passado.

No mundo editorial, de vez em quando, somos surpreendidos por obras de ficção que nos atraem, ou, pura e simplesmente, conhecem algum êxito nas suas vendas.

Quando sucede este segundo caso, nem sempre o produto é de primeira qualidade. Mas em todos nós existe a esperança de que o que diz cumpra minimamente as regras do sentido comum e do respeito pelo que a realidade histórica nos ensina. Certamente que a uma obra de ficção não se exige o rigor de um trabalho de investigação histórica.

Supõe-se, no entanto, que o autor não deturpe ou invente duma maneira tão infantil a realidade do passado, que o livro, ainda que possa ter aspectos literários aceitáveis, seja uma série de disparates ou de fantasias que se repetem sem qualquer fundo objectivo e, muito menos, comprovativo da trama que nele se urde.

No fundo, tratar o passado de modo aleatório, colorir personagens que existiram com tintas que nada têm a ver com o que viveram ou realizaram, eis uma forma infeliz de desrespeitar pessoas humanas que não têm possibilidade de se defender, porque já cá não estão. E é o que acontece com “O Código Da Vinci”.

O teor das arbitrariedades desta obra torna-se mais perceptível quando o autor, referindo-se a uma realidade do presente, que é a Prelatura do Opus Dei, transforma um seu membro num monge. Ora, falar de “monges” desta instituição da Igreja Católica tem tanto sentido da realidade como pensar que o bom dum frade da Cartuxa de Évora — por quem sinto tanta admiração e respeito —, que se encerra voluntariamente na sua cela e não fala salvo raramente, se dedica agora a ser mecânico de automóveis ou funcionário duma empresa qualquer, algures por esse mundo…

Mas se ainda o Opus Dei se pode defender, recomendando ao autor, como mínimo, a necessidade de estudar primeiro o que ele é e o que faz, para depois poder efabular com seriedade sobre a vida de um seu membro, já não é possível dizer-se o mesmo de Maria Madalena, de S. João Evangelista, de Jesus ou do próprio Da Vinci, que o autor tornou descendente longínquo do Rabi da Galileia, ao descobrir — melhor dito, ao afirmar, por pura conveniência do enredo da sua história — que Cristo manteve uma relação amorosa com Maria Madalena.

De todo este cozinhado há inexactidões que dariam para “chumbar” um dos nossos alunos liceais irremediavelmente. Como observa Thomas Roeser, no Chicago Sun Times (27/09/03), o autor pretende que na obra pictórica de Da Vinci, “A Última Ceia”, «a figura que está à direita de Cristo não é S. João, mas Maria Madalena»; isso, porém, «não é verdade, como explica Bruce Broucher, conservador do Art Institute de Chicago , o que lança por terra a sua teoria». Da mesma opinião se manifesta a historiadora Sandra Miesel ( New York Daily News , 4/09/03), que ironiza sobre pretensão tão grosseira: «Esta curiosa faceta não tinha sido descoberta até agora…»

O autor chama também a atenção — e retira dividendos novelísticos oportunos —, para o facto de no quadro citado não aparecer o cálice da Ceia do Senhor. Mais uma vez vem ao de cima o desacerto histórico — comenta a mesma historiadora —, se tivermos em conta de que o fresco se fundamenta numa passagem do Evangelho de S. João, «que não diz uma palavra sobre a instituição da Sagrada Eucaristia».

E como julgar a cena ridícula em que um Papa atira ao romano rio Tibre «as cinzas dos Templários que ele exterminou… justamente na época em que o papado sofria o desterro de Avignon»? Enfim, conclui a escritora Cynthia Grenier ( Weekly Standard , 22/09/03): «Por favor, alguém deveria dar a este homem e aos seus editores umas aulas básicas de história do cristianismo e um mapa».

Razão terá o crítico espanhol F. Casavella ( El País , 17/01/04) para sublinhar que “O Código Da Vinci” é a pior miscelânea que teve entre mãos «desde os romances de quiosque dos anos setenta». E prossegue: «Pode perdoar-se tudo; mas o que não pode perdoar-se é que este romance se promova, através de canais publicitários convencionais, como um produto de certo valor […]. Não posso deixar de felicitar as editoriais de todo o mundo que, a seu tempo, rejeitaram a publicação desta infâmia e agora não se arrependem. É a demonstração de um resto de dignidade, não só no mundo editorial, como no sistema comercial».

P. Rui Rosas da Silva

Diário do Minho//25/05/2004