Recordando aqueles dias

Em 17 de Maio de 1992, João Paulo II beatificou em Roma Josemaria Escrivá de Balaguer, fundador do Opus Dei. Em recordação desses dias disponibiliza-se um vídeo que mostra a universalidade desta Prelatura da Igreja Católica e um extracto da homilia do então cardeal Ratzinger pronunciada numa Missa de acção de graças pela Beatificação.

“Identificou-se com a Vontade de Deus”

A beatificação de Josemaria Escrivá diz-nos que este sacerdote do nosso século se encontra no coro dos que louvam a Deus e que nele se tornam realidade as palavras da leitura de hoje: «Aos que predestinou (...) a esses também os glorificou» (Rom 8, 30). A glorificação não pertence ao futuro, mas já teve lugar; recordam-no-lo as beatificações. «Louvai o nosso Deus (...), pequenos e grandes»: Josemaria Escrivá ouviu esta voz entendeu-a como a vocação da sua vida, mas não a aplicou somente a si mesmo e à sua própria vida. Considerou como missão própria transmitir a voz que sai do trono, fazê-la ouvir no nosso século. Convidou os grandes e os pequenos a louvar a Deus e precisamente por isso ele mesmo glorificou a Deus.

Josemaría Escrivá deu-se conta muito depressa de que Deus tinha um plano para ele de que queria algo dele. Mas não sabia o que era. Como poderia encontrar a resposta, onde a deveria procurar? Pôs-se a procurar, sobretudo escutando a palavra de Deus, a Sagrada Escritura. Lia a Bíblia não como um livro do passado, nem como um livro de problemas sobre que se discutem, mas como uma palavra do presente, que nos fala hoje: uma palavra na qual cada um de nós é protagonista e devemos procurar o nosso sítio, para encontrar o nosso caminho. Nesta busca moveu-o especialmente a história do cego Bartimeu que, sentado à beira do caminho de Jericó, ouviu que passava Jesus e implorou aos gritos a sua misericórdia (Cfr Mc 10, 46-52). Enquanto os discípulos tentavam fazer calar o mendigo cego, Jesus dirigiu-Se a ele perguntou: «Que queres que te faça?» Bartimeu respondeu: «Senhor, que eu veja!» Josemaría reconhecia-se a si mesmo em Bartimeu: Senhor, que veja! Era o seu clamor constante: Senhor, faz-me ver a tua vontade!

O homem começa verdadeiramente a ver, quando aprende a ver a Deus. E começa a ver a Deus, quando vê a sua vontade e está disposto a fazê-la sua. O desejo de ver a vontade de Deus e de identificar a vontade própria com a Sua foi sempre o verdadeiro móbil da vida de Escrivá «Faça-se a tua vontade assim na terra como no céu.» Esse desejo e essa incessante súplica foram-no preparando para responder, no momento da iluminação, como Pedro: «Senhor, em teu nome lançarei a rede» (Lc 5, 5). O seu sim não era menos aventurado que aquele sim no lago de Genesareth depois de uma noite infrutuosa: Espanha encontrava-se revoltosa pelo ódio à Igreja, a Cristo, a Deus. Tentavam arrancar a Igreja do país, quando recebeu o encargo de lançar a rede para Deus. A partir daí e ao longo de toda a sua vida, como pescador de Deus, foi lançando a rede divina sem cansaço nas águas da nossa história, para atrair para a luz grandes e pequenos, para lhes devolver a vista.

A vontade de Deus. Sobre isto São Paulo diz aos Tessalonicenses: «Esta é a vontade de Deus, a vossa santificação» (Thes 4, 3). A vontade de Deus é, em último termo, muito simples e no seu núcleo sempre a mesma: a santidade. E santidade significa, como nos diz a Leitura de hoje, chegar a ser semelhantes a Cristo (Cfr Rom 8, 29). Josemaria Escrivá considerou esta chamada não só dirigida a si próprio, mas sobretudo como um encargo para a transmitir aos outros: animar à santidade e congregar para Cristo uma comunidade de irmãos e irmãs.

O significado da palavra «santo» experimentou ao longo dos tempos um estreitamento perigoso, que sem dúvida continua a ter influencia ainda hoje. Faz-nos pensar nos santos que vemos representados nos altares, em milagres e virtudes heróicas e sugere-nos que a santidade é para uns poucos eleitos, dentre os quais não nos podemos incluir. Então deixamos a santidade para esses poucos, cujo número desconhecemos e conformamo-nos, simplesmente, em ser como somos.

No meio desta apatia espiritual, Josemaria Escrivá actuou como um despertador, clamando: Não, a santidade não é o extraordinário, mas o ordinário, o normal para cada baptizado. A santidade não consiste em certos heroísmos impossíveis de imitar, mas tem mil formas e pode tornar-se realidade em qualquer sítio e profissão. É o normal e consiste em dirigir a Deus a vida corrente e penetrá-la com o espírito da fé.

Consciente deste encargo, o nosso Beato viajou incansavelmente por diferentes continentes, falando às pessoas para os animar a ser santos, a viver a aventura de ser cristãos qualquer que seja a posição de cada um na vida. Assim, chegou a ser o grande homem de acção, que vivia da vontade de Deus e chamava outros para ela sem se converter num «moralizador». Sabia que não podemos fazer-nos justos a nós próprios; da mesma maneira que o amor pressupõe o passivo de ser amado, assim a santidade vai sempre unida a algo passivo: aceitar ser amado por Deus.

A sua fundação chama-se Opus Dei , não Opus nostrum . Não queria criar a sua obra, a obra de Josemaria Escrivá; não pretendia fazer um monumento a si próprio. A minha obra não é minha, podia e queria dizer na linha de Cristo, em identificação com Ele (Cfr Ioh 7, 16): não queria fazer o seu próprio, mas antes deixar lugar a Deis, para que fizesse a Sua Obra. Seguramente era consciente também do que Jesus nos diz no Evangelho de São João: «A obra de Deus é que acrediteis» (Ioh 6, 29), quer dizer, entregar-nos a Deus para que possa actuar por nosso intermédio.

Desta maneira surge uma nova identificação com uma palavra da Escritura. A palavra de Pedro no Evangelho de hoje chegou a ser a sua própria palavra: Homo peccator sum – sou um homem pecador. Quando o nosso Beato reconheceu a pesca abundante da sua vida, assustou-se como Pedro ao ver a sua miséria em comparação com o que Deus queria fazer nele e através dele. Chamava-se a si mesmo «fundador sem fundamento» e «instrumento inapto»: sabia e via com clareza que tudo isso não o tinha feito ele, que não podia fazê-lo, mas Deus que actuava através de um instrumento que parecia totalmente inapto. E isto é o que, em último termo, quer dizer «virtude heróica»: torna-se realidade o que só Deus pode fazer.

Josemaria reconhecia a sua miséria, mas entregou-se a Deus sem se preocupar consigo próprio, mantendo-se disponível para a vontade de Deus; prescindiu de si mesmo e de todo o interesse pessoal. Uma e outra vez falava das suas «loucuras»: começar sem meios nenhuns, começar no meio do impossível. Pareciam loucuras que devia arriscar fazer e arriscou. Neste contexto vêm-nos à mente aquelas palavras do seu grande compatriota Miguel de Unamuno: «Só os loucos fazem o sensato, os sábios não fazem senão tontarias». Atrevia-se a ser algo assim como um D. Quixote de Deus. Ou não parecerá «quixotesco» ensinar, no meio do mundo de hoje, a humildade, a obediência, a castidade, o desprendimento das coisas materiais, o esquecimento de si próprio? A vontade de Deus era para ele o verdadeiramente razoável e, assim, se mostrou racional o aparentemente irracional.

A vontade de Deus. A vontade divina tem o seu lugar concreto e a sua forma concreta neste mundo: tem um corpo. O Corpo de Cristo ficou na Igreja. Por isso não se pode separar a obediência à vontade de Deus, da obediência à Igreja. Somente se inclui a própria missão na obediência à Igreja, tenho a garantia de considerar os meus próprios ideais como a vontade de Deus, de seguir realmente a Sua chamada. Por isso, para Josemaria Escrivá o nível básico da sua missão foi sempre a obediência à Igreja hierárquica e a união com ela. Nisto não há nada de positivismo, de autoridade: a Igreja não é um sistema de poder; não é uma associação para fins religiosos, sociais ou morais, que vai idealizando o modo de alcançar melhor esses fins; e, se fosse o caso, substituí-lo por outros mais de acordo com os tempos actuais.

Quando com dois anos Josemaria Escrivá adoeceu muito gravemente e estava desenganado pelos médicos, a sua mãe decidiu dedicá-lo a Maria. Com enormes dificuldades levou o seu filho, por um caminho pedregoso, à Ermida de Nossa Senhora de Torreciudad e entregou-o ali à Mãe do Senhor, para que fosse a sua mãe. Assim, Josemaria soube-se, ao longo de toda a vida, sob a protecção do manto da Virgem, que era sua Mãe. No seu quarto de trabalho, frente à porta, havia um quadro de Nossa Senhora de Guadalupe; esta imagem acolhia o seu primeiro olhar de cada vez que entrava. Recebeu também o seu último olhar. À hora da sua morte, mal tinha entrado no quarto e olhado a imagem da Mãe, caiu ao chão. Enquanto morria tocavam os sinos, o Angelus, anunciando o “fiat” de Maria e a graça da Encarnação do Filho, nosso Salvador. Com este sinal, que surgiu no início da sua vida e lhe assinalava a direcção, regressou a Deus.

Vamos dar graças ao Senhor por esta testemunha da fé no nosso tempo, por este incansável pregoeiro da Sua vontade e vamos pedir: Senhor, que eu também veja! Faz com que reconheça a tua vontade e a cumpra! Amén.

Homilia na Basílica dos Doze Apóstolos.

Terça-feira, 19 de Maio de 1992

Cardeal Joseph Ratzinger

Perfeito da Congregação para a Doutrina da Fé