Portugal: uma espécie de movimento “#lavar as mãos não basta”

A solução que conciliou o sofá de casa com o sair de casa. Uma fórmula da Aurora, da Milocas e da Dita, explicada pela Dita.

Quando começou o estado de emergência, “ajudar ficando em casa” era o mote, mas a minha consciência ficou inquieta, sobretudo ao ver as imagens de Itália e de Espanha, aqui ao lado. Ficava comovida com as respostas humanitárias.

… como ajudar se temos de ficar em casa? Sem poder aparentemente fazer muito, procurámos ser criativas.

Numa conversa com outras amigas, percebemos que não podíamos, nem devíamos, ficar indiferentes. Mas… como ajudar se temos de ficar em casa? Sem poder aparentemente fazer muito, procurámos ser criativas.

Foi aí que surgiu um grupo informal, uma espécie de movimento “#lavar as mãos não basta”, que só queria ser uma equipa de jovens disposta a ajudar na solidão dos mais velhos.

Dita, Milocas e Aurora

O poder de um telefonema

A ideia era simples: sinalizar pessoas mais velhas e/ou doentes, ou simplesmente pessoas que estão sozinhas em casa (...) e, depois, ligar-lhes com alguma frequência.

A solidão é muito dura e os sacrifícios do isolamento não são fáceis, e são por demais conhecidos; há pessoas que há mais de quatro meses não recebem um abraço, um carinho ou uma conversa corriqueira, e deixaram coisas que faziam parte do dia-a-dia, como tomar um café, visitar a vizinha, ir à Missa, as manhãs no mercado... Quebrar estas rotinas é violento, e queríamos compensar.

A ideia era simples: sinalizar pessoas mais velhas e/ou doentes, ou simplesmente pessoas que estão sozinhas em casa, ou até que estão acompanhadas mas sentem falta da normalidade do dia a dia. E, depois, ligar-lhes com alguma frequência.

Da ideia à realidade passando por um “manual de instruções”

O projeto cresceu até ter 45 pessoas idosas acompanhadas e 41 voluntários de vários pontos do país: desde Lisboa, Porto, Coimbra, Braga e Viseu.

Falei com algumas amigas que começaram a recolher nomes de pessoas para o projeto e, com a ajuda da Milocas, uma estudante de medicina que estava no Algarve, motivámos um bom grupo de pessoas voluntárias, universitárias, profissionais ou simplesmente pessoas com boa vontade, que são os nossos “voluntários de sofá” (se é possível fazer voluntariado no sofá!). Cada voluntário se comprometeu com uma pessoa idosa, a quem iria telefonar durante a quarentena.

A iniciativa manteve-se para além do estado de emergência, e neste momento ainda estamos a receber mais nomes de pessoas que agradecem uma voz amiga com quem conversar.

O projeto cresceu até ter 45 pessoas idosas acompanhadas e 41 voluntários de vários pontos do país: desde Lisboa, Porto, Coimbra, Braga e Viseu.

A primeira intenção era juntar a voluntária com a pessoa idosa na mesma localidade, para que as voluntárias pudessem ajudar também indo a casa ou ao lar e levar compras, farmácia, etc…

Tínhamos de ser rápidas a actuar e, como não conhecíamos nem os voluntários nem os beneficiários, fizemos um “manual de instruções”. Este manual contém não só dicas para quebrar o gelo, como o desconstruir a solidão, alguns procedimentos, boas práticas, cuidados a ter, conversas a evitar, pois queremos ser portadores de esperança e boas notícias!

Amigos com e sem facebook

Ligar a uma pessoa desconhecida nem sempre é fácil, mas com este falar de tudo e mais alguma coisa, compreender a necessidade do outro, contar anedotas, fazer companhia… surgiram grandes amizades!

recebemos testemunhos como o da Ana, do Porto: “Hoje uma das minhas “avozinhas”, transformou o meu dia! Que bom que foi!

Ensinar uma pessoa de outra geração a lidar com as tecnologias, por exemplo, pode fazer a diferença: “A minha “avozinha” está muito "chateada" por não saber trabalhar com o Zoom, hoje vamos tentar ter uma aula sobre o Zoom” disse-nos a Piedade, voluntária de Braga.

A Marta contou que “A chamada foi deliciosa! A minha “avozinha” tem 97 anos e diz que gosta muito de conversar”.

E da Márcia chegou-nos esta história: “Eu gostei muito da querida “avozinha”! Uma senhora super “para a frente”, sabe mexer bem com a tecnologia, super culta mas super casual e uma artista! Já falámos duas vezes e de cada vez para cima de uma hora! Acho que vai sair daqui uma grande amiga. Muito alegre!”

A Mariana, de Lisboa, que acompanhava uma já acamada com 95 anos, sem televisão, confessou que nos primeiros telefonemas foi difícil construir a confiança, mas depois já tinham mais de 1 hora de conversa e vontade de voltar a falar.

Já há troca de fotografias, histórias e as amizades vão crescendo com simplicidade.

Muitas das voluntárias estão à espera do dia ideal para conhecer pessoalmente as suas interlocutoras. E, quando achamos que são as voluntárias a fazer o papel principal, recebemos testemunhos como o da Ana, do Porto: “Hoje uma das minhas “avozinhas”, transformou o meu dia! Que bom que foi!

Mas nem todos os beneficiários são idosos, são simplesmente pessoas doentes que têm de viver um isolamento mais intenso. A Teresa, de Viseu, conta: “É mesmo muito simpática e bem disposta! Leva a vida com leveza e já enfrenta um cancro há 20 anos. Mas não tem aspecto nenhum de doente... Até já nos adicionamos nas redes sociais.”

A Aurora, universitária de Braga, conta mais longamente a sua experiência

O projeto acaba depois da quarentena?

É um projeto simples, para ajudar numa situação pontual, não pretende nem pode ir mais além, é o nosso mini contributo para melhorar o mundo.

Não! A intenção é que seja possível o encontro voluntário-beneficiário para o abraço verdadeiro.

É um projeto simples, para ajudar numa situação pontual, não pretende nem pode ir mais além, é o nosso mini contributo para melhorar o mundo, mas sonhar mudar pelo menos um pouco as nossas vidas e fazer olhar para o outro, para o desconhecido, compreender a solidão, perceber que o tempo é um dom e é importante e necessário dedicar tempo aos outros.

Aprendemos muito: que existem pessoas que parece não terem nada de especial e têm histórias fantásticas. Aprendemos sobre a amizade, e que mesmo a amizade em situações mais estranhas, pelo telefone, com diferenças de idades, é um tesouro, o melhor remédio para ultrapassar os maus momentos.

Existem muitas formas de encarar o Covid-19, mas talvez a melhor seja aceitar que isto pode ser uma grande lição, que nos faz centrar no essencial, no que realmente importa, pois é aí que temos de gastar as nossas forças e as nossas energias.

A normalidade é algo extraordinário. E quando a normalidade nos falhou, aí compreendemos quão importantes são as pequenas coisas da vida, uma ida ao café, um abraço, uma boa conversa e um amigo.