O Opus Dei visto ao pormenor

P.: Como é que é conviver-se com um santo, na vida do dia-a-dia? Que reflexos tem na vida das pessoas? Como é que os próximos do Beato Josemaría se apercebiam da sua santidade?

Na vida do Beato Josemaría a sua união com Deus, cheia de naturalidade, advertia-se em mil pormenores. Manifestava-se, por exemplo, na devoção com que dobrava o joelho diante do Senhor presente no sacrário. E também se notava no seu sorriso, no seu trabalho feito com ordem, na sua constante preocupação pelos outros, no seu olhar amável, também quando estava cansado.

Conviver com um santo é um privilégio, uma escola e também um contínuo motivo de contentamento, porque, com o seu esforço generoso por exercitar todas as virtudes cristãs, cria em seu redor um ambiente de alegria, de oração, de serenidade.

P.: Que características o distinguiam das outras pessoas? Qual o seu legado à sociedade contemporânea?

"Os santos têm sempre 'alguma coisa' de genuíno - humana e sobrenaturalmente - que é precisamente o que atrai. Passam a vida não a adaptar-se ao mundo que os rodeia, mas tentando aproximar o mundo de Deus, e para isso procuram identificar-se com Jesus Cristo. Nesse sentido pode dizer-se que são profundamente livres, inclassificáveis. Os santos foram também muitas vezes "sinal de contradição" para aqueles que não aceitam verdades radicais.

O Beato Josemaría foi também assim. Era normalíssimo, cordial, simpático. Fugia de tudo quanto fosse extravagante. Tinha, além disso, um profundo amor à liberdade, que nascia do seu amor apaixonado a Deus Nosso Senhor: essa era uma das características que o distinguiam. Estava convencido de que quem ama é verdadeiramente livre.

Considero que a sua principal herança são os milhares de pessoas que se aproximaram de Deus graças ao seu trabalho sacerdotal, que descobriram que se pode encontrar o Senhor no trabalho e no cumprimento dos deveres quotidianos do cristão. Gosto de pensar que o legado do Beato Josemaría é como uma semente lançada para dar fruto em todos os tempos e em todos os lugares, dentro dessa grande sementeira que é a vida da Igreja".

P.: O processo de beatificação do Beato Josemaría, pela sua celeridade, abriu um novo capítulo na história da Congregação para as Causas dos Santos. Foi o poder e a influência que são atribuídos ao Opus Dei, dentro da Igreja e junto do Papa, que determinaram o ritmo do processo, ou foi, a exemplo de S. António de Lisboa, a veneração e a fama popular que impulsionaram a declaração das suas virtudes e a sua beatificação?

"Gostaria de esclarecer que, na história da Igreja - e é lógico que seja assim -, há poucos casos em que a santidade dos servos de Deus foi declarada poucos anos depois da sua morte. Durante o Concílio Vaticano II, os Padres conciliares afirmaram que era necessário apresentar, aos cristãos, figuras contemporâneas como modelos de união com Deus. Encheu-me de alegria, por exemplo, ver proclamadas as virtudes heróicas da Madre Maravillas do Padre Allegra num breve intervalo de tempo após terem sido chamados pelo Senhor. Poderia mencionar outros nomes. Ao citar estes e outros exemplos, não tenho qualquer dúvida de que estes processos foram um grande dom de Deus para a Igreja.

Quanto ao processo de beatificação do fundador do Opus Dei, não pode ser explicado por um alegado poder do Opus Dei, que não existe; nem exclusivamente pela devoção popular, que claramente existe, mas que a Igreja, tanto neste como em todos os casos, avalia com cautela. Como é sabido, a Santa Sé, antes de declarar alguém como beato ou santo, comprova a fundo, antes de mais, que essa pessoa tem fama de santidade, examina, além disso, com rigor, se viveu heroicamente as virtudes cristãs, e, finalmente, espera o apoio de Deus a essa declaração, através de um milagre que confirme a santidade de vida do interessado.

Volto, enfim, a dizer que teve influência o sentir do Concílio Vaticano II, que foi concretizado primeiro pelo Papa Paulo VI e, desde 1983, por João Paulo II, e que simplificou as normas de procedimento das causas dos santos. A nova legislação permitiu que todas as causas se possam instruir muito mais brevemente do que antes".

P.: Tal como sucede com João Paulo II, o Beato Josemaría tinha uma profunda sensibilidade mariana e uma devoção especial a Fátima. Fala-se de um encontro com a Irmã Lúcia, e que terá sido o primeiro beato a vir a Fátima como peregrino...

"O Beato Josemaría conheceu a Irmã Lúcia em 1945, quando ela vivia em Tuy. O fundador do Opus Dei tinha ido a essa cidade para visitar o Bispo, seu amigo, e este apresentou-o à Irmã Lúcia, que, por sua vez, o alentou a cruzar a fronteira e ir em peregrinação a Fátima. Foi ela, até, que interveio pessoalmente para solucionar o problema dos vistos de entrada no país. Os planos do Beato Josemaría eram diferentes, mas acedeu a essa proposta da Irmã Lúcia: em suma, pode dizer-se que ela foi a 'responsável directa' da primeira viagem do Beato Josemaría a Portugal.

Mons. Escrivá ficou muito comovido, já naquela primeira visita a este lugar privilegiado, com a devoção dos portugueses a Nossa Senhora. Voltou a Portugal noutras ocasiões, e aproveitou sempre para ir rezar à Capelinha: com certa frequência ficava muito tempo na esplanada do Santuário, ao lado da Capelinha; ia até lá para se refugiar junto da Nossa Mãe. Nisto, o Beato Josemaría queria ser muito português.

Como sabe, com os pastorinhos é a primeira vez que crianças são beatificadas na categoria de confessores. E da idade da Jacinta e do Francisco é até novidade, por serem as primeiras crianças não mártires a serem beatificadas. Isso levantou, ao longo do processo, dúvidas sobre se seria legítimo defender a ideia de que, naquelas idades, as crianças já poderiam praticar as virtudes cristãs em grau heróico".

P.: Qual é a sua leitura?

"Foi muito grande a minha alegria pela beatificação dos pastorinhos. Em determinados ambientes - não sei porquê - desvaloriza-se a importância das crianças e o grau de maturidade humana e de união com Deus que podem alcançar. Se trouxermos à memória o Evangelho, recordaremos muitas lições de Nosso Senhor sobre as crianças: são predilectas de Deus, exemplo de simplicidade. Além disso, nós, os adultos, temos a grave responsabilidade de não lhes causar escândalo; devemos, pelo contrário, ajudá-las a percorrer o caminho do bem.

Nessa tarefa de ensinar as crianças a cultivar as virtudes - que, repito, se podem viver na infância: quantos casos conheci! -, é muito importante oferecer-lhes modelos próximos, parecidos com elas pelas suas circunstâncias e pela sua mentalidade, como Francisco e Jacinta.

Mas também para os adultos podem ser modelo: meditemos o convite do Evangelho, saibamos tornarnos como crianças. Este convite encerra um processo de amadurecimento que nos leva a recuperar a simplicidade, a inocência; e a rejeitar o mal, o pecado. Só com um coração assim, purificado, se consegue falar com Deus e escutá-lo, como nessas conversas encantadoras dos pastorinhos com a Nossa Mãe Santa Maria".

P.: O Prefeito da Congregação da Causa dos Santos, defendeu a ideia de que cada beatificação tem a sua originalidade. Comparando, qual é a originalidade do Beato Josemaría e qual a dos pastorinhos?

"Preferia, antes, destacar o que têm em comum: o desejo incondicional de cumprir a vontade de Deus. Aos pastorinhos foi-lhes manifestada de modo extraordinário, mediante as aparições da Virgem. O Beato Josemaría compreendeu a vontade de Deus através de luzes inesperadas, ou de iluminações nos seus tempos de oração, depois de muito pedir. Deus indica a cada um o seu caminho. Mas é impressionante verificar como a santidade consiste sempre em pôr a própria vida, toda inteira, ao serviço da chamada de Deus, da vocação recebida. Além disso, ao fim e ao cabo, as almas de todos os santos têm a transparência da alma de uma criança. Recordo que, na véspera das suas bodas de ouro sacerdotais, o Beato Josemaría dizia que se sentia diante de Deus como um menino que balbucia".

P.: Que repercussão pode ter a beatificação dos pastorinhos, e a própria realidade Fátima, na Igreja de hoje? Que reflexos poderá ter a nível da pastoral da família? E da catequese?

"Considero esta beatificação como um passo muito importante, por muitos motivos. Penso que encerra um sentido muito profundo, porque se encontra relacionada com uma intervenção de Deus na história dos homens, precisamente através dos pequenos e dos humildes.

Além disso, a santidade das crianças põe muitas vezes de manifesto o ambiente cristão do lar em que nasceram. Vejo também esta beatificação, portanto, como estímulo valiosíssimo para tantos pais e mães de família que se esforçam por transmitir aos filhos, com naturalidade, o melhor que têm nas suas almas, a fé, através de práticas de piedade vividas em família. Por isso, a declaração do Papa de que o Francisco e a Jacinta se podem contar entre os beatos do céu serve - entre outras muitas coisas - como recordatório da importância da família para a Igreja. As famílias preparam as almas das crianças para receber a graça de Deus durante toda a vida.

É como se escutasse o eco das palavras do Beato Josemaría, que repetiu com frequência: abençoo com as minhas duas mãos de sacerdote o amor humano, santo, dos cônjuges.

Durante algum tempo, especulou-se sobre a oportunidade da Igreja declarar um novo dogma mariano: o de Nossa Senhora corredentora. Havia, e há, teólogos que defendem a importância deste novo dogma, e outros, pelo contrário, defendem não ser necessária nenhuma declaração formal por parte da Igreja".

P.: Que posição toma?

"É uma questão que tem a ver com o aprofundamento da fé. Entendido correctamente, o conceito de "Corredentora" é, sem dúvida, aplicável à Santíssima Virgem, mas declará-lo dogma, ou não, compete somente ao Papa ou a um Concílio ecuménico".

P.: Sobre o pontificado de João Paulo II, quais são, em traços gerais, as suas linhas fundamentais e que marcas vai deixar no interior da Igreja? E no diálogo ecuménico? E na relação da Igreja com a(s) sociedade(s)?

"Desde o primeiro instante, o programa do pontificado de João Paulo II girou em torno do ideal de abrir as portas do mundo a Cristo: 'Não tenhais medo!', gritou o Papa logo nos primeiros dias do seu ministério. E nestes anos, por suas mãos, a Igreja aprofundou, sem complexos, nas promissoras perspectivas abertas pelo Concílio Vaticano II, para que Cristo esteja efectivamente presente em todas as realidades da vida dos homens.

Este é um empreendimento de grande alcance que deve comprometer todos os cristãos, e nenhum daqueles que nos sabemos filhos de Deus se pode considerar à margem. Neste pontificado, graças a Deus, os católicos sentiram-se, e sentem-se, convocados pelo chamamento constante do Papa a uma nova evangelização, a essa abertura a Cristo dos corações humanos e das estruturas sociais. Temos de rezar para que, neste empenho comum por iluminar o mundo com a luz de Cristo, percorramos o caminho em direcção à plena unidade de todos os cristãos. Nos últimos anos houve sinais muito alentadores, que intensificam a esperança.

Ficou conhecido o documento de reflexão 'Nós somos Igreja', com largos milhares de assinaturas, sobretudo de católicos de países do norte da Europa. Um dos temas centrais é o do papel da mulher na Igreja".

P.: Que leitura faz deste papel e que perspectivas para o futuro?

"É compreensível que a algumas pessoas seja difícil entender que o sacerdócio católico esteja reservado somente aos homens; mas, francamente, penso que a questão do papel da mulher na vida da Igreja é muito mais rica e mais ampla. Parece-me muito empobrecedor reduzir o discurso sobre a função da mulher na Igreja ao tema do sacerdócio ministerial, que, além disso, já está definitivamente esclarecido pelo Magistério da Igreja.

A contribuição da mulher para a vida eclesial, na minha opinião, tem um enorme interesse. Será um dos aspectos que, no futuro, veremos desenvolver-se com maior força, não através das reivindicações hipercríticas, mas sobretudo mediante a experiência de vida das mulheres cristãs.

A Igreja necessita urgentemente de mulheres que vivam coerentemente a sua fé em todas as circunstâncias, que promovam iniciativas originais de evangelização, que imprimam o seu ponto de vista a muitas questões, que sejam valentes testemunhas de Jesus Cristo. Não tenho dúvidas de que, nos próximos anos, estaremos em condições de testemunhar acerca de uma verdadeira mobilização pacífica de mulheres cristãs, de um esforço de santidade e de apostolado, de estudo e de preparação doutrinal, que dará como fruto um enriquecimento da Igreja no seu conjunto".

Revista Christus (Portugal)