O inconfundível no estilo Escrivá

Maria Teresa Dias Furtado, Profª. Faculdade de Letras num artigo do “Diário de Noticias” (6.10.2002), evoca um dos Autores de literatura espiritual mais lidos do século XX. A pergunta tão conhecida de Hölderlin: "Para quê poetas em tempo de indigência?" encontra em Josemaría Escrivá muitas respostas, embora todas se unam num mesmo sentido: "escondido nas situações mais comuns, há algo santo, divino, que vos cabe descobrir".

Essa pupila dilatada pelo amor descobre não apenas o valor poético de cada coisa, por mais comum que seja, mas, simultaneamente, o seu valor divino, a sua capacidade santificável e santificadora, a sua economia humana e divina em unidade, em uníssono, em plenitude: Um segredo. Um segredo em voz alta: estas crises mundiais são crises de santos. Deus quer um punhado de homens «seus» em cada actividade humana. Depois ... «Pax Christi in regno Christi» – a paz de Cristo no reino de Cristo (Caminho, 301). Considerações como estas constituem uma autêntica revolução: não de imediato externa, nem aparatosa, nem de proa – uma transformação interior progressiva e profunda, em que se vai descobrindo e assimilando o valor divino do humano, de tudo o que é humano e que rodeia o homem: os outros, a família, o trabalho, a sociedade, o descanso, o desporto, a natureza.

Mas esta é uma transformação não à margem de Deus, mas, pelo contrário, contando com Deus e nele estribando. Não importa à nossa indigência apenas o encontro consigo próprio, o refazer forças no silêncio para depois continuar melhor a luta por tornar tudo melhor, a começar por cada um de nós. Importa, na sequência dos escritos do Beato Josemaría, encontrar no silêncio, o porteiro da vida interior (Caminho, 281), o diálogo cara a cara com Deus, em que se fala, sem palavras, do que a cada um importa – a Ele e a nós, ao Pai e aos filhos – para que tudo se encaminhe para o nobilíssimo fim para que foi criado, ultrapassando todas as utopias, porque tem o seu lugar, o lugar em que se encontra cada cidadão, não importa em que escala social.

Josemaría Escrivá teve de encontrar os nomes e os conceitos, o estilo e os modos para uma expressa vontade divina que lhe foi dado ver a 2 de Outubro de 1928: o chamamento universal à santidade, verdade que veio a ser proclamada pelo Concílio Vaticano II, segundo o espírito próprio da primeira Prelatura Pessoal da Igreja Católica, o Opus Dei.

Também, como Sophia, Ia e vinha/E a cada coisa perguntava/Que nome tinha. («Coral») E todos os nomes que encontrou surgiram precisos, esculpidos, para que, em letra firme (Hölderlin), contivessem tudo o que era preciso transmitir aos dias, aos meses, aos anos, aos séculos e aos milénios, a cada alma, a todas as almas.

Assim cunhou expressões como alma sacerdotal e mentalidade laical, piedade de meninos e doutrina de teólogos, etc. Um dos seus mais belos e claríssimos textos é o que se intitula «Amar o mundo apaixonadamente».

Nele, usando uma linguagem interpelativa, deixa claro o rumo que conduz à santidade, num envolvimento inteiro em todas as realidades terrenas: É no meio das coisas mais materiais da Terra que devemos santificar-nos, servindo a Deus e a todos os homens. (...) Não pode haver uma vida dupla: se queremos ser cristãos não podemos ser esquizofrénicos. Há uma única vida, feita de carne e espírito, e essa é que tem de ser _ na alma e no corpo _ santa e cheia de Deus, deste Deus invisível, que nós encontramos nas coisas mais visíveis e materiais. Este último aspecto parece ecoar também no final do poema «Caminho da manhã», de Sophia, quando se refere ao final do percurso, numa «igreja alta e quadrada»: Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.

Serão também de destacar, no mesmo texto de Josemaría Escrivá, dois conceitos importantes e cheios de actualidade: o «materialismo cristão» e a «mentalidade laical»:

O sentido cristão autêntico – que professa a ressurreição de toda a carne – sempre combateu, como é lógico, a desencarnação, sem receio de ser julgado materialista. É lícito, portanto, falar de um materialismo cristão, que se opõe audazmente ao materialismos fechados ao espírito. (...)

Eu vos asseguro, meus filhos, que, quando um cristão realiza com amor a mais intranscendente das acções diárias, ela transborda de transcendência de Deus.

Por isso vos tenho repetido, com insistente martelar, que a vocação cristã consiste em fazer poesia heróica da prosa de cada dia. Na linha do horizonte, meus filhos, parecem unir- se o Céu e a Terra. Mas não: onde se unem deveras é nos vossos corações, quando viveis santamente a vida de cada dia...

(...) que exerçais diariamente – não só em situações de emergência – os vossos direitos; e que cumprais nobremente as vossas obrigações como cidadãos – na vida política, na vida económica, na vida universitária, na vida profissional – assumindo com coragem todas as consequências das vossas decisões, aceitando o peso da independência que vos corresponde. E essa cristã mentalidade laical permitir-vos-á afastar-vos de toda a intolerância, de todo o fanatismo. Di-lo-ei de modo positivo: far-vos-á conviver em paz com todos os vossos concidadãos e fomentar também a convivência nos diversos sectores da vida social.

Os escritos de Josemaría Escrivá são de fácil leitura, ainda que de elevada elaboração. Deixam transparecer muitas horas de leitura de autores clássicos, assim como muitas vivências. Realmente escrevia sobre aquilo que vivia, por isso a leitura nos interpela, nos consola, nos incomoda no sentido rilkiano: Tens de mudar a tua vida.

Sobre a vida do fundador do Opus Dei, que está no âmago da sua literatura, também se poderia dizer, como Rilke em relação a Hölderlin: Ninguém/a entregou de modo mais sublime, a restituiu ao Todo/mais inteira, menos pobre. («A Hölderlin»)

Diário de Noticias//(6.10.2002)