O “Domingo da Palavra de Deus” e a sua dimensão litúrgica

No terceiro domingo do tempo comum, a Igreja celebra o “Domingo da Palavra de Deus”. O Papa Francisco instituiu-o para que «cresça no povo de Deus uma religiosa e assídua familiaridade com a Sagrada Escritura». Este artigo trata da relação entre Sagrada Escritura e Liturgia.

(Adaptação do artigo original, publicado em: Rogate ergo 83/1, 2020. 11-15).

Um jovem chamado Antão sabe que Deus quer algo dele, mas não consegue imaginar qual será o seu caminho. Antão lê as Escrituras, medita, mas só chega a entender o seu chamamento quando, ao entrar na igreja, ouve a proclamação do Evangelho: «Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, entrega-o aos pobres e terás um tesouro no céu. depois vem e segue-me» (Mt 19, 21). Como se essas palavras tivessem sido ditas somente para ele, Antão saiu imediatamente, deu aos habitantes da cidade os haveres que herdara da sua família, vendeu todos os bens móveis e distribuiu aos pobres a grande quantia de dinheiro que possuía. Pouco depois, noutra assembleia litúrgica, ele ouviu as palavras do Senhor: «Não vos preocupeis com o dia de amanhã» (Mt 6, 34). E, incapaz de resistir mais, saiu novamente e doou o que ainda possuía[1].

A Palavra de Deus, que «penetra até dividir alma e espírito» (Heb 4, 12), é dinâmica, ativa, coloca-nos em movimento. Ao longo dos séculos, a vida dos santos mostra que há um âmbito privilegiado em que a Palavra de Deus exerce o seu poder. Este âmbito é a liturgia. De facto, «considerando a Igreja como ‘casa da Palavra’ deve-se antes de tudo dar atenção à liturgia sagrada. Esta constitui, efetivamente, o âmbito privilegiado onde Deus nos fala no momento presente da nossa vida: fala hoje ao seu povo, que escuta e responde»[2].

Porque é um âmbito privilegiado?

O Senhor pode tocar com a Sua Palavra as profundezas da nossa alma em qualquer momento ou circunstância. No entanto, quem observar a história da salvação descobrirá situações e contextos particulares que formam um tipo de gramática com a qual Deus articula o seu diálogo connosco. Se pensarmos no Sinai, veremos uma assembleia reunida para ouvir a Palavra e selar a Aliança. Depois de ouvir, através de Moisés, as palavras do Senhor, todo o povo respondeu ao mesmo tempo: «Faremos tudo quanto o Senhor disse» (Ex 19, 8; Ex 24, 3-8). Um esquema ritual semelhante é encontrado no Segundo Livro dos Reis (2Rs 23, 1-3) e no Livro de Neemias (Ne 10, 30).

O SENHOR PODE TOCAR COM A SUA PALAVRA AS PROFUNDEZAS DA NOSSA ALMA EM QUALQUER MOMENTO OU CIRCUNSTÂNCIA

Quando a Igreja, o novo Israel, se revelar ao mundo, ensinará aos homens a mesma gramática que eles aprenderam com os seus pais. Por isso, no dia de Pentecostes, «aqueles que receberam a palavra de Pedro foram batizados» (At 2, 41). A sequência “proclamação da Palavra - obediência à Palavra” define o ADN das ações litúrgicas. Como o Concílio Vaticano II recorda, «a palavra e o rito estão intimamente ligados»[3]. Além disso, no caso paradigmático da Eucaristia, «a liturgia da palavra e a liturgia da Eucaristia estão tão intimamente unidas que formam um único ato de adoração»[4].

A iniciação cristã tem um dinamismo que revitaliza a Igreja por dentro. Os catecúmenos que queriam se tornar cristãos recebiam primeiro o anúncio da fé, depois tinham que interiorizar a Palavra e, finalmente, eram enviados para uma missão evangelizadora de escala universal. Nesta sequência, a proclamação litúrgica da Palavra é colocada no segundo momento, o da interiorização. Compartilha com o primeiro a dimensão de anúncio, pois, na liturgia, a própria Igreja escuta as palavras de Cristo, verdadeiro exegeta do Pai. Compartilha com o terceiro momento a dimensão de missão, porque a Palavra não é interiorizada individualmente nem apenas para a salvação pessoal, mas revela os seus segredos quando é recebida em comunhão eclesial[5] e é capaz de abrir nos nossos corações o caminho da partilha e da solidariedade[6].

Palavra viva na liturgia, proclamação da Palavra Trinitária

A assembleia litúrgica é o contexto por excelência em que as Escrituras se tornam a Palavra viva. O cristianismo não é uma religião do livro, mas a religião da Palavra de Deus, de uma Palavra que «não é uma palavra escrita e muda, mas uma Palavra encarnada e viva»[7]. Esse facto explica porque a Palavra de Deus não está principalmente em papiros ou numa edição impressa. Como o Catecismo da Igreja Católica destaca, «a Sagrada Escritura está escrita no coração da Igreja, mais do que em instrumentos materiais»[8].

Ao mesmo tempo, a Igreja não recebeu a Palavra para mantê-la escondida em seu coração. Graças à mediação humana e eclesial, a Palavra ressoa na aula litúrgica como um evento que pode mudar os nossos corações. Na proclamação do Evangelho pelo bispo e depois na homilia litúrgica, temos a mediação de um corpo, de uma boca, de uma respiração regenerados no Batismo, assim como a mediação qualificada de quem recebeu a plenitude do sacramento da Ordem e que, portanto, pode ser garante, aqui e agora, da presença de Cristo que fala com a sua Esposa.

Nesse sentido, observamos a coerência com a lógica segundo a qual Deus revelou o seu plano de salvação. Ao longo da história, Deus «falou por meio dos homens e à maneira humana»[9]. Essa mesma lógica leva à encarnação do Verbo e ainda mais ao prolongar da sua presença entre os homens através da mediação de outros seres humanos. A adaptação de Deus à nossa linguagem, à nossa pequenez, essa misericórdia inclusiva que doa a Palavra da Vida através de criaturas limitadas e limitantes, é o evento que contemplamos sempre que o “Glória a Vós, Senhor” ressoa depois da proclamação do Evangelho. “Glória a Vós, Senhor”. Não dizemos: “Obrigado, diácono, obrigado, bispo, por nos ler um texto tão esclarecedor”. Aclamar “Glória a Vós, Senhor” significa, que cremos, confessamos e anunciamos que Cristo está presente e que, pelos lábios da Igreja, Ele nos revela o verdadeiro rosto de seu Pai.

Por outro lado, a aclamação “Graças a Deus”, a seguir às leituras pode lembrar-nos que o nosso interlocutor não é apenas Jesus, mas também Deus Pai, pois através do anúncio litúrgico «o Pai que está nos céus vem carinhosamente ao encontro de Seus filhos e com eles fala»[10]. Aprender a ouvir a proclamação da “Palavra do Senhor”, olhando para o Pai, coloca-nos em condições de experimentar que Ele não para de falar connosco sobre o seu amado Filho, porque, «através de todas as palavras da Sagrada Escritura. Deus não diz mais que uma só Palavra, o seu Verbo único, em quem totalmente Se diz»[11].

É O ESPÍRITO QUE TORNA PRESENTE A PALAVRA DE DEUS EM PALAVRAS HUMANAS

Para que esse diálogo ocorra, no entanto, é necessária a ação do Espírito Santo[12]. Esta ação dá continuidade à lógica da Revelação. Como no caso dos profetas, e mais ainda no caso da Encarnação, é o Espírito que torna presente a Palavra de Deus em palavras humanas. Ele “torna presente” a Palavra. Sendo o Espírito a memória viva da Igreja (cf. Jo 14, 26), ele é o único capaz de dar aos que anunciam a Palavra e aos que a ouvem a capacidade de se tornar ressonância viva do evento salvador. Nesse sentido, o convite “o Senhor esteja convosco” que precede o Evangelho, ou a rica variedade de orações com que os ministros da Palavra se prepararam para o seu ministério ao longo da história, constituem uma chamada a atualizar a presença do Espírito em cada um de nós, como fruto do nosso Batismo ou como fruto do Sacramento da Ordem. Sem a ação do Espírito, portanto, nem a mediação humana da Palavra de Deus na liturgia, nem o ato de fé que a acolhe, nem a sua inteligência espiritual durante a homilia seriam possíveis.

Dissemos que a Palavra de Deus faz uma viagem dentro de nós. Durante a liturgia, a Palavra ressoa no espaço de celebração, encontra os nossos corpos e através dos ouvidos passa aos nossos corações. Se o nosso coração se abrir ao Espírito e acolher a Palavra com fé, ela limpa, ilumina, ordena e começa a habitar em nós: passa ao nosso corpo, às nossas mãos, aos nossos olhos. Este é o processo que o domingo da Palavra quer que lembremos, porque, como no caso de Maria, a Palavra de Deus está desejando “tornar-se carne” em cada um de nós.


[1] cf. Atanásio, Vida e conduta de Sto. Antão, 2

[2] Verbum Domini, n. 52

[3] Sacrosanctum Concilium, n. 35

[4] Sacrosanctum Concilium, n. 56

[5] cf. Dei Verbum 12; Verbum Domini, n. 29-30

[6] cf. Aperuit illis, n. 13

[7] S. Bernardo de Claraval, Homilia super Missus est, 4, 11

[8] Catecismo da Igreja Católica, n. 113

[9] Dei Verbum, n. 12

[10] Dei Verbum, n. 21

[11] Catecismo da Igreja Católica, n. 102

[12] cf. Aperuit illis, n. 10.12

Juan Rego