O que é a liberdade? A pessoa é realmente livre?

«Deus quis ‘deixar nas mãos do homem as suas próprias decisões’» (Si 15,14.). Que significa que a pessoa é livre? Que é a liberdade?

Foto: Matt Collamer (Unsplash)

Sumário

1. Diferentes dimensões da liberdade
2. Liberdade e responsabilidade
3. Liberdade humana e salvação


1.Diferentes dimensões da liberdade: liberdade de coação e liberdade de escolha

A liberdade humana tem diversas dimensões. A liberdade de coação é aquela que tem a pessoa de poder realizar externamente o que decidiu fazer, sem imposição ou impedimentos de agentes externos; é assim que se fala de liberdade de expressão, de liberdade de reunião, etc. A liberdade de escolha ou liberdade psicológica significa a ausência de necessidade interna para escolher uma coisa ou outra; não se refere já à possibilidade de fazer, mas à de decidir autonomamente, sem se estar sujeito a um determinismo interior. Em sentido moral, a liberdade refere-se, sim, à capacidade de afirmar e amar o bem, que é o objeto da vontade livre, sem se sentir escravizado pelas paixões desordenadas e pelo pecado. Neste texto referir-nos-emos especificamente a esta última dimensão da liberdade.

O Catecismo define a liberdade como «o poder, radicado na razão e na vontade, de agir ou não agir, de fazer isto ou aquilo, praticando assim, por si mesmo, ações deliberadas. Pelo livre arbítrio, cada qual dispõe de si. A liberdade é, no homem, uma força de crescimento e de amadurecimento na verdade e na bondade. E atinge a sua perfeição quando está ordenada para Deus, nossa felicidade completa».

Catecismo da Igreja Católica, 1731

Meditar com S. Josemaria

«Porque me deste, Senhor, este privilégio com que sou capaz de seguir os teus passos, mas também de Te ofender? Acabamos, assim, por calibrar o reto uso da liberdade, se se inclina para o bem; e a sua errada orientação, quando, com essa faculdade, o homem se esquece, se afasta do Amor dos amores. A liberdade pessoal - que defendo e defenderei sempre com todas as minhas forças -leva-me a perguntar com uma segurança convicta e também consciente da minha própria fraqueza: que esperas de mim, Senhor, para o fazer voluntariamente?
O próprio Cristo nos responde: veritas liberabit vos; a verdade far-vos-á livres. Que verdade é esta, que inicia e consuma o caminho da liberdade em toda a nossa vida? Resumi-la-ei com a alegria e com a certeza que provêm da relação de Deus com as suas criaturas: saber que saímos das mãos de Deus, que somos objeto da predileção da Santíssima Trindade, que somos filhos de um Pai tão grande. Peço ao meu Senhor que nos decidamos a apercebermo-nos disso, a saboreá-lo dia após dia: assim atuaremos como pessoas livres. Não esqueçamos: quem não sabe que é filho de Deus desconhece a sua verdade mais íntima e carece, na sua atuação, do domínio e do senhorio próprios dos que amam Nosso Senhor, sobre todas as coisas» Amigos de Deus, 26

Estamos obrigados a defender a liberdade pessoal de todos, sabendo que Jesus Cristo foi quem nos conquistou essa liberdade. Se não o fizermos, com que direito reivindicaremos a nossa? Também devemos difundir a verdade, porque veritas liberabit vos, a verdade liberta-nos, enquanto a ignorância escraviza». Amigos de Deus, 171

«Gosto deste lema: "Cada caminhante siga o seu caminho" - aquele que Deus lhe marcou - com fidelidade, com amor, ainda que custe». Sulco, 231


2. Liberdade e responsabilidade

A liberdade implica a possibilidade de escolher entre o bem e o mal e, por conseguinte, de crescer na perfeição ou fraquejar e pecar. A liberdade é caraterística dos atos propriamente humanos. Converte-se em fonte de aprovação ou de censura, de mérito ou demérito.

Na medida em que a pessoa pratica mais o bem, vai-se tornando mais livre. Não há verdadeira liberdade se não está ao serviço do bem e da justiça. A escolha da desobediência e do mal é um abuso da liberdade e leva à escravidão do pecado: «Mas graças a Deus, vós, que fostes escravos do pecado, obedecestes de coração ao modelo de doutrina ao qual fostes confiados, e libertados do pecado, vos fizestes escravos da justiça». (Rm 6,17-18)

A liberdade torna o homem responsável pelos seus atos na medida em que estes são voluntários. O progresso na virtude, o conhecimento do bem e a ascese ampliam o domínio da vontade sobre os próprios atos.

A imputabilidade e a responsabilidade de uma ação podem ficar diminuídas e até suprimidas quando há ignorância, inadvertência, violência, temor, hábitos, afetos desordenados e outros fatores psíquicos ou sociais.

Qualquer ato voluntário é atribuível ao seu autor. Uma ação pode ser indiretamente voluntária quando é consequência de uma negligência em relação ao que se devia conhecer ou fazer, por exemplo, um acidente provocado pela ignorância do código da estrada.

Um efeito pode ser tolerado sem ser desejado por aquele que atua, por exemplo, o esgotamento de uma mãe junto à cabeceira do filho doente. O efeito mau não é imputável se não foi voluntário nem como fim nem como meio da ação, assim como a morte que aconteceu ao tentar auxiliar uma pessoa em perigo. Para que o efeito mau seja imputável, é necessário que seja previsível e que aquele que atua tenha possibilidade de o evitar, por exemplo, no caso de um homicídio cometido por um condutor em estado de embriaguez.

A liberdade exercita-se nas relações entre os seres humanos. Toda a pessoa humana, criada à imagem de Deus, tem o direito natural de ser reconhecida como ser livre e responsável. Todos os homens devem prestar a qualquer um o respeito a que tem direito. O direito ao exercício da liberdade é uma exigência inseparável da dignidade da pessoa humana, especialmente em matérias morais e religiosas e concretiza-se em que não se pode obrigar ninguém a atuar contra a sua própria consciência, nem se pode impedir ninguém que atue em privado ou em público, só ou associado com outros, dentro limites devidos. O direito à liberdade religiosa está realmente fundado na própria dignidade da pessoa humana. (Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1732-1738; Declaração Dignitatis Humanae, n.2

Meditar com S. Josemaria

«Que triste coisa é ter mentalidade cesarista, e não compreender a liberdade dos outros cidadãos nas coisas que Deus deixou ao juízo dos homens!». Sulco, 313

«Defendo com todas as minhas forças a liberdade das consciências, que significa que não é lícito a ninguém impedir que a criatura tribute culto a Deus. Têm de se respeitar os legítimos anseios de verdade: o homem tem obrigação grave de procurar Nosso Senhor, de O conhecer e de O adorar, mas a ninguém na terra é lícito impor ao próximo a prática de uma fé que este não tem, tal como ninguém pode arrogar-se o direito de prejudicar quem a recebeu de Deus» Amigos de Deus, 32

.«Necessitas de formação, porque tens de ter um profundo sentido de responsabilidade, que promova e anime a atuação dos católicos na vida pública, com o respeito devido à liberdade de cada um, e recordando a todos que têm de ser coerentes com a sua fé». Forja, n. 712.

Deus fez o homem desde o princípio e deixou-o nas mãos do seu livre arbítrio (Ecli 15, 14). Isto não sucederia se não tivesse capacidade de fazer uma escolha livre. Somos responsáveis perante Deus por todas as ações que realizamos livremente. Não há anonimatos; o homem encontra-se perante o seu Senhor e está na sua vontade decidir-se a viver como amigo ou como inimigo. Assim começa o caminho da luta interior, que é empresa para toda a vida, porque enquanto dura a nossa passagem pela terra ninguém alcança a plenitude da sua liberdade.
Além disso, a nossa fé cristã leva-nos a garantir a todos um clima de liberdade, começando por afastar qualquer tipo de enganosas coações na apresentação da fé. Amigos de Deus, 36


3. Liberdade humana e salvação

A Sagrada Escritura considera a liberdade humana segundo a perspetiva da história da salvação. Por causa da primeira queda, a liberdade que o homem tinha recebido de Deus ficou submetida à escravidão do pecado, embora não se tenha corrompido por completo.

Pela sua Cruz gloriosa, Cristo obteve a salvação para todos os homens. Resgatou-os do pecado que os tinha submetidos à escravidão. Por isso, podemos gozar da “liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8, 21)

A graça de Cristo, isto é, a sua própria vida em nós, ajuda-nos a viver plenamente livres, segundo o sentido da verdade e do bem que Deus pôs no coração do homem.

«Deus eterno e misericordioso, afastai de nós toda a adversidade, para que, sem obstáculos do corpo ou do espírito, possamos livremente cumprir a vossa vontade» (XXXII do Tempo Comum, Coleta: Missal Romano)

Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1739-1742

Meditar com S. Josemaria

«Repito e repetirei sem cessar que o Senhor nos deu gratuitamente uma grande dádiva sobrenatural, a graça divina, e outra maravilhosa dádiva humana, a liberdade pessoal, que exige de nós - para que não se corrompa, convertendo-se em libertinagem - integridade, empenho sério por desenvolver a nossa conduta dentro da lei divina, porque onde está o Espírito de Deus, aí há liberdade.
O Reino de Cristo é de liberdade: nele não existem outros servos além daqueles que livremente se deixaram prender por Amor a Deus. Bendita escravidão de amor, que nos faz livres! Sem liberdade, não podemos corresponder à graça; sem liberdade, não podemos entregar-nos livremente ao Senhor pela razão mais sobrenatural: porque nos apetece». Cristo que passa, 184

«Ante a pressão e o impacto de um mundo materializado, hedonista, sem fé... como se pode exigir e justificar a liberdade de não pensar como "eles", de não actuar como "eles"?
Um filho de Deus não tem necessidade de pedir essa liberdade, porque Cristo já a conquistou para nós de uma vez por todas; mas deve defendê-la e demonstrá-la em qualquer ambiente. Só assim "eles" entenderão que a nossa liberdade não está acorrentada ao ambiente». Sulco, 423

«Ato de identificação com a vontade de Deus:
- Tu o queres, Senhor?... Eu também o quero!» (Caminho, 762)

«Não nos deixemos enganar pelos que se conformam com uma triste vozearia: liberdade! liberdade! Muitas vezes, nesse mesmo clamor, esconde-se uma trágica servidão: porque a escolha que prefere o erro não liberta; o único que liberta é Cristo, pois só Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida». Amigos de Deus, 26

Quem não escolhe - com plena liberdade! - uma norma reta de conduta, ver-se-á manipulado por outros cedo ou tarde, viverá na indolência - como um parasita - sujeito ao que os outros determinarem. Prestar-se-á a ser cirandado por qualquer vento e outros resolverão sempre por ele. São nuvens sem água que os ventos levam de um lado para o outro, árvores outonais, sem fruto; duas vezes mortas, sem raízes, ainda que se encubram, numa contínua tagarelice, com paliativos que tentam disfarçar a sua falta de carácter, de valentia e de honradez.
"Mas a mim ninguém me coage!", repetem obstinadamente. Ninguém? Todos coagem essa liberdade ilusória, que não se arrisca a aceitar com responsabilidade as consequências de atuações livres e pessoais. Onde não há amor de Deus, produz-se um vazio do exercício individual e responsável da liberdade: apesar das aparências, tudo neles é coação. O indeciso, o irresoluto é como matéria plástica à mercê das circunstâncias; qualquer pessoa o molda de acordo com o seu capricho e moldam-no também, em primeiro lugar, as paixões e as piores tendências da natureza ferida pelo pecado». Amigos de Deus, 29

«Para perseverar no seguimento dos passos de Jesus, é preciso uma liberdade contínua, um querer contínuo, um exercício contínuo da própria liberdade». Forja, 819