“Ler e viver o Concílio é amar a Igreja inteira”

D. Javier Echevarría fala do Concílio Vaticano II e do Ano da Fé numa entrevista publicada por “Desde la Austral”, revista da Universidade Austral (Argentina).

Infografia sobre o Concílio Vaticano II. Para a ver ampliada visite: http://www.austral.edu.ar/desdelaaustral/files/2012/11/revis-entera-3-11cl.jpg

Passados 50 anos do início do Concílio Vaticano II, poderia comentar a importância que teve e tem para a Igreja atual?

O Concílio Vaticano II foi a manifestação mais solene do magistério da Igreja no último século, em continuidade com todos os ensinamentos anteriores. Evidentemente, os seus documentos contêm uma grande riqueza e, como salientaram João Paulo II e Bento XVI, cabe-nos o desafio de os pôr em prática, com plena fidelidade, para que Jesus Cristo e o Seu Evangelho cheguem aos corações e às cabeças de milhões de pessoas. Ler e viver o Concílio é amar a Igreja, a Humanidade inteira.

Infografia sobre o Concílio Vaticano II. Para a ver ampliada visite: https://www.austral.edu.ar/desdelaaustral/files/2012/11/revis-entera-3-11cl.jpg

Qual foi a mensagem central que o Concílio quis dar ao homem e à mulher de hoje?

Fazer uma síntese não é fácil; de qualquer modo, poderia resumir-se em que Deus Se acerca de nós e sai ao nosso encontro: ama-nos, interessamos-lhe e conta connosco; com a Sua graça, podemos responder-Lhe e fazer um grande bem aos outros; e, concretamente, o Concílio recordou que a santidade – a resposta plena ao amor de Deus – não é uma meta só para alguns privilegiados, mas está ao alcance de todos e que todos estamos chamados a chegar a essa união com Deus, em Cristo, através da nossa vida corrente: família, trabalho, relações sociais. O trabalho do Concílio foi muito árduo. Participaram mais de 2.500 padres conciliares.

Como se pôde chegar a uma verdadeira unidade e praticamente unanimidade nos textos aprovados, quando nas discussões de trabalho as posições sobre diversos aspetos se insinuavam não só diferentes, mas divergentes?

A Igreja é formada por homens e mulheres e é lógico que, por vezes, possa haver diferenças de enfoques ou de pontos de vista. No entanto, seria errado esquecer que é também divina: Jesus Cristo prometeu que a assistência do Espírito Santo a acompanharia sempre. Por isso, como explica Bento XVI, é uma chave imprescindível pôr-se à escuta: não seguir as próprias ideias, mas tentar descobrir a vontade do Senhor e deixar que seja Ele quem nos guie. Por detrás dos documentos do Concílio Vaticano II está o trabalho esforçado de muitas pessoas, mas, sobretudo, descobre-se a doutrina de Jesus Cristo e a ação do Espírito Santo.

Por que razão houve diversas interpretações a respeito de algumas disposições do Concílio? Por que motivo os Papas João Paulo II e Bento XVI manifestaram uma forte decisão de que as suas conclusões fossem aplicadas?

O Prelado é Reitor Honorário da Universidade Austral.

É sabido que o Concílio foi mal ou parcialmente interpretado nalguns ambientes. As causas foram variadas e coincidiu também com a difusão do secularismo e do materialismo hedonista, que causaram graves danos. Penso, por exemplo, na perda de sentido cristão que afeta muitas famílias, na diminuição da prática religiosa e também na crise de alguns membros do clero e da vida consagrada. No entanto, como referi, os textos do Concílio contêm uma grande riqueza, em parte muitos dos seus ensinamentos foram postos em prática na Igreja e vêem-se os frutos: o uso frequente da Sagrada Escritura, a plena responsabilidade dos leigos, como membros do povo de Deus… Mas o Concílio não é um facto histórico do passado, é antes um projeto que se vai implantando e assimilando pouco a pouco, com maior ou menor acerto; ao mesmo tempo, cabe recordar que a Igreja peregrina através dos tempos e, portanto, com fé otimista tem de se avançar sempre. A nova evangelização, que o Beato João Paulo II e Bento XVI convocaram, recorda-nos a necessidade de difundir uma das mensagens chave do Concílio, como dizia antes: a chamada universal à santidade, mensagem central também nos ensinamentos de S. Josemaria.

O Concílio Vaticano II foi visto como a grande tentativa de “diálogo da Igreja com o mundo”. Cinquenta anos mais tarde, o Papa volta a insistir nesse ponto. Um pai ou uma mãe de família, um profissional, um estudante, um professor… como podem levar a cabo esse diálogo com aqueles que não conhecem, ou puseram de lado, a fé?

A Igreja é essencialmente missionária e o cristão está chamado a ser sempre testemunho de Jesus Cristo. S. Josemaria explicava que não se pode separar a vida cristã do apostolado, do mesmo modo que não se pode dissociar em Cristo o seu ser de Deus-Homem e a sua missão de Redentor. Penso que o primeiro desafio de todo o fiel – mãe ou pai de família, filho, trabalhador, intelectual, sacerdote, bispo, religioso ou leigo – é formar-se bem e aprofundar nas razões da sua fé. O Santo Padre recomendou-nos – neste Ano da Fé – conhecer bem o Catecismo da Igreja Católica; deste modo, poderemos dialogar com os outros, para os convidar a partilhar o tesouro que recebemos, com respeito e sinceridade; essa é a base de toda a aproximação. E um ponto básico é que nós, católicos, nos exercitemos no mandatum novum: saber amar todos, para servir, para ajudar e, quando é necessário, para corrigir com caridade.

Que importância teve, no que se refere à doutrina sobre os fiéis correntes recolhida pelo Concílio, a mensagem que S. Josemaría Escrivá – a chamada universal à santidade – propunha desde 1928?

Os ensinamentos de S. Josemaria trouxeram luz sobre a profundidade da vocação à santidade que todos os fiéis leigos recebem com o batismo, para o serviço da Igreja e de todo o mundo, das famílias, dos ambientes profissionais, dos mais necessitados. Assim o pôs de manifesto o Beato João Paulo II, quando se referiu a S. Josemaria como “apóstolo dos leigos para os novos tempos” e nos documentos oficiais da sua causa de canonização chama-se-lhe “precursor do Concílio Vaticano II”. Muitos padres conciliares afirmaram que S. Josemaria tinha sido um precursor da mensagem dessa assembleia da Igreja.

Poderia falar-nos do trabalho que o nosso primeiro Reitor Honorário, o venerável D. Álvaro del Portillo, teve nas sessões de trabalho do Concílio?

Teria que me alongar muito e quero precisar que desse ponto se ocupará a própria história. O seu contributo foi salientado por muitos dos protagonistas; como se sabe, interveio diretamente, desde a fase pré-preparatória até ao fim do Concílio. Posso testemunhar um dado significativo: o apreço que se lhe tinha na Cúria romana, inclusivamente por parte de pessoas que não pensavam como ele. Era um homem de paz, de unidade, de caridade. O sorriso sereno com conteúdo fraterno era o seu selo pessoal; qualquer pessoa que trabalha em equipa valoriza a importância das pessoas que sorriem e unem. No caso de D. Álvaro essa caraterísca acrescia à sua inteligência e à sua capacidade de trabalho.

A basílica de São Pedro durante as sessões do Concílio Vaticano II.

Pode aconselhar-nos sobre o modo de viver e aproveitar com fruto, na comunidade universitária, o recente “ Ano da fé” instituído pelo Papa Bento XVI?

O Ano da fé é uma grande ocasião para aprofundar, pessoalmente também, a mensagem de Jesus Cristo e a própria renovação pessoal para comunicar essa mensagem; é uma oportunidade de valorizar mais a fé, procurar fazê-la vida como cristãos coerentes e ajudar a que as mulheres e os homens do nosso tempo a vejam como uma resposta às suas interrogações profundas, e se sintam protegidos, ajudados, animados. Para isso, é fundamental o estudo, a formação e também a amizade pessoal, que conduz ao apostolado.

A fé tem de estar presente na vida universitária e na investigação científica: Bento XVI insiste na necessidade de “ampliar a razão”, porque não há contradição entre ciência e fé; seria equivocado – redutivo, empobrecedor – agir como se, na prática, na ciência ou na vida pública, económica, ou no trabalho universitário tivesse que se prescindir da dimensão transcendente do ser humano. Por outro lado, uma comunidade universitária tem que estar centrada na educação e formação dos alunos e aberta aos grandes desafios intelectuais, ao mesmo tempo que procura, com prioridade, o serviço à sociedade em problemas prementes: a proteção da vida humana, em todos os estados de desenvolvimento; a ajuda à estabilidade da família, fundada no matrimónio entre homem e mulher; a luta contra a pobreza e a marginalidade; a promoção de uma nova cultura, uma nova legislação, uma nova moda, mais coerentes com a dignidade da mulher e do homem, como filhos de Deus. De onde sairão propostas cristãs concretas para se conseguir uma sociedade justa e solidária, senão daqueles que se inspiram no Evangelho e se apoiam no trabalho generoso e bem acabado? A sociedade necessita de pessoas bem preparadas, do ponto de vista humano, profissional e espiritual; temos um caminho aberto para continuar a percorrer o Ano da fé e também os tempos posteriores.

Bento XVI convocou um Ano da fé num momento em que a fragilidade de alguns membros da Igreja se faz patente e o mundo parece circular por rumos alheios a ela. Por que pensa que, apesar de tudo, é tempo de crer? Por que continuar a crer na Igreja?

Como lhe dizia antes, a Igreja é formada por homens e mulheres; sabemos que o pecado existe e que Deus nos chama constantemente à conversão do coração. Como vemos que o Papa faz, não tem cabimento ignorar os problemas, nem deixar de se preocupar com as pessoas que sofreram injustiças. No entanto, agora vê-se com clareza que o mundo tem uma grande necessidade de Deus e da sua graça, que nos chega através dos sacramentos, na Igreja. Os jovens parecem descobri-lo com facilidade e chama a atenção – por exemplo, nas Jornadas mundiais da Juventude – como vibram com a Eucaristia, com a pessoa do Papa e com a Igreja. A Igreja é jovem e estamos realmente em tempos de esperança. A Igreja procura a unidade, promove a paz e a solidariedade, põe a sua prioridade na evangelização, atende os mais pobres e é um farol de luz, frente ao ódio e à violência em tantas partes do mundo. Neste contexto nós, cristãos, devemos refletir o rosto amável de Cristo. A Igreja, nossa Mãe, é santa e sê-lo-á sempre, ainda que a conduta de alguns filhos possa não estar de acordo com essa santidade.

S. Josemaria dizia que tinha uma fé muito grande, “tão grande que se pode cortar”, explicava de modo gráfico. O senhor viveu com este santo, em que se distinguia essa fé?

Capa da revista que publica a entrevista.

No trato confiado com Jesus Cristo, que “empapava” todo o seu dia. Na sua devoção filial à Santíssima Virgem. E também na humildade e na magnanimidade; considerava-se pouca coisa e tinha consciência de que tudo o que fizesse valia se Deus o fazia prosperar e, ao mesmo tempo, lançava-se agrandes iniciativas para ajudar este nosso mundo. São muito grandes e numerosas as iniciativas sociais, educativas, religiosas que surgiram por influxo das suas palavras. A Universidade Austral é um exemplo concreto dessa ânsia transbordante de S. Josemaria por servir a Deus e a sociedade inteira. Soube e quis sempre contar com Deus e, simultaneamente, ocultar-se e desaparecer pessoalmente, para que só o Senhor brilhasse.

Poderia fazer-nos compreender a necessidade que a mulher e o homem atuais têm de consolidar a sua fé para percorrer com felicidade este mundo que, muitas vezes, não inclui Deus no seu projeto vital?

A felicidade verdadeira, que todos desejamos, só chegará à sua plenitude na vida eterna, mas conquista-se e começa já na Terra quando vivemos em amizade com Deus. Santo Agostinho explicou-o magistralmente:“Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração está inquieto até descansar em ti”. Dir-lhe-ei também que só pode sentir-se necessitado de Jesus Cristo quem se sente necessitado de salvação. Haverá hoje alguém que creia que não tem necessidade de curar nada no seu coração, na sua vida, no seu passado, no seu presente? Os cristãos devem ser esse rosto compreensivo de Cristo para os outros. Se os nossos amigos e amigas, e todas as pessoas, encontram nos nossos um rosto fraterno, poderemos comunicar-lhes a grande mensagem da Igreja:“Não tenham medo de abrir as portas a Cristo” (João Paulo II) e “Animem-se a arriscar por Cristo” (Bento XVI). O caminho da felicidade é sempre um caminho de generosidade. Como recorda o Concílio Vaticano II, a pessoa “não pode encontrar a sua própria plenitude se não é na entrega sincera de si mesmo aos outros” (Gaudium et spes, n. 24).

Por último, quereríamos perguntar-lhe algo de em tom mais pessoal: há alguma possibilidade de que nos visite no decurso do deste Ano da fé?

Gostaria imenso de visitar a Universidade e de conversar com cada uma e cada um, para partilhar alegrias e penas, desafios e projetos. Abandono este desejo nas mãos do Senhor.

Marina Narbais